De “empreendedores” a proletários

imagemTendências da uberização

Por Gabriel Landi Fazzio

Derrotada nos tribunais britânicos, a Uber terá que pagar salários e direitos trabalhistas a seus motoristas. Neste artigo, partindo das metamorfoses jurídicas da uberização, propomos uma reflexão sobre as contradições econômicas deste fenômeno – que empurram irresistivelmente os trabalhadores uberizados para a luta de classes proletária contra os grandes capitalistas.

Proletarização para inglês ver?

Na Inglaterra, uma decisão da Suprema Corte acaba de colocar a Uber diante de uma das maiores reviravoltas em toda sua trajetória, desde sua criação em 2009. Após uma batalha judicial de seis anos, finalmente a empresa esgotou, em 19/02/2021, suas possibilidades de recurso e terá que aplicar a decisão dos tribunais: passará a arcar com os direitos trabalhistas dos motoristas da Uber em todo o país.

O processo foi movido em 2015 pelos motoristas James Farrar e Yaseen Aslam. Negando a existência de um vínculo empregatício entre a Uber e os motoristas, a defesa da empresa alegou ser apenas uma empresa de tecnologia, cobrando uma taxa pelo fornecimento de um serviço digital de intermediação entre motoristas autônomos e seus clientes, por meio de seu aplicativo.

No entanto, como argumentaram os trabalhadores James e Yaseen (e como compreenderam todos os juízes ingleses que lidaram com o caso), a situação é bastante diferente: detendo o poder de definir as tarifas das corridas, estabelecendo uma série de obrigações aos motoristas e podendo aplicar penalidades diversas sobre eles, a Uber cumpre todos os requisitos que configuram juridicamente o poder diretivo do empregador sobre o empregado. Assim, como decidiu a Suprema Corte, a Uber seria responsável por pagar aos motoristas um salário mínimo, descanso semanal remunerado (um adicional de 12% sobre o salário) e planos de pensão.

Em um primeiro momento, a Uber reagiu à decisão buscando restringir sua aplicabilidade: ainda em fevereiro o porta-voz regional da empresa, Jamie Heywood, declarou que a Uber respeitaria a decisão … mas que compreendia que ela não se aplicava a todos seus motoristas! Isso porque a empresa, em 2016, depois de sua primeira derrota judicial do país, modificou parte de suas regras e de seu sistema de punições. Por isso, disse Heywood, apenas os motoristas que haviam se enquadrado nas regras pré-2016 poderiam ser considerados “empregados” da Uber… [1]

Menos de um mês depois, contudo, em 17 de março, a empresa se manifestou novamente, dando uma guinada brusca em seu posicionamento: concordou em estender a regulação definida judicialmente a todos seus mais de 70 mil motoristas em todo o Reino Unido!

Mas … na prática, o que isso significa? Ainda que a decisão não se aplique aos entregadores de refeições da UberEats, a decisão pode significar um ponto de inflexão na luta pelos direitos dos chamados trabalhadores de aplicativos. Para entendermos a importância histórica das transformações que parecem despontar na Inglaterra, bem como seus limites, valeria a pena dar um passo atrás e analisar, como um todo, essa metamorfose, esse vai-e-vem das formas do trabalho no setor de transporte, tão estreitamente conectada à uberização.

A morfologia trabalhista da uberização

“A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais”. A chamada “uberização” é a mais atual demonstração dessa máxima do Manifesto Comunista. Aplicando ao setor do transporte de passageiros as tecnologias provenientes da revolução cibernética da comunicação na era digital, a Uber abriu as portas para uma completa reorganização da divisão do trabalho neste ramo – um ramo até então bastante estreito para os investimentos produtivos capitalistas. Vejamos:

Antes do surgimento da Uber, a indústria do transporte de passageiros em pequena escala [2] era relegada a uma existência típica dos ramos nos quais predomina a produção pequeno-burguesa, a pequena produção mercantil. Excetuado nesta indústria o ramo de transporte de passageiros em larga escala (por meio de ônibus, trens, navios, aviões etc, grandes meios de transporte cuja aquisição e manutenção, ademais da operação em larga escala, em turnos, com uma ampla frota etc, sempre demandou uma concentração prévia relativamente volumosa de capitais), todos os demais ramos do transporte de passageiros (por meio de carros, motocicletas etc) sempre estiveram relativamente acessíveis, como alternativas profissionais, a vastas camadas de pequenos proprietários privados.

Isso era verdade até mesmo antes de o próprio automóvel revolucionar este ramo, levando à desocupação toda uma geração de cocheiros, substituídos pelos modernos taxistas. Mas esse revolucionamento apenas modificou concretamente o trabalho de transporte de passageiros. Do ponto de vista da forma da relação de trabalho, o taxista motorizado ainda era, em sua imensa maioria, como os antigos cocheiros, um trabalhador pequeno-burguês, um pequeno proprietário de um meio de transporte vendendo no mercado, diretamente a seus clientes, seu serviço de transporte, ou seja, o produto de seu trabalho em seu próprio meio de produção. Embora tenha nascido também, neste estágio, o taxista proletário (o assalariado de uma empresa de táxis legalizada, ou de uma cooperativa fraudulenta), essa forma nunca se tornou predominante neste ramo.

E por um bom motivo: pela dispersão prática do trabalho de transporte de passageiros em pequena escala, enquanto trabalho concreto. Ora, como aplicar sistematicamente, para milhares de motoristas dispersos, o mesmo disciplinamento fabril do trabalho, homogeneizando os trabalhadores individuais, permitindo o nivelamento da produtividade de seus tempos de trabalho etc? Ou, em outras palavras: sendo o trabalho de transporte de passageiros em pequena escala realizado sem a necessidade de um grande capital, bastando para tanto um pequeno meio de produção, como tornar esse ramo suficientemente rentável aos investimentos produtivos de grandes capitais? Entravado nessa dispersão por sua própria forma concreta, esse ramo da indústria do transporte era incapaz de se alçar sequer à forma da cooperação simples capitalista, muito menos então à forma fabril da produção capitalista desenvolvida. [3] Até pouco mais de uma década atrás, o nível de desenvolvimento das forças produtivas sociais não havia constituído a maquinaria que permitisse: 1) subsumir realmente, sob um mesmo processo de trabalho, amplas massas de motoristas; 2) constituir a concentração deste mercado, arrancando ao motorista a relação direta com seu passageiro.

A tecnologia Uber resolveu ambos problemas de um só golpe – e conseguiu, de quebra (já que em todos os países a regulação jurídica deste ramo do transporte permanecesse aquém das possibilidades econômicas recém-gestadas, que revolucionaram aqui as bases da divisão do trabalho), burlar e pôr abaixo toneladas de legislação protecionista, que regulavam as tarifas e (contraparte prática necessária dessa regulação) amortecia a concorrência no setor, limitando o contingente de taxistas. Nessa empreitada, a Uber recebeu o poderoso impulso do crescente desemprego, que atira anualmente, sob a pressão da insegurança e da fome, milhares de trabalhadores assalariados em direção a ocupações típicas da pequena burguesia empobrecida [4], vendo na prestação de serviços sua única escapatória à ruína. Em um primeiro momento, isso foi especialmente verdadeiro para os desempregados de profissões com maiores salários ou pequenos empresários falidos que, possuindo carros próprios de padrão superior, consistiram nas primeiras tropas recrutadas pela Uber. E, depois que havia se consolidado sobre uma sólida massa de engenheiros, advogados, contadores etc desempregados (ou desesperados para complementar seus rendimentos declinantes), a Uber finalmente abriu suas portas amplamente aos desempregados em geral – dinamizando em escala nunca antes vistas o próprio mercado de locação de carros, demonstrando que não só do “carro próprio” se faz um “empreendedor”.

E aqui temos o nó górdio do problema: embora tenha minado completamente as antigas bases da divisão do trabalho neste ramo, caminhando para a integração de todos motoristas independentes dispersos em uma frota comum universal, a Uber não transformou imediatamente esses produtores privados em trabalhadores assalariados. Não se trata apenas do fato de que a uberização não levou até o fim o processo de expropriação, de separação entre os trabalhadores e seus meios de produção, mantendo o motorista atado às necessidades econômicas de aquisição e manutenção de seus meios de trabalho, bem como a um regime tributário de prestador de serviços etc (ou seja: às necessidades econômicas típica de um pequeno proprietário privado). Isso tudo é verdade, mas não é suficiente: também nos primeiros estágios do desenvolvimento capitalista na indústria de transformação, quando esta ainda se encontrava em sua forma manufatureira, os artesãos recém feitos proletários mantinham suas ferramentas pessoais e um controle relativamente independente de seu processo de trabalho, bastando para a caracterização de sua condição proletária a existência da cooperação simples no processo de trabalho e do assalariamento.

“Mas então”, alguém já desconfiado frente a tanta abstração poderá perguntar, pressentindo a conclusão: “o trabalhador uberizado é um pequeno-burguês, um pequeno produtor privado, e não um proletário?” Sim… e não! Recrutado entre as massas dos proletários desempregados, o motorista uberizado encontra-se em uma condição particularmente precária e transitória. Nossa hipótese é que, se ele não é formalmente um pleno proletário, isso ocorre apenas porque, na condição de pequeno proprietário, ele pode ser ainda mais explorado pela Uber. Talvez a questão seja que a atual conformação do trabalho dito uberizado permite a essa empresa extrair dos motoristas uma soma maior de mais-trabalho absoluto (apresentando-se sob a forma de mero atravessador, comportando-se como um capital comercial que cobra ao produtor privado uma taxa sobre o valor do produto como retribuição por colocá-lo em contato com seu consumidor final – quase como a Sadia frente a um pequeno granjeiro) do que, como empregador, lograria extrair na forma de mais-valor absoluto e relativo. Em outras palavras: muito provavelmente, a Uber extrairia menos mais-trabalho aos motoristas se lhes pagasse pelo tempo de dispêndio de sua força de trabalho do que como faz hoje: cobrando do passageiro o preço da corrida e repassando um montante ao motorista, com a dedução de uma taxa. [5]

Acreditamos, portanto, que aquilo que é mais característico da uberização como a conhecemos é precisamente que ela se apresenta como uma forma de transição do trabalho pequeno-burguês para o trabalho assalariado, do predomínio da pequena produção mercantil para o predomínio da produção capitalista desenvolvida no setor de transporte de passageiros em pequena escala. E, uma vez que convém à Uber a permanência nesse estágio transitório por quanto tempo seja possível, acreditamos que essa transformação só poderá ser levada a cabo precisamente através da organização e da luta dos trabalhadores uberizados, cujas reivindicações já caminham no sentido de uma conformação cada vez mais proletária das relações de produção neste ramo.

Feitas essas considerações gerais, podemos retornar ao caso inglês e avaliar o que realmente muda para os motoristas da Uber.

Tendências futuras da luta na Inglaterra e no mundo

A decisão da Suprema Corte britânica não foi um simples ato de bom-senso e benevolência, mas o ponto culminante de uma intensa luta.

A Uber começou a operar na Inglaterra em 2012 e, como em todos os outros lugares, pelos motivos já evidenciados acima, encontrou sua primeira oposição social expressiva nos taxistas. Como em todos outros lugares também, antes de arremeter contra a Uber, muitos taxistas arremeteram contra os carros dos motoristas uberizados, e diversos confrontos físicos ocorreram pelas ruas do país. Mas os protestos massivos dos taxistas britânicos em 11 de junho de 2014 e em 10 de fevereiro de 2016, bem como em 8 de novembro de 2016, são os exemplos mais notáveis do fim desse estágio de confrontos entre trabalhadores, e do começo das lutas contra os capitalistas. Contudo, embora essas manifestações tenham logrado uma articulação inclusive internacional, a luta dos taxistas – incapaz de refrear o desenvolvimento das forças produtivas e o decorrente revolucionamento da divisão social do trabalho – estava fadada a um desfecho inglório. Para o êxtase dos defensores liberais da Uber, cada novo protesto foi sucedido por uma ampliação ainda maior no número de usuários do sistema, motoristas e passageiros.

Mas, ao mesmo tempo em que estrangulava os taxistas, a Uber oxigenava cada vez mais um novo e mais potente material inflamável: seus próprios motoristas. Inicialmente dispersos, lutando batalhas judiciais isoladas, esses trabalhadores não tardariam a entrar em cena lutando como classe: exatamente quando a Uber recorreu à Suprema Corte contra a decisão em segunda instância, os motoristas realizaram, em 9 de outubro de 2018, sua primeira e vultosa greve nacional. Uma segunda greve, desta vez internacional, em 8 de maio de 2019 (dia em que a Uber se lançava na Bolsa de Valores), foi suficiente para deslocar significativamente a cena política em favor dos motoristas: tribunais ameaçaram impedir a Uber de renovar sua licença para operar em Londres, órgãos reguladores se mobilizaram para retardar a compra de concorrentes pela empresa e todo um pandemônio de declarações de parlamentares, na imprensa, asseguravam aos trabalhadores que suas demandas seriam atendidas.

Mas, dois anos depois, o que os tribunais burgueses puderam oferecer?

Segundo a decisão da Suprema Corte, a relação entre a Uber e seus motoristas deve ser regida nos termos daquilo que os ingleses chamam de contrato “zero hora” (chamado no Brasil de “contrato de trabalho intermitente”): um contrato de trabalho no qual não se define previamente quantas horas por semana o empregado deve trabalhar para o empregador. E como, então, seria calculada a jornada de trabalho dos motoristas? Com base no tempo de corrida efetivo; o tempo entre a aceitação de um chamado e a chegada com o passageiro no destino final. Seria sobre esse tempo de trabalho que se calcularia o salário mínimo [6] dos motoristas.

As próprias lacunas desta regulação já estabelecem as bases para todas as lutas que virão. Primeiro porque todo motorista sabe o quão grande é o tempo diário gasto esperando uma corrida, de modo que já despontam entre os trabalhadores uma série de críticas e reivindicações pela remuneração do tempo logado, mas em espera. Segundo porque, desconfigurada juridicamente a forma de trabalhador autônomo do motorista, este ainda permanece sob a forma econômica de produtor privado, arcando com os custos de seu veículo (aquisição, manutenção, gasolina, seguros, taxas legais etc) – custos esses que o motorista lutará para impôr à Uber, como mostra toda a história de luta dos proletários do transporte em diversos outros ramos (sendo os motoboys o exemplo mais evidente). Terceiro porque, limitada à Uber, a decisão judicial inflamará em todos motoristas ligados a outras plataformas o desejo de lutar por esses mesmos direitos. Finalmente porque, tendo excluído os entregadores da Uber Eats (e de todas demais plataformas) de uma regulação que, pela forma da realização de seu trabalho, poderia lhes servir com igual perfeição, não lhes deixa outra alternativa senão a luta. [7]

É verdade que a situação dos entregadores é diferente da situação dos motoristas, em diversos sentidos. Mas será à toa que, no último dia 28 de março, o sindicato dos entregadores conclamou os mais de 50 mil entregadores da Deliveroo (o maior aplicativo do ramo, no Reino Unido) a entrarem em greve em abril – mês em que a empresa pretendia registrar sua oferta inicial pública de ações na Bolsa de Valores?

Os trabalhadores por aplicativos ainda têm uma longa luta pela frente. Mas as reviravoltas recentes na Inglaterra mostram aquilo que é imediatamente possível: arrancar às empresas de transporte mediado por aplicativos garantias salariais mínimas para os trabalhadores, avançando na organização e na conscientização destes trabalhadores como parte das fileiras do exército proletário, e minando as bases materiais das ideologias pequeno-burguesas que lutam pelo predomínio sobre as mentes desses trabalhadores.

Mas essa luta tem ainda muito mais a conquistar. Apenas arrancando das mãos destas grandes empresas seus direitos monopolísticos sobre seus “softwares proprietários” será possível levar à última consequência seu potencial revolucionário, caminhando para a integração de todos motoristas independentes dispersos em uma frota comum universal apta a gerir por si mesma, democraticamente, a utilização desta ferramenta cibernética. Em suma: precisamos socializar a Uber. [8]

A cada dia mais, o desenvolvimento capitalista faz amadurecer as condições para a reorganização socialista da produção social. Cabe à classe trabalhadora colher seus frutos, livrando-se dos parasitas que os infestam.

Notas:

[1] Deixamos de lado a crítica a este argumento, uma vez que a própria empresa deixou de insistir nesse ponto de vista formalista – seguindo esta lógica, a cada pequena mudança realizada em seu regulamento, a Uber teria que ser novamente submetida a julgamento, para ver se agora, dessa vez, finalmente conseguiu encontrar uma redação boa o suficiente para escapar ao enquadramento jurídico de seu poder diretivo trabalhista…

[2] Para uma crítica ao conceito vulgar, não-marxista, de “indústria”; bem como para uma primeira abordagem da questão da produtividade do trabalho de transporte, vide: https://lavrapalavra.com/2018/05/27/os-operarios-do-transporte-setor-estrategico-do-proletariado/

[3] “Em sua configuração simples, que consideramos até o momento, a cooperação coincide com a produção em maior escala, porém não constitui uma forma fixa, característica de um período particular de desenvolvimento do modo de produção capitalista. No máximo, ela se aproxima dessa forma nos primórdios ainda artesanais da manufatura e em toda espécie de grande agricultura, que corresponde ao período manufatureiro e só se distingue essencialmente da economia camponesa pela quantidade de trabalhadores simultaneamente empregados e pelo volume de meios de produção concentrados. A cooperação simples continua a predominar naqueles ramos de produção em que o capital opera em grande escala, sem que a divisão do trabalho ou a maquinaria desempenhem um papel significativo.” MARX, Karl. O capital. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 509. Vale frisar que a distinção entre a forma cooperativa simples-manufatureira e a forma fabril da produção capitalista (diretamente relacionada à distinção entre subsunção formal e subsunção real do trabalho ao capital) não se restringe ao conceito vulgar de “fábrica” – ainda que a noção de “linha de montagem”, a ele associada, seja bastante útil para capturar as características concretas dessa forma fabril da produção capitalista: a produção que, com a introdução da maquinaria, integra o assalariado ao processo de trabalho sob a aparência de um apêndice dos processos mecanizados. É preciso reter em mente, contudo, também a distinção formal: a viabilização das condições para que, ao lado da transformação do mais-trabalho absoluto em mais-valor, possa existir também a produção de mais-valor relativo.

[4] “Destaquemos aqui uma observação de Kautsky que é particularmente importante do ponto de vista teórico – de que pequenas empresas comerciais e industriais (como as mencionadas acima), na sociedade capitalista, são, com frequência, apenas uma das formas da superpopulação relativa; pequenos produtores arruinados, operários incapazes de encontrar emprego, viram (às vezes temporariamente) pequenos comerciantes e vendedores ambulantes, ou alugam quartos ou leitos (também “empreendimentos”, que são registrados pelas estatísticas ao lado de todos os outros tipos de empreendimentos!) etc. O fato de essas profissões estarem superlotadas não indica de modo algum a viabilidade da pequena produção, mas sim o crescimento da pobreza na sociedade capitalista.” LÊNIN. Escritos de juventude. São Paulo: LavraPalavra Editorial, 2020, p. 214.

[5] “Como toda grande indústria, a do linho, por meio de oscilações contínuas, não cessa de produzir uma superpopulação relativa em sua própria esfera, mesmo com o crescimento absoluto da massa humana por ela absorvida. A miséria da população rural constitui o alicerce de gigantescas fábricas de camisas etc., cujo exército de trabalhadores se encontra, em sua maior parte, disperso pelo campo. Aqui voltamos a nos deparar com o sistema, descrito anteriormente, do trabalho domiciliar, que tem na

sub-remuneração e no sobretrabalho seus meios de ‘produção de supranumerários’”. (MARX, Karl. O capital. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 949-50.)

[6] Há um outro detalhe que vale a pena destacar. No Reino Unido, a idade mínima requerida para se cadastrar como motorista da Uber é de 21 anos. O salário mínimo, por sua vez, também é, no país, definido com base na idade do trabalhador! Enquanto o empregado com mais de 23 anos pode, a partir de abril de 2021, contar com um salário mínimo de £8,91 por hora, um trabalhador entre 21 e 22 anos faz jus a um salário inferior, de £8,36.

[7] “O leitor se recorda que a produção de mais-valor ou a extração de mais-trabalho constitui o conteúdo e a finalidade específicos da produção capitalista, abstraindo das transformações do próprio modo de produção decorrentes da subordinação do trabalho ao capital. Recorda-se que, segundo o que foi exposto até agora, apenas o trabalhador independente e, portanto, legalmente emancipado pode, como vendedor de mercadorias, firmar contrato com o capitalista. Assim, se em nosso esboço histórico desempenham um papel central, de um lado, a indústria moderna e, de outro, o trabalho daqueles que são física e juridicamente menores, a primeira se apresenta apenas como uma esfera especial, e o segundo como exemplo particularmente convincente da exploração do trabalho. Sem antecipar o subsequente desenvolvimento de nossa investigação, a simples conexão entre os fatos históricos nos mostra:

Primeiro: nas indústrias inicialmente revolucionadas pela força da água, do vapor e da maquinaria, nessas primeiras criações do moderno modo de produção, nas fiações e tecelagens de algodão, lã, linho e seda, o impulso do capital para a prolongação a todo custo da jornada de trabalho é primeiramente satisfeito. O modo de produção material modificado, ao qual correspondem as relações sociais modificadas entre os produtores, engendra, de início, abusos desmedidos e provocam, como reação, o controle social que limita, regula e uniformiza legalmente a jornada de trabalho e suas pausas. Por isso, durante a primeira metade do século XIX, esse controle aparece como mera legislação de exceção. Mal essa legislação se aplicara sobre o terreno original do novo modo de produção e se verificou que, nesse ínterim, não apenas muitos outros ramos da produção se haviam incorporado ao regime propriamente fabril, mas que manufaturas com métodos de funcionamento mais ou menos obsoletos, tais como olarias, vidrarias etc., ofícios arcaicos, como panificação e, por fim, mesmo o trabalho esparso, chamado de trabalho domiciliar, como a fabricação de agulhas etc.188, há muito já haviam caído sob a exploração capitalista tanto quanto a fábrica. A legislação foi, por isso, obrigada a livrar-se progressivamente de seu caráter excepcional, ou, onde ela é aplicada segundo a casuística romana, como na Inglaterra, a declarar arbitrariamente como fábrica (factory) toda e qualquer casa onde algum trabalho é executado.

Segundo: a história da regulação da jornada de trabalho em alguns modos de produção, bem como a luta que, em outros, ainda se trava por essa regulação, provam palpavelmente que, quando o modo de produção capitalista atinge certo grau de amadurecimento, o trabalhador isolado, o trabalhador como “livre” vendedor de sua força de trabalho, sucumbe a ele sem poder de resistência”.

[8] https://lavrapalavra.com/2015/08/31/como-socializar-o-uber/

Foto: Jaqueline Deister