Carolina Maria de Jesus: Quarto de Despejo

imagemPor Gabriel Galego

JORNAL O MOMENTO – PCB DA BAHIA

Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) foi uma escritora fundamental no desenlace da literatura moderna do século XX. Vinda da Favela do Canindé, da Zona Norte de São Paulo, Carolina viveu boa parte da vida como catadora, passando por muitas dificuldades financeiras, lutando por sua sobrevivência e contra a pobreza extrema.

Seu primeiro livro, que fez sucesso imediato e causou grande espanto nos meios literários, foi “Quarto de Despejo: diário de uma favelada”. Escrito no final de 1950 e editado em 1960, o romance narra as dificuldades de uma mãe, mulher negra, moradora da favela, que enfrenta diariamente os demônios da sociedade: a inveja dos outros, o racismo estrutural, a fome que ronda, os vícios – como a embriaguez –, que constituem a realidade da classe trabalhadora brasileira.

O romance é estruturado em forma de diário, contando as labutas cotidianas de uma mãe solteira, negra e moradora da favela em São Paulo. Carolina de Jesus nos conta das muitas vezes que pedia ossos nos frigoríficos, usados para cozinhar batatas ou fazer sopa para os filhos. Durante o livro, essa é uma trajetória comum em sua condição de falta de dinheiro até para se alimentar. Ora, essa era a condição da classe trabalhadora entre 1950 e 60: pobreza extrema, fome e total precarização das condições de vida. Éramos largados às traças, explorados até a última gota de suor e sangue – principalmente o povo negro e os indígenas.

Hoje, depois de setenta anos, pudemos novamente constatar a veracidade da sabedoria popular: o mundo dá voltas. A história se repete, como diria Marx. Infelizmente, para a classe trabalhadora brasileira se repetiu como tragédia outra vez. Agora, em outro contexto histórico, vivemos o ápice da política econômica neoliberal, agenciado pelo fascismo bolsonarista e pelo Partido Fardado, em resposta à crise econômica generalizada, aprofundada pela pandemia. A fome reaparece no cenário brasileiro como um problema social latente e alarmante.

A notícia triste das famílias nas filas em Frigoríficos de Cuiabá, na busca por ossos para matar a fome, nos remetem diretamente às narrativas de Carolina de Jesus. A escritora dizia que “quem passa fome tende a pensar no próximo, e nas crianças”. Ora, a burguesia brasileira nunca passou fome – são altamente individualistas e nem mesmo passam por suas cabeças as condições de nossas crianças. No país que lucra bilhões com o agronegócio, o povo passa fome. Essa é uma contradição que o país ainda carrega.

No Brasil, o povo é maltratado, superexplorado, extorquido de suas condições de vida plena e bem-estar. A nossa classe passa fome e sede, morre aos montes na pandemia, mas continua produtiva para o capital. Em tempos de crise, os problemas latentes do Brasil reaparecem em cena: são demônios do subdesenvolvimento e da dependência, às vezes colocados para dormir, mas que despertam outra vez. Hoje, a fome e a insegurança alimentar continuam a ser a dura realidade – ela foi contada pela voz de Carolina de Jesus e é vista hoje a olhos nus, para quem quiser ver.