“Novo normal”: a banalização do genocídio
Em frontal contradição com a situação objetiva da epidemia de coronavírus, a burguesia brasileira ligou definitivamente o “foda-se” e orientou seus agentes políticos a decretar um “novo normal”. Ao oficializarem a flexibilização de uma quarentena que, desde o início, nunca foi arquitetada para a totalidade dos brasileiros, os governantes, em nome do capital, começam a convocar estudantes e trabalhadores para o abate.
A decisão de flexibilizar a quarentena não decorre do controle da epidemia. Com taxa de contágio superior ao índice 1 há mais de dez semanas, a circulação do coronavírus persiste, ainda que de maneira desigual, em todas as regiões do país. Com uma média de mais de 1.000 óbitos por dia, o Brasil é recordista em número diário de mortos por COVID-19. E não há luz no fim do túnel. A expectativa do presidente do Conselho Nacional de Secretários da Saúde é que, nos próximos quatro meses, mais de 60.000 vidas sejam perdidas, totalizando cerca de 150.000 óbitos até o final de 2020.
A operação ideológica do “novo normal” tem como objetivo banalizar a barbaridade que significa o genocídio sanitário.
A naturalização da morte requer manter a população na mais absoluta ignorância em relação à gravidade da pandemia e à falta de perspectiva de curto prazo para sua solução.
A ideia de que algumas regiões – como Manaus – teriam alcançado a imunização coletiva, defendida por alguns porta-vozes do capital, não passa pelo crivo da ciência. Epidemiologistas são praticamente unânimes em afirmar que ainda não se sabe qual seria o limiar de contaminação que garantiria a imunização de rebanho. E, mesmo que se soubesse, tal limite seria muito superior aos cálculos de que, até o momento, não mais de 5% da população brasileira teria sido contaminada pelo coronavírus.
A propaganda de que o brasileiro deve aguentar firme, que a crise sanitária é passageira, é uma armadilha. Não há nenhum indício de que a pandemia esteja próxima do fim. Ao contrário. A OMS preocupa-se com a possibilidade de uma segunda onda de contágio ainda mais virulenta. Enquanto não houver vacina efetiva e disponível para toda a população mundial – o que, se tudo correr bem, deve acontecer em um intervalo de 18 a 24 meses –, não há nenhuma possibilidade de que a ameaça do coronavírus seja debelada.
A dimensão do desastre da política sanitária nacional pode ser auferida em termos comparativos, quando se constata que a proporção de infectados e mortos pelo coronavírus no Brasil em relação ao total mundial é cerca de cinco vezes superior à fração de brasileiros na população global. O desastre em curso não pode ser reduzido às consequências de políticas equivocadas, incompetência, corrupção ou insensatez. Tais fenômenos, sem dúvida, estão presentes e devem ser política e legalmente responsabilizados, mas não explicam a conivência criminosa do establishment com o descalabro sanitário.
A política de saúde brasileira obedece a uma lógica perfeitamente coerente com a natureza extraordinariamente desigual da sociedade brasileira. Trata-se de administrar o genocídio sanitário dos pobres a fim de preservar a vida dos ricos e de seus negócios. O objetivo real da política sanitária brasileira não é salvar a vida de todos, como seria de supor, mas sim a da exígua parcela abastada.
É o que explica o critério que rege a administração da quarentena: graduar a flexibilização tendo como parâmetro a necessidade de evitar que a demanda de leitos sobre os hospitais privados possa colocar em risco o atendimento da plutocracia. Sob tal orientação, as mortes são toleradas e racionalizadas como fato inexorável.
O argumento de que a flexibilização da quarentena é um imperativo econômico para evitar que a população seja ainda mais castigada pelo desemprego é um sofisma grosseiro. As evidências indicam exatamente o contrário. Os países mais rigorosos na aplicação da quarentena, como a China e a Alemanha, por exemplo, são os que têm demonstrado maior capacidade de minimizar os efeitos da pandemia sobre a atividade econômica e o emprego. E, vice-versa, os Estados menos rigorosos no combate à epidemia são aqueles que têm amargado maior crise econômica.
Entre os dois grupos de países há uma diferença qualitativa na forma pela qual os governos articulam política sanitária e política econômica. Sem garantir renda às famílias e poder de gasto ao setor público, não há como assegurar condições objetivas para que a quarentena seja cumprida pelo conjunto da população, nem a possibilidade de adotar políticas anticíclicas para atenuar o impacto da contração da demanda agregada sobre o nível de atividade e o mercado de trabalho.
O elo entre darwinismo econômico e darwinismo sanitário é indissolúvel. Não por acaso, Estados Unidos, Brasil e Reino Unido, liderados por três expoentes da ultradireita, com políticas econômicas ultraliberais, são também os países que despontam como os recordistas em vítimas do COVID-19, contração do PIB e escalada do desemprego. Enfim, na ausência de uma profunda ruptura com os cânones do neoliberalismo e da austeridade fiscal, é simplesmente impossível evitar o genocídio sanitário e a crise econômica cataclísmica.
O “novo normal” aumenta a urgência de um grande movimento político, articulado pelos trabalhadores, para derrubar Bolsonaro e Mourão. Este é o primeiro passo para uma profunda reorganização econômica, social e política da vida nacional. Sem a deposição do governo Bolsonaro/Mourão e a completa destruição do Estado neoliberal é impossível evitar o genocídio sanitário e a catástrofe econômica em pleno curso.