ENTREVISTA: MAUD CHIRIO/HISTORIADORA – Guerra da memória
O livro A política nos quartéis – Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira é obra de uma historiadora francesa, Maud Chirio, que faz inveja ao leitor brasileiro. Além do domínio das informações sobre a vida política dentro das Forças Armadas (algo sempre negado por uma instituição que diz não gostar de política), a autora demonstra conhecer bem o clima da caserna brasileira. Se a face visível para o cidadão sempre foi a dos generais, o que a pesquisa mostra é o setor médio da corporação metido em política até os ossos, sempre à direita, com um empenho mais “revolucionário” que o da cúpula.
Longe da paz dos quartéis, o que ela descreve é um ambiente de pressões e protestos, dominado a custo pelos princípios da hierarquia e da obediência, mas que encontrava escape nas eleições do Clube Militar e, mais grave, em momentos marcados por violência e atentados. Esse ambiente de divisão, escamoteada pela defesa de uma atuação profissional do Exército, pode ser percebido, em outro contexto, em episódios recentes como o da discussão da Comissão da Verdade.
Em entrevista ao Pensar, Maud Chirio chama a atenção para a necessidade de conhecer em profundidade o período recente da ditadura militar, de modo a influir democraticamente nos rumos da instituição. Os tempos são outros, mas a persistência de uma certa “cultura histórica institucional” obriga ao cuidado histórico, vigilância política e reflexão permanente. Para isso, ela defende a abertura de arquivos e as pesquisas sobre o período.
Para o brasileiro o Exército, depois do golpe de 1964, é identificado com a direita. Em seu estudo, percebe-se que havia um setor à direita da direita, formado pelos setores médios da corporação. Como se construiu o consenso em torno das Forças Armadas, de modo a esconder essa diferenciação ideológica?
O Exército brasileiro não foi sempre identificado com a direita. Falando só do pós-1945, houve momentos de intensa bipolarização, com setores importantes de oficiais e praças apoiando os governos getulistas e as políticas nacionalistas implementadas por estes. Foi o que aconteceu, em particular, durante o segundo governo Vargas, quando o Clube Militar virou um espaço de lutas políticas violentas entre a facção “nacionalista” e a “entreguista”, usando o vocabulário da época. Mais para a frente, os sargentos foram uma força progressista importante e uma base de apoio fundamental para o governo de João Goulart. Esses setores mais à esquerda foram expulsos das Forças Armadas após o golpe de 1964, e a instituição militar inteira migrou para a direita. Alguns grupos de oficiais de patente intermediária (em geral tenentes-coronéis e coronéis) eram, é verdade, ainda mais extremados e entraram em conflito com o poder militar, por querer uma “revolução” mais radical, ou seja, a construção rápida de um regime autoritário e repressivo. Esse conflito não foi sempre escondido. Em 1964 e 1965, fazia manchete todo dia. Mas, aos poucos, a autoridade hierárquica dos generais foi se restabelecendo. Os conflitos não desapareceram, mas sumiram dos jornais e dos olhos do mundo civil. No mesmo momento se reafirmou o discurso “oficial” de uma instituição militar “unida e coesa”, sem conflitos políticos internos. Foi essa imagem que a memória coletiva guardou.
Com o golpe de 64, além do papel político, o Exército assumiu tarefas administrativas e econômicas. Houve um pensamento econômico nos quartéis naquele período?
Há, de uma certa forma, mas é muito pouco elaborado. Todos os grupos de oficiais ativistas que estudei se consideram nacionalistas economicamente, e criticam o “entreguismo” dos governos militares contra os quais eles lutam. Mas geralmente não passa de uma postura, sem reivindicações concretas. Não que seja só uma maneira de desqualificar o adversário, pois esses oficiais são convencidos do nacionalismo econômico deles; mas eles não têm a formação nem os contatos para elaborar uma política alternativa àquela do poder.
A separação entre elite militar e setores intermediários deixou marcas nas Forças Armadas?
A elite militar da ditadura, os generais, nascidos em 1900 ou 1910, já morreu; e a jovem oficialidade ativista, que tinha geralmente a patente de major a coronel, está hoje na reserva, com 75, 80, 85 anos. O conflito entre essas duas gerações já é história. Houve rancores, certamente, em particular por parte dos oficiais intermediários mais ativos politicamente, e por essa razão marginalizados pelo poder. Quanto àqueles que fizeram parte do aparelho repressivo, eles nunca perdoaram Geisel e Figueiredo por ter aberto o processo de distensão. Mas o discurso da “revolução traída”, que era a acusação sistemática da época, não aparece mais hoje e as críticas contra os governos militares sucessivos são bem menos violentas. O que aconteceu é que, depois da ditadura, os rancores e atritos entre os ex-golpistas foram cobertos por um discurso consensual sobre a ditadura – que o golpe foi uma “revolução democrática” necessária para salvar o país do comunismo, que a repressão não foi bem repressão, mas uma “guerra suja” contra um inimigo armado e perigoso, que “governos militares” modernizaram e enriqueceram o país etc. – e por um ódio comum de todos os “revanchistas”, na mídia e no mundo universitário em particular. Ou seja, todos os golpistas de ontem se encontram hoje no mesmo campo na “guerra da memória”, e esqueceram numa larga medida os conflitos passados.
Sem o temor do comunismo, o radicalismo de direita das Forças Armadas identifica hoje outro tipo de inimigo preferencial (como os movimentos sociais) ou se volta de forma mais genérica contra o sistema político e a corrupção?
Para responder a essa pergunta, teria que estudar a produção da direita militar hoje, coisa que eu não fiz. Só posso dizer que o pensamento do “inimigo interno” é, desde a formação do Exército brasileiro, imutável e ao mesmo tempo “migrante”: nunca desapareceu, mas identificou ao longo do tempo inimigos diferentes – o separatista, o comunista, o criminal… – com características imaginárias comuns. O inimigo interno divide a nação, está a serviço do estrangeiro e é moralmente condenável. Ora, são características que a direita militar sempre atribuiu também ao mundo político, que dividiria a nação por seus conflitos partidários, seria vendilhão da pátria, corrupto e interesseiro. Na verdade, o inimigo identificado por essa direita militar é sempre o contrário, a imagem no espelho do “militar ideal”, um homem puro, desinteressado, firme, nacionalista…
Como se manifesta e que papel ocupa a “jovem oficialidade radical” de décadas atrás?
Como falei, hoje esses oficiais já estão na reserva. Alguns continuam a militância no Clube Militar, como vimos recentemente, ou em associações políticas, que têm geralmente por objetivo a defesa de uma memória positiva da ditadura. É muito difícil saber quais são suas conexões com o mundo da ativa.
Como a senhora percebe a atual conjuntura do pensamento militar, com o Ministério da Defesa sob comando civil e a presidência ocupada por uma ex-guerrilheira?
O “pensamento militar” em geral é algo dificilmente sondável, no passado como no presente, justamente porque os militares da ativa não são autorizados a adotar publicamente posições políticas. Além disso, não acredito que haja um pensamento militar. Para os oficiais que viveram e apoiaram o golpe e a ditadura, a chegada ao poder da Dilma foi obviamente uma derrota histórica e vista como uma ameaça. Quem é hoje tenente ou capitão e nem era nascido em 1964 não pode ter a mesma perspectiva sobre essa situação. Mas existe claramente uma “cultura institucional”, incluída uma “cultura histórica institucional”, que foi transmitida de geração em geração, e sobre a qual é importante influir democraticamente. Com a abertura de arquivos, a realização de pesquisas sobre o período e a divulgação dos trabalhos da Comissão da Verdade, por exemplo.
Moralismo e apolitismo e nacionalismo foram instrumentos fortes da ideologia linha-dura. Hoje eles parecem alimentar outros estratos conservadores da sociedade. Há o risco de uma nova onda reacionária baseada naqueles elementos?
É muito difícil dizer. Essa cultura política, autoritária, que não foi sempre nacionalista, existe no Brasil desde o início do século 20. Ela, em si, não provoca golpes de Estado e ditaduras. Mas me parece que o desprezo radical pelo mundo político, por ser considerado inerentemente corrupto, fraco e interesseiro – que eu não chamaria de “apolitismo”, mas de uma cultura “antipolítica civil” –, fragiliza qualquer democracia.
O conhecimento sobre o pensamento político do Exército é relativamente recente no Brasil e vem sendo estudado a partir de novas fontes, muitas delas ainda secretas. O que falta pesquisar sobre as Forças Armadas e sua participação na história brasileira contemporânea?
Falta pesquisar muita coisa, pois por enquanto há pouquíssimos arquivos liberados. Só sobre o período do regime militar, que conheço melhor, precisamos de arquivos para poder pesquisar as conexões entre facções militares e grupos ativistas civis, a integração da participação ao aparelho repressivo nas carreiras profissionais dos militares, e a evolução da formação dos militares no pós-ditadura, entre outras coisas.
http://sergyovitro.blogspot.com.br/2012/03/entrevista-maud-chiriohistoriadora.html