Sobre a responsabilidade dos intelectuais
LAVRA PALAVRA
Por György Lukács, via gyorgylukacs.wordpress.com, traduzido por Bruno Bianchi
Escrito em 1948.
Durante a Segunda Guerra Mundial, muitos esperavam que a destruição do regime hitleriano também erradicasse a ideologia fascista. Mas o que tem sido visto desde o fim da guerra em diante na Alemanha Ocidental indica que a reação anglo-saxônica até mesmo salvou e fomentou as bases econômicas e políticas para um renascimento do fascismo hitleriano. As consequências são sentidas também no campo ideológico. Portanto, a ideologia do hitlerismo representa ainda hoje um problema atual, e não meramente histórico.
Se olharmos para a ascensão do fascismo, vemos a grave responsabilidade que os intelectuais têm na formação da ideologia fascista. Aqui, no entanto, as exceções louváveis são muito poucas.
Gostaria de pedir aos chamados homens práticos que não subestimem as questões ideológicas. Darei apenas um exemplo. Sabemos muito bem como a política hitleriana conduziu com necessidade férrea aos horrores de Auschwitz e Maidanek. Mas não devemos ignorar que um dos fatores que permitiu que esses horrores acontecessem foi a sistemática demolição do princípio da igualdade de todos os homens. Teria sido muito mais difícil levar a cabo a bestialidade organizada do fascismo contra milhões de pessoas se Hitler não tivesse conseguido enraizar nas massas alemãs mais amplas a convicção de que qualquer pessoa que não fosse “de raça pura” não era “propriamente” um homem.
Este é apenas um exemplo entre tantos. Deve apenas demonstrar que uma ideologia reacionária inocente não pode existir. A geração mais velha se lembrará muito bem de certas críticas “elitistas”, acadêmicas, ensaísticas, da crença “vulgar” na igualdade dos homens; e críticas análogas do progresso, da razão, da democracia, etc. A maioria dos intelectuais teve sua parte, de modo ativo ou receptivo, a este movimento. Em um primeiro momento, foram publicados sobre estes temas apenas livros esotéricos, ensaios engenhosos, mas depois, destes derivaram artigos de jornal, panfletos, conversas de rádio, e estes já atingiram um público de dezenas de milhares de pessoas. Finalmente, Hitler tirou destes discursos de salão e de cafés, destas palestras universitárias e ensaios, todo o conteúdo reacionário que poderia servir à sua demagogia de rua. Em Hitler não se encontra uma palavra que não tenha sido dita “em alto nível” por Nietzsche ou por Bergson, por Spengler ou por Ortega y Gasset. A chamada oposição individual é irrelevante do ponto de vista histórico. Que significa um fraco meio protesto de Spengler ou de George contra um incêndio mundial que se contribuiu a propagar com o próprio cigarro?
É, portanto, uma necessidade absoluta, e uma grande tarefa para os intelectuais progressistas, desmascarar toda esta ideologia também em seus representantes mais “eleitos”: mostrar como destas premissas surgiu por necessidade histórica a ideologia fascista, mostrar que uma linha reta leva de Nietzsche, passando por Simmel, Spengler, Heidegger etc. até Hitler; e que por outro lado homens como Bergson e Pareto, os pragmatistas e os semânticos, Berdjaev e Ortega, criaram uma atmosfera a partir da qual a fascistização da ideologia poderia extrair um rico alimento. Não é graças a eles que, até agora, o fascismo não nasceu na França, na Inglaterra ou nos Estados Unidos.
Devemos, portanto, destacar – também ideologicamente – o papel dominante que a Alemanha tem desempenhado até agora no desenvolvimento da ideologia reacionária, mas a luta decisiva contra a ideologia imperialista alemã nunca deve servir para justificar os irracionalistas, os inimigos do progresso, os aristocratas da ideologia de outros países. Seríamos míopes se acreditássemos que a nova reação que agora se desenvolve segue no campo ideologicamente absolutamente o mesmo caminho que a velha reação, que opera exatamente com os mesmos meios culturais.
Naturalmente, no nosso período, no período do imperialismo, a substância geral de qualquer reação é a mesma: as reivindicações hegemônicas do capital monopolista, o consequente perigo contínuo de ditaduras fascistas e de guerras mundiais; naturalmente, ditaduras e guerras vão oprimir e destruir com brutalidade ao menos igual quanto sob Hitler.
Mas disso não deriva de fato que o novo fascismo tentará se impor, em particular no campo ideológico, com métodos exatamente copiados daqueles de Hitler. Pelo contrário, a situação hoje apresenta já aspectos ideológicos quase opostos. A agressão de ontem veio de imperialismos que se consideravam sacrificados na repartição do mundo. Hoje a agressão é ameaçada por um potente imperialismo que quer completar a sua meia dominação mundial. Tem em seu rastro imperialismos que sentem vacilantes e ameaçados os seus impérios, que apoiam os EUA na esperança – objetivamente vã – de poderem conservar, ampliar e consolidar as suas posses.
Por outro lado, os aspectos gerais do imperialismo permanecem inalterados: ainda hoje os seus objetivos estão em conflito com os interesses de suas próprias massas e com os interesses dos povos que defendem a sua liberdade. E este contraste, a necessidade que surge para os imperialistas agressivos de oprimir os povos no país e no exterior, e ao mesmo tempo de mobilizar demagogicamente as próprias massas populares para a nova repartição do mundo, para a nova guerra mundial, demonstra que a política interna e externa fascista, cujos contornos hoje aparecem já claros, deve seguir um curso obrigatório.
Com toda probabilidade, esta nova fase de desenvolvimento do imperialismo não se chamará fascismo. E por trás da nova nomenclatura se encerra um novo problema ideológico: o imperialismo “faminto” dos alemães gerou um cinismo niilista que rompia abertamente com todas as tradições da humanidade. As tendências fascistas que hoje crescem nos EUA trabalham com o método de uma hipocrisia niilista: destroem a autodeterminação interna e externa dos povos em nome da democracia; exercitam a opressão e a exploração das massas em nome da humanidade e da civilização.
Um outro exemplo. Para Hitler, foi necessário construir uma teoria racial própria, sobre bases gestadas por Gobineau e Chamberlain, para mobilizar demagogicamente as massas na liquidação da democracia e do progresso, do humanismo e da civilização. Os imperialistas dos EUA têm uma tarefa mais fácil: basta que tornem universal e sistemática a velha prática que eles têm seguido em relação aos negros. E como até agora eles conseguiram “conciliar” esta prática com a ideologia que faz dos EUA o paladino da democracia e do humanismo, é fácil entender por que aqui não é difícil surgir uma ideologia similar do niilismo hipócrita que pode conseguir dominar com meios demagógicos. Que esta universalização e sistematização está atingindo rápidos progressos, pode ser vista por qualquer um que acompanhe a sorte dos melhores intelectuais progressistas dos EUA, como Gerhart Eisler ou Howard Fast. Como estes métodos vêm se generalizando há muito tempo, o tem demonstrado há muito um escritor moderado como Sinclair Lewis em Elmer Gantry.
Aqui, naturalmente, estamos tratando apenas da forma abstratamente pura do novo fascismo. O seu desenvolvimento real segue às vezes caminhos mais complicados, especialmente na França e na Inglaterra, onde a situação interna da reação imperialista é muito mais difícil. Mas, para voltar aos problemas ideológicos, basta considerar o existencialismo e se verá facilmente que a tentativa de trazer em harmonia o niilismo aberto do Heidegger pré-fascista com os problemas de hoje faz vergar o cinismo para a hipocrisia.
Ao invés, peguemos Toynbee. O seu livro representa o maior sucesso da filosofia da história depois de Spengler. Toynbee estuda o surgimento e o declínio de todas as civilizações e chega à conclusão de que nem o domínio das forças naturais nem aquele das circunstâncias sociais são capazes de influenciar este processo; ele também quer mostrar que todas as tentativas de influenciar o curso do desenvolvimento através do uso da violência – isto é, todas as revoluções – estão condenadas a priori ao fracasso. Vinte e uma civilizações já desapareceram. Uma só, a Europa Ocidental, cresceu até os dias de hoje porque no seu início Jesus encontrou esta nova via não violenta de renovação. E hoje? Toynbee resume seus seis volumes publicados até agora dizendo que Deus – porque sua natureza é tão constante quanto a dos homens – não nos recusará uma nova salvação enquanto rezarmos a Ele com suficiente humildade.
O melhor que, em minha opinião, o mais fanático defensor da guerra atômica nos EUA pode esperar é que os intelectuais progressistas simplesmente peçam este perdão, enquanto ele pode organizar sem perturbações a guerra atômica.
Sem dúvidas esta tendência fatalista e passiva de Toynbee indica que estamos apenas na fase inicial do desenvolvimento ideológico do novo fascismo. (Pense-se no fatalismo de Spengler em oposição ao ativismo niilista e cínico de Hitler). Mas isto torna maiores, não menores, as tarefas e as responsabilidades dos intelectuais: ainda é hora de dar uma viragem no desenvolvimento ideológico dos principais povos civilizados, ou ao menos de tentar deter o curso reacionário agora iniciado.
Mas para conseguir isso, é preciso, acima de tudo, clareza no campo ideológico. O que significa aqui clareza? Não que expressemos nossos pensamentos de forma clara, estilisticamente perfeita (este dom está amplamente presente nos intelectuais), mas que saibamos claramente isto: onde estamos, onde o desenvolvimento nos leva, o que podemos fazer para influenciar o seu curso?
Sob este aspecto os intelectuais do período imperialista se encontram em uma posição muito desfavorável. Porque eles nunca poderão, objetivamente, estar igualmente à vontade em todos os setores da ciência, cada época traz para o centro dos interesses determinadas ciências, determinados ramos do saber, determinados autores considerados clássicos. Assim, no século XVIII a física newtoniana desempenhou uma grande função progressista na libertação dos intelectuais franceses dos antigos preconceitos teológicos e da ideologia monárquico-absolutista que esses preconceitos mediavam. Na França daquela época, estimulou a preparação ideológica da grande revolução.
Hoje, seria necessário e urgente que este posto na vida intelectual fosse ocupado pela economia política, pela economia entendida no sentido marxiano como ciência das “formas de existência, das determinações da existência” primárias dos homens; como ciência das relações reais entre os homens, das leis e das tendências do desenvolvimento destas relações. Mas na realidade, encontramos precisamente tendências opostas. A filosofia, a psicologia, a historiografia etc., do período imperialista tentam todas depreciar o conhecimento econômico, difamá-lo declarando-o “superficial”, “inessencial”, indigno de uma visão de mundo mais “profunda”.
Qual é a consequência? Os intelectuais, não podendo discernir as bases objetivas da sua própria existência social, tornam-se cada vez mais vítimas da fetichização dos problemas sociais e, através dela, vítimas indefesas de qualquer demagogia social.
Seria fácil citar exemplos. Mencionarei apenas alguns dos mais essenciais. Em primeiro lugar, a fetichização da democracia. Isto é, nunca se pergunta: democracia para quem e com exclusão de quem? Nunca se pergunta qual é o verdadeiro conteúdo social de uma democracia concreta, e ao não fazer estas perguntas, oferecemos um dos mais sólidos suportes ao neofascismo que agora se está formando. Depois há a fetichização do desejo de paz dos povos, expressa em sua maioria sob a forma de pacifismo abstrato, na qual o desejo de paz não só é degradado ao nível da passividade, mas se torna até mesmo a palavra de ordem para a anistia dos criminosos de guerra fascistas e facilita assim a preparação de uma nova guerra. Há ainda a fetichização da nação. Por trás desta fachada, desaparecem as diferenças entre os legítimos interesses vitais nacionais de um povo e as tendências agressivas do chauvinismo imperialista. Podemos bem lembrar como esta fetichização teve os seus efeitos imediatos na demagogia nacional de Hitler. Ainda hoje esta é operante em sua forma direta, mas esta fetichização também é explorada de modo indireto e não menos perigoso, especialmente nos EUA: é a ideologia do chamado supranacionalismo, de um governo mundial supranacional. Como a forma direta hitleriana visava uma pax germânica para o mundo, também a forma indireta tende a uma pax americana. Ambas as formas, se postas em ação, implicariam na destruição de toda autodeterminação nacional, de todo progresso social.
Há, finalmente, a fetichização da cultura. A partir de Gobineau, Nietzsche e Spengler, tem estado na moda negar a unidade da cultura do gênero humano. Quando, depois da libertação do nazismo, participei pela primeira vez de uma conferência internacional no Recontres internationales de Genebra de 1946, na ocasião Denis de Rougemont e outros falaram sobre a defesa da cultura europeia sustentando ideias fundadas em uma clara separação entre a cultura europeia ocidental e aquela russa. Defender a cultura europeia ocidental significava, portanto, rejeitar a russa (como pensa também Toynbee). Que objetivamente esta teoria é de fato privada de valor, que a atual cultura europeia ocidental é profundamente impregnada de influências ideológicas russas, e em sua maioria precisamente em suas criações mais altas, é revelada pelo olhar mais superficial ao estado atual da cultura. Sem Lev Tolstoi, como se poderia imaginar, para citar apenas alguns nomes, a literatura de Shaw a Roger Martin du Gard, de Romain Rolland a Thomas Mann? Estas teorias exploram demagogicamente a circunstância de que no contato imediato, na primeira impressão, a cultura russa (e em maior razão a soviética) parece estranha aos intelectuais da Europa ocidental. Mas todo conhecedor da literatura deve confirmar que na França foi muito mais difícil acolher Shakespeare que Tolstoi. No entanto, o senhor de Rougemont e os seus amigos não erguem uma muralha da China entre a cultura da França e a da Inglaterra.
Mas é ainda mais importante ver com clareza o significado social destas teorias. O desenvolvimento cultural russo – culminando na cultura soviética – encarna hoje o futuro derivante de nossa cultura, assim como o fez a cultura inglesa do século XVIII para a França e o ano de 1793 para todos os progressistas europeus. A fetichização da cultura serve aqui para mascarar o protesto do que está em declínio contra o que antecipa o futuro, e precisamente na própria cultura. Os Rougemont e os Toynbee, com as suas teorias, querem estender um cordon sanitaire ao redor da Rússia, ao redor da União Soviética, e prestam assim – deliberadamente ou não, não importa – um serviço à preparação ideológica da guerra.
Parece que me afastei do argumento da economia. Na realidade, falei sempre exclusivamente de economia. O que significa, de fato, a fetichização? Significa que algum fenômeno histórico se desprende de seu real terreno social e histórico, que o seu conceito abstrato (e geralmente apenas algum elemento deste conceito abstrato) é transformado em fetiche, adquire uma existência supostamente autônoma, se torna uma entidade em si mesma. A grande conquista da verdadeira economia reside precisamente em dissolver esta fetichização, em mostrar concretamente o que significa este ou aquele fenômeno histórico no processo total do desenvolvimento, qual é o seu passado e qual é o seu futuro.
A burguesia reacionária sabe muito bem porque tenta difamar a verdadeira economia por meio de seus ideólogos, assim como a reação eclesiástica dos séculos XVI-XVIII sabia muito bem porque lutava contra a nova física. Hoje, um interesse vital da burguesia imperialista é destruir a capacidade de orientação histórico-social dos intelectuais. Se hoje numerosos intelectuais não podem já ser transformados em absolutos apoiadores da reação imperialista, devem ao menos vagar impotentes, sem capacidade de orientação, em um mundo incompreendido.
Confessamos com vergonha: esta manobra da burguesia reacionária é largamente bem sucedida; ela desviou um bom número dos melhores intelectuais. Muitos bons representantes da cultura atual – colaboradores inconscientes nesta intenção da reação imperialista – criaram inclusive uma filosofia que tende a mostrar que seria filosoficamente impossível ter uma orientação social. Esta linha varia do agnosticismo social de Max Weber ao existencialismo.
Mas esta não é uma condição indigna dos intelectuais? Talvez eles tenham adquirido as suas capacidades, o seu saber, a sua cultura espiritual e moral apenas para que, em um ponto de viragem histórico, quando se está decidindo o destino do gênero humano, quando a liberdade e a opressão barbárica estão engajadas na batalha decisiva, eles tenham que se perguntar como Pilatos: o que é a verdade? E não é indigno deles apresentar como uma particular profundidade filosófica esse não saber, este não querer saber?
Nós adquirimos o nosso saber, desenvolvemos a nossa cultura espiritual para entender o mundo melhor do que o entende o homem médio. Mas na realidade, vemos o oposto. Arnold Zweig descreve muito bem um intelectual honesto que por anos se deixa enganar pela demagogia do imperialismo alemão para ao fim confessar que os simples trabalhadores tinham compreendido exatamente e claramente a situação já anos antes.
Muitos intelectuais sentem já hoje por quem estão realmente ameaçadas a liberdade e a cultura. Muitos deles se voltam, mesmo com um forte pathos moral, contra o imperialismo, contra a preparação da guerra. Mas a nossa dignidade como representantes da cultura exige precisamente que deste sentimento nós façamos um saber. E isto só pode ser alcançado através da ciência da economia política, mediante a economia do marxismo.
Os intelectuais estão em uma encruzilhada. Devemos preparar um ponto de viragem histórico em direção ao progresso e lutar por ele na linha de frente, como os intelectuais franceses do século XVIII e os russos do século XIX, ou devemos ser vítimas impotentes, colaboradores abúlicos de uma reação barbárica, como os intelectuais alemães da primeira metade do século XX? Não se pode hesitar em decidir qual atitude é digna, e qual é indigna, da essência, do saber, e da cultura intelectual.