Crítica do Programa de Gotha
Em 1875, Marx encaminhou à cidade de Gotha um conjunto de observações críticas ao programa do futuro Partido Social-Democrata da Alemanha, resultado da unificação dos dois partidos operários alemães: a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães , dirigida por Ferdinand Lassalle, e o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores, dirigido por Wilhelm Liebknecht, Wilhelm Bracke e August Bebel, socialistas próximos de Marx.
O projeto de programa proposto no congresso de união privilegiava as teses de Lassalle, o que suscitou críticas virulentas de Marx em forma de carta direcionada aos dirigentes. Sua oposição devia-se não à fusão dos partidos – quanto a isso era da opinião de que “cada passo do movimento real é mais importante do que uma dezena de programas” –, mas ao estatismo exacerbado que ganhara espaço nas diretrizes do novo partido.
Nem a favor do poder absoluto do Estado proposto por Lassalle, nem da ausência de Estado proposta pelos anarquistas: a proposição de Marx era a “ditadura revolucionária do proletariado”, forma de Estado que teria lugar durante o período de transformação revolucionária que conduziria ao advento da sociedade comunista. Segundo ele, as cooperativas “só têm valor na medida em que são criações dos trabalhadores e independentes, não sendo protegidas nem pelos governos nem pelos burgueses”.
Essas glosas marginais sobre o Programa de Gotha somente foram publicadas em 1891, muito depois da morte de Marx, por Friedrich Engels, na revista socialista Die Neue Zeit, dirigida por Karl Kautsky. Ao longo do século XX, esse conjunto disperso de notas tornou-se documento coerente de combate contra o socialismo aliado ao Estado.
Novas luzes também são lançadas sobre outros temas: “Se lermos esse documento à luz dos debates do século XXI, alguns de seus aspectos ganham novo interesse no contexto dos atuais debates sobre a ecologia. É o caso da afirmação categórica de que o trabalho não é o único gerador de riqueza, a natureza o é tanto quanto ele. Assim, a crítica de muitos ecologistas a Marx – só o trabalho é fonte de valor – revela-se um mal-entendido: o valor de uso, que é a verdadeira riqueza, também é um produto da natureza”, afirma o sociólogo Michael Löwy no prefácio da primeira edição em língua portuguesa de Crítica do Programa de Gotha, a sair pela Boitempo.
Com amplo material complementar, como diversas cartas de Karl Marx e Friedrich Engels, incluindo a famosa carta deste a August Bebel, de março de 1875, analisada por Lenin em O Estado e a revolução (1917), esta edição situa o texto em seu contexto histórico e traz um dos pronunciamentos mais detalhados de Marx sobre assuntos revolucionários, tendo em vista o comunismo. O volume inclui também as atas do Congresso de Gotha, documentos raríssimos e de grande valor para estudiosos do marxismo. Outra novidade é a inclusão dos comentários de Marx ao livro Estatismo e anarquia, de Mikhail Bakunin, redigidos na mesma época de Crítica do Programa de Gotha. Nesses escritos, Marx rebate as críticas de Bakunin sobre o suposto estatismo marxista e sua proximidade com Lassalle.
Trecho das Atas do Congresso de Gotha
“Liebknecht toma a palavra como relator da questão do programa. Na introdução de seu discurso, explica que o programa apresentado para aprovação não é um programa ideal, mas sim prático, um programa de compromisso. Ele tem de contentar às duas distintas correntes existentes no partido. Objetou-se que o programa não era detalhado; mas um programa deve ser curto e precisar, com o mínimo possível de palavras, os objetivos finais do partido. Com uma brochura, posteriormente será possível tratar de modo mais minucioso cada ponto individual do programa; também a imprensa do partido desempenhará essa função. O orador passa então aos pontos singulares do programa e, com a aquiescência da comissão [de redação], incumbe-se de apresentar a parte inicial do programa, com as seguintes palavras:
O trabalho é a fonte de toda riqueza e toda cultura, e, como o trabalho universalmente útil só é possível por meio da sociedade, o produto total do trabalho pertence à sociedade, isto é, a todos os seus membros, com obrigação universal ao trabalho, com igual direito, a cada um segundo suas necessidades razoáveis. Na sociedade atual, os meios de trabalho constituem monopólio da classe capitalista; a dependência da classe trabalhadora, condicionada por esse fato, é a causa da miséria e da servidão em todas as suas formas. A libertação do trabalho requer a transformação do meio de trabalho em patrimônio comum da sociedade e a regulação cooperativa do trabalho total, com uma distribuição justa do fruto do trabalho e seu emprego para a utilidade comum.
A redação sugerida, prossegue o relator, desvia-se em vários aspectos do esboço original, mas as mudanças são todas necessárias, sem exceção.”
Sobre a coleção Marx-Engels
A publicação de Crítica do Programa de Gotha dá continuidade ao ambicioso projeto da Boitempo de traduzir o legado de Karl Marx e Friedrich Engels, contando com o auxílio de especialistas renomados e sempre com base nas obras originais. Com 12 volumes publicados, a coleção Marx-Engels teve início com a edição comemorativa dos 150 anos do Manifesto Comunista, em 1998. Em seguida foi publicada A sagrada família (2003), obra polêmica que assinala o rompimento definitivo de Marx e Engels com a esquerda hegeliana. Os Manuscritos econômico-filosóficos (2004) vieram na sequência, ao qual se seguiram os lançamentos de Crítica da filosofia do direito de Hegel (2005); Sobre o suicídio (2006); A ideologia alemã (2007); A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (2008); Sobre a questão judaica (2010); Lutas de classes na Alemanha (2010); O 18 de brumário de Luís Bonaparte (2011); A guerra civil na França (2011), em comemoração aos 140 anos da Comuna de Paris; os Grundrisse (2011) e agora Crítica do Programa de Gotha. Ainda neste ano, a editora planeja publicar o Socialismo jurídico, de Engels, e o primeiro volume de O capital.
Fonte: Boitempo