Brasil: um país de barriga vazia
Foto: Bruno Namorato/Midia Ninja
No campo e na cidade, a insegurança alimentar cresce no Brasil. Pesquisadores discutem o impacto da pandemia, mas também o cenário que já se desenhava antes da crise sanitária.
Cátia Guimarães – EPSJV/Fiocruz
Existe a fome, a memória da fome e o medo da fome. Primeiro o dinheiro ‘diminui’. E a percepção de que a pobreza está piorando acende o alerta de que, em breve, pode faltar comida no prato. Conforme a situação piora, no malabarismo da economia doméstica, as famílias começam a substituir os alimentos que costumavam consumir por outros mais baratos, ao mesmo tempo em que os adultos passam a se alimentar menos para garantir a necessidade das crianças. Até que chega o momento em que é preciso cortar mais fortemente na quantidade: agora, todos, inclusive as crianças da casa, já não conseguem fazer as refeições completas. Do primeiro ao último estágio, esse é o circuito que descreve os diferentes níveis de insegurança alimentar que atingem quase117 milhões de brasileiros hoje, segundo o inquérito ‘Insegurança Alimentar e Covid-19 no Brasil’, produzido pela Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan). “A situação é extremamente grave. E o país vai sofrer muito para se recuperar”, alerta Elisabetta Recine, coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (UnB).
É verdade que nem sempre se chega ao último nível, mas tampouco é preciso passar pelos outros dois para alcançar o momento da fome. “Às vezes são processos muito rápidos”, diz o pesquisador Francisco Menezes, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), extinto em 2019. Segundo dados da pesquisa da Rede Penssan, 73,4 milhões de brasileiros estão no primeiro estágio, considerado leve, 24,2 milhões no segundo, moderado, e nada menos do que 19 milhões encontram-se em insegurança alimentar grave, o nome científico para fome. Se tomarmos os dados do estudo desenvolvido por um grupo de pesquisa da Universidade de Berlim em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a UnB, o cenário é ainda mais devastador: 59,4% de insegurança alimentar total, sendo 15% em situação de fome. Proporcionalmente, esse cenário atinge mais fortemente a população das áreas rurais: 12%, contra 8,5% dos moradores de zonas urbanas. Mas, em termos absolutos, o maior número de famintos hoje – 15,4 milhões de pessoas – vive nas cidades. E, apesar das determinações estruturais comuns, em cada um desses cenários a fome pode ter uma ‘cara’ diferente.
A renda caiu
“No limite, o que determina a insegurança alimentar é a renda”. A frase é da pesquisadora Ana Maria Segall, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que participou do inquérito da Rede Penssan. A razão é óbvia: embora, no campo, as famílias muitas vezes produzam seu próprio alimento, “no limite”, se isso não for possível, elas precisam de dinheiro para comprar comida. A principal fonte de renda é o salário, ou seja, aquela que vem do trabalho de cada um. E, não por acaso, a pesquisa mostrou que a insegurança alimentar grave foi seis vezes mais alta nos domicílios em que a pessoa de referência da família estava desempregada. “Emprego e renda são indicadores comuns, tanto para o rural quanto para o urbano”, diz Segall.
Entre as 2.180 pessoas ouvidas no Inquérito, 49,7% declararam que houve redução da renda familiar em função da pandemia e 19% relataram perda de emprego de algum dos membros. De fato, os dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam uma taxa de desocupação de 13,5% em 2020, um recorde em toda a série histórica, que começou em 2012. Essa foi a média anual, mas houve momentos específicos em que a situação ficou ainda pior: no terceiro trimestre do ano passado, chegou a 14,6%.
O estrago, de fato, foi grande. No entanto, quando pensam as determinações do aumento da fome e da insegurança alimentar em geral no Brasil, os pesquisadores ouvidos pela Poli chamam atenção para um processo que se agravou em 2020 mas começou muito antes de o novo coronavírus pousar por aqui. “Não gostamos simplesmente da manchete ‘A pandemia levou à fome’, porque ela é uma meia verdade”, afirma Francisco Menezes. Para nos determos, por ora, nos dados sobre o emprego, vale reconhecer que, no trimestre que envolve os meses de janeiro, fevereiro e março de 2020, portanto imediatamente antes da chegada da pandemia ao Brasil, 12,2% da população estava desocupada. E, no intervalo de um ano, em meio à crise sanitária, ainda de acordo com o IBGE, outras 7,3 milhões de pessoas perderam a ocupação que tinham – uma diferença nada irrelevante.
Uma visão de mais longo prazo, no entanto, permite perceber uma clara coincidência entre o cenário de desemprego, traçado na série histórica do IBGE, e a mudança na curva de melhoria da segurança alimentar da população brasileira. De 2012 até hoje, de acordo com os gráficos sistematizados a partir da Pnad, a menor taxa de desocupação do país se deu no período de outubro a dezembro de 2013, quando esse problema atingia 6,2% da população. Com pequenas oscilações, ela chegou a 6,5% no último trimestre de 2014, momento a partir do qual passou a subir vertiginosamente, até mais que dobrar, chegando a 13,7% no início de 2017. Esse foi o topo. Daí em diante, houve altos e baixos até se alcançar o novo recorde trazido pela pandemia, mas o fato é que, em todo esse período, essa taxa nunca foi inferior a 11%.
A relação entre renda, emprego e barriga cheia fica bem clara quando se observa que, não por acaso, a qualidade e a quantidade de alimentos acessíveis à população brasileira começaram a cair no mesmo período em que os indicadores do mercado de trabalho degringolaram. O primeiro grande diagnóstico nacional sobre a situação de segurança alimentar foi feito pela Pnad em 2004 e repetido em 2008 e 2013. A comparação do resultado das três pesquisas mostra um cenário de melhora. O total da população em contexto de segurança alimentar cresceu de 64,8% em 2004 para 77,1% em 2013. Já a proporção dos brasileiros que passavam fome, identificada como insegurança alimentar grave, caiu a menos da metade: de 9,5% para 4,2%, no mesmo período. Logo no ano seguinte, 2014, o Brasil foi retirado do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), um mapeamento que identifica os países em que a insegurança alimentar grave atinge mais de 5% da população.
“A gente já entrou na pandemia numa situação muito crítica por conta do desemprego, da precarização do trabalho e da redução do orçamento de políticas públicas que foram fundamentais para diminuir o número de pessoas em situação de fome no Brasil”
Elisabetta Recine
O levantamento seguinte também foi feito pelo IBGE. A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) 2017-2018 – quando o desemprego bateu recordes no país – indicou uma inversão da curva: a segurança alimentar voltou a níveis piores do que os de 2004 (63,3%) e, consequentemente, a insegurança alimentar aumentou em todos os graus: a quantidade de brasileiros em situação de fome subiu para 5,8%. “Em cinco anos, nós regredimos 15”, lamenta Recine. E isso foi antes da crise sanitária. Agora, no Inquérito feito no final do ano passado, o volume de pessoas em segurança alimentar sofreu nova queda (para 44,7%), muito pressionado pelo aumento da insegurança leve, que foi a que mais subiu, mas também tragicamente acompanhado pela ampliação da fome, que hoje alcança 9% da população. “A pandemia aprofunda esse processo que a gente já estava vivendo”, diz Recine. “Mas a gente já entrou na pandemia numa situação muito crítica por conta do desemprego, da precarização do trabalho e da redução do orçamento de políticas públicas que foram fundamentais para diminuir o número de pessoas em situação de fome no Brasil”, completa.
O impacto da precarização do trabalho na insegurança alimentar também foi demonstrado pelo Inquérito. Por um lado, de acordo com Ana Maria Segall, a possibilidade de fazer ‘bicos’, como “vender cafezinho no ponto de ônibus ou bala no sinal”, é uma “estratégia de sobrevivência” e de fuga da fome – muito mais presente, inclusive, para as populações urbanas do que para quem vive na área rural. Por outro, os dados levantados em 2020 mostraram que, de forma geral, a fome foi quatro vezes maior nos domicílios em que a pessoa de referência estava na informalidade. E, também aqui, o cenário precário vem de antes: o país fechou 2019, de acordo com o IBGE, com 39,3 milhões de trabalhadores informais, 41,6% da população ativa. Um mês antes de a Covid-19 chegar ao Brasil, esse número caiu para 38 milhões, formando o contingente mais fortemente atingido pela dificuldade de cumprir o isolamento requerido pela pandemia, exatamente por não ter renda garantida. Em 2020, ao longo do primeiro ano da crise sanitária, chegou a 39,9 milhões.
A aposentadoria como fonte de renda também apareceu com destaque – nesse caso, positivo – na pesquisa desenvolvida pelo consórcio da Universidade de Berlim, UFMG e UnB. De acordo com o estudo, em relação à faixa etária, os melhores índices de segurança alimentar (42,6%) foram encontrados nos domicílios com moradores de 60 anos ou mais. “A maioria desses lares contam com aposentadoria”, explica Eryka Galindo, da Universidade de Berlim e integrante do grupo de pesquisa, lembrando que, diferentemente de benefícios assistenciais como o Bolsa Família e o auxílio emergencial, essa renda não pode ser inferior a um salário mínimo por mês. “É algo mais robusto, embora o salário mínimo careça de retomar sua valorização”, resume.
Esse, aliás, é um dos problemas que os pesquisadores apontam como uma das determinações do aumento da pobreza e da insegurança alimentar no país. Como a valorização do salário mínimo afeta diretamente o poder de compra, principalmente nas cidades, a estagnação dessa política, ou o reajuste abaixo da inflação, tem um importante impacto na capacidade maior ou menor de adquirir alimentos. E isso é particularmente relevante porque, como explica Segall, por incrível que pareça, a alimentação muitas vezes não pode ser a primeira prioridade de gasto das famílias. “Se eu tenho recursos muito limitados, com o que tenho que gastar primeiro? Com aluguel, porque se não pagar eu vou para a rua. Tenho que pagar luz e água, porque senão, não tenho nem como cozinhar. Ainda mais agora, com o preço do gás do jeito que está!”, explica a pesquisadora, ressaltando que, nas soluções improvisadas, é mais fácil conseguir ajuda – doações e empréstimos – para comida do que para outras contas. Ela exemplifica: “Agora, com a pandemia, os medicamentos e as questões de saúde jogam a alimentação para uma prioridade ainda mais baixa”.
Se o desemprego e a informalidade são fatores que ampliam a insegurança alimentar, como demonstraram os estudos recentes, o acompanhamento feito pela pesquisa sobre Cesta Básica de Alimentos, desenvolvida pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), tem mostrado que, mesmo entre boa parte dos empregados, o salário também não é suficiente para botar comida na mesa.
A pesquisa acompanha mensalmente o preço de 13 produtos que compõem a cesta básica e calcula o tempo de trabalho necessário para se conseguir adquiri-los. De acordo com o último relatório disponível até o fechamento desta reportagem, em maio deste ano o brasileiro que recebe um salário mínimo comprometeu, em média, quase 55% do que ganhou para comprar os alimentos básicos para uma pessoa adulta. Por isso, Galindo faz questão de ressaltar que, ainda que estejam em situação melhor do que os domicílios com jovens e crianças, nas casas com pessoas idosas “também não são de alegrar”os níveis de segurança alimentar. “Como boa parte dos aposentados, além de boa parte das pessoas que estão empregadas, recebem salário mínimo, esse referencial é muito importante no contexto da distribuição de renda no país”, diz Silvio Porto, ex-diretor de Política Agrícola e Informações da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
Outra fonte de renda que, segundo pesquisadores ouvidos por esta reportagem, também não estava no seu pleno funcionamento quando a pandemia chegou é o benefício do Bolsa Família. E aqui o foco é exatamente a parcela mais pobre da população, mais vulnerável à insegurança alimentar. Em março de 2020, quando começaram os primeiros casos de Covid-19 no país, notícias na imprensa denunciavam um corte superior a 158 mil benefícios, mais de 60% deles no Nordeste. Na época, a explicação do Ministério da Cidadania foi que 300 mil famílias tinham se “emancipado”, ou seja, ultrapassado o corte de renda que daria direito ao Bolsa Família. Ainda segundo declarações da Pasta aos jornais, outras 185 mil teriam ingressado no Programa – mas a diferença entre o número que saiu e o que entrou não foi reposta. Pouco antes, em janeiro do ano passado, o jornal O Globo conseguiu, via Lei de Acesso à Informação, dados que mostravam uma fila de 500 mil pessoas que demandavam o benefício, mas ainda não tinham sido incluídas. Segundo a reportagem, enquanto, de janeiro a maio de 2019, mais de 260 mil novas ‘bolsas’ eram concedidas por mês, naquele momento esse número tinha caído para pouco mais de 5 mil novos benefícios mensais.
“A pandemia chega num país em que as políticas sociais estão frágeis. Tudo que tinha se constituído como uma rede de apoio social em termos de políticas públicas estava extremamente frágil”, resume Elisabetta Recine. Em dezembro de 2020, dados obtidos pelo jornal Folha de S. Paulo mostravam que, em setembro, já em meio à crise sanitária, quase um milhão de pessoas tinham requerido o Bolsa Família e, embora tenham atendido a todos os pré-requisitos, não haviam sido incluídas no Programa. A pesquisadora completa: “A alimentação é a ponta do iceberg de um processo de desestruturação da capacidade de sobrevivência das famílias, dos domicílios, das pessoas. Se alguém dedica a maior parte do seu orçamento para comprar comida, que é uma necessidade básica, e isso não está sendo suficiente nem para se alimentar, imagina o que está acontecendo com o resto”.
O auxílio também caiu
“Com o agravamento do desemprego, sem esses programas mais permanentes e com a vinda da pandemia, passamos a ter um contingente da população com muita necessidade. O auxílio emergencial veio cobrir essa situação”. A constatação é de Ana Maria Segall, referindo-se ao primeiro formato do benefício oferecido, no valor de R$ 600, que chegou a R$ 1.200 em famílias lideradas por mães solteiras. Ela reconhece que, se os dados do Inquérito tivessem sido coletados nesse período, o resultado seria bem diferente. “Certamente, a insegurança alimentar não teria aumentado tanto quanto aumentou”, aposta. Muita gente não conseguiu acesso ao benefício – o caminho era por um aplicativo que dependia de equipamento e internet –, mas quase 68 milhões de brasileiros, entre desempregados, trabalhadores informais e pessoas de baixa renda, receberam.
“Houve uma elevação da condição socioeconômica no país como há muito tempo não se via. Isso mostra exatamente o quanto a população brasileira é empobrecida. Porque R$ 600 fizeram uma brutal diferença na vida de muita gente”
Silvio Porto
O impacto foi grande: na renda e, consequentemente, na garantia de comida na mesa. Dados da pesquisa ‘Os efeitos da pandemia sobre os rendimentos do trabalho e o impacto do auxílio emergencial: os resultados dos microdados da PNAD Covid-19 de julho’, desenvolvida pelo IBGE, mostraram que, nos domicílios mais pobres, o auxílio fez com que, mesmo em meio à crise sanitária, a renda fosse quase um quarto maior do que a habitual. “Houve uma elevação da condição socioeconômica no país como há muito tempo não se via. E com tão pouco dinheiro! Isso mostra exatamente o quanto a população brasileira é empobrecida. Porque R$ 600 fizeram uma brutal diferença na vida de muita gente”, analisa Silvio Porto. Ao mesmo tempo, o estudo observou que, naquele mês de 2020, nada menos que 4,4 milhões de casas sobreviveram apenas com o auxílio.
O fato é que foi bom, mas durou pouco. Em abril de 2020, o Congresso Nacional aprovou, em lei, o benefício de R$ 600 por no mínimo três meses, como parte do enfrentamento à emergência de saúde pública. O governo federal prorrogou o benefício por dois meses nesse valor e, depois, o reduziu à metade. Foi exatamente o retrato desse momento que as duas pesquisas mostraram. “Elas tiveram o mérito de captar o que já se sentia a partir da redução do auxílio à metade”, diz Francisco Menezes.
E se é verdade que os resultados teriam sido melhores alguns meses antes, é provável também que tivessem piorado logo depois. Isso porque, na sequência, o benefício ficou suspenso de janeiro a abril deste ano. “Foram três meses de muita miséria”, lamenta Menezes, lembrando que organizações que participaram de redes de solidariedade, principalmente na distribuição de alimentos, relatavam o aumento dos pedidos e das filas nesse período. Quando o auxílio voltou a ser pago, seu valor caiu novamente: hoje está em R$ 250 em média, podendo chegar a no máximo R$ 375 para famílias de mulheres com filhos.
E o preço subiu
Como se não bastasse tudo isso, no meio da crise, o preço de alguns produtos da cesta básica não só não diminuiu para se adequar à perda de renda da população como subiu mais do que o esperado. Embora não tenha sido o único, o grande destaque do noticiário foi o arroz, que aumentou 21,3% entre janeiro e agosto de 2020, fazendo com que o saco de cinco quilos chegasse a custar R$ 40 nos supermercados. O professor Silvio Porto, que foi diretor da Conab de 2003 a 2014, reconhece que uma parte da pressão nos preços pode ter se dado em função de uma maior procura pelos alimentos da cesta básica exatamente naquele momento em que o auxílio emergencial de R$ 600 aumentou a renda da população mais pobre. “O fato de as pessoas terem acessado o auxílio emergencial num patamar de meio salário mínimo gerou, sem dúvida, uma demanda por alimento. As pessoas realmente passaram a poder comer mais”, diz.
A maior procura por alimentos, no entanto, é um motivo conjuntural que, inclusive, durou pouco, já que logo o valor do benefício foi reduzido. A razão estrutural, na avaliação do professor, é o modelo da política de exportações do país e a falta de intervenção do Estado para garantir melhores condições de aquisição de alimentos pela população. Por isso, para ele, a alta do preço do arroz era uma “tragédia anunciada”. Ele explica: “O fato de que 80% da soja produzida pelo país vá para fora, e de que o produto tem um preço muito melhor que o arroz e o feijão, com muito mais facilidade na venda, fez com que, sobretudo nos últimos dez anos, o arroz e o feijão perdessem relevância [na produção brasileira]”.
Enquanto a renda caía, os preços de vários alimentos da cesta básica subiram
A pedido da reportagem – e a partir de números do IBGE e da FAO, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura –, o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Paulo Alentejano produziu tabelas comparativas sobre produção e exportação de alimentos no Brasil nas três últimas décadas, visando entender melhor a alta dos preços. Os dados mostram que, enquanto a área de coleta de soja, que é um forte produto de exportação, cresceu de 11,4 milhões de hectares em 1990 para 35,8 milhões em 2019, a do arroz caiu de pouco menos de 4 milhões para 1,7 milhões de hectares. Essa redução se deu principalmente em espaços de lavoura sequeira, ao mesmo tempo em que, na região Sul, crescia o plantio irrigado, que tem uma produtividade muito maior. Por isso, mesmo com a diminuição total de área, a quantidade de arroz produzido no Brasil cresceu de 7,4 milhões para 12,3 milhões de toneladas em 2015. De acordo com Silvio Porto, no entanto, a partir de 2009, a área de plantação de arroz do Rio Grande do Sul, principal estado produtor, também começou a cair, chegando a 2019 com o mesmo patamar de 2000. Nesse mesmo ano, a quantidade de arroz produzido caiu para 10,3 milhões. “Não são só o arroz e o feijão que estão diminuindo área [plantada]. É mandioca, batata, banana, cebola: todos esses produtos reduziram área nos últimos dez anos”, completa Porto. A relação desses números com a alta dos preços e, consequentemente, com a insegurança alimentar fica mais clara quando se observam os dados sobre a disponibilidade de alimentos por habitante. Ainda segundo a tabulação produzida por Alentejano, o Brasil produzia 50,5 kg de arroz per capita em 1990. Essa quantidade chegou a 65,5 kg em 2000 e, em 2019, estava em 46,4 kg. Com menos oferta, argumentam os pesquisadores, diminui-se o abastecimento interno e a tendência é de aumento de preço.
Na avaliação de Silvio Porto, é papel do Estado promover uma política de regulação que garanta preços mínimos para os principais produtos que compõem a mesa da população. Segundo ele, esse tipo de medida aumenta a segurança do produtor, induzindo a ampliação da produção, ao mesmo tempo em que “assegura preços mais justos aos consumidores”. E ele defende que parte dessa política passa pela manutenção de estoques públicos de alimentos. “O estoque é um elemento de regulação da oferta, tanto no sentido de enxugar o excesso [de produção] quanto para ser utilizado num momento em que há falta de produto. Esse deveria ter sido o caso no ano passado, se o governo tivesse estoque de arroz”, diz.
Já o atual diretor de Política Agrícola e Informações da Conab, Sergio de Zen, afirma que “não tem sentido nenhum” manter estoques públicos hoje. Segundo ele, essa era uma política cabível quando o Brasil só “tinha uma safra por ano”, situação muito diferente da atual quando, em algumas regiões, o país já ensaia uma terceira safra anual de milho, por exemplo. E isso, diz, vale para “todos os países do hemisfério sul”. Por isso, explica, hoje vigora uma espécie de “estoque internacional”: faltou num país, basta comprar em outro. Ainda segundo o diretor da Conab, em função dessa nova lógica mundial, “desde 2000”, “praticamente” não existem estoques públicos no Brasil.
Os números sistematizados por Porto a partir de dados da própria Conab, divulgados no artigo ‘Arroz: uma crise anunciada’, publicado no jornal ‘Le Monde Diplomatique’ em setembro do ano passado, no entanto, contradizem essa informação. De acordo com o gráfico produzido pelo professor, o país tinha altos estoques públicos de arroz até 2013, com uma queda em 2014 e outras maiores nos anos seguintes, até as reservas passarem a representar apenas 0,22% do consumo médio anual em 2019. Ainda segundo o texto, essa política de estoques públicos é seguida pelos principais países produtores de arroz do mundo, como China, Estados Unidos e Tailândia.
Diante da crise do ano passado, a intervenção do governo brasileiro se deu em outra direção: reduziu o imposto para aumentar a importação de arroz. “Essa diferença entre o tempo de aumento de consumo causado pela pandemia, que elevou a demanda global, e o tempo de oferta castiga, logicamente, no preço. Mas se tivéssemos, no ano passado, entrado afoitamente no mercado, bloqueando a exportação, hoje estaríamos chorando. Porque estamos tendo uma super safra de arroz, que está despencando de preço, e, como temos canais de exportação abertos, o produtor não vai desistir do plantio do arroz, vai se remunerar e se manter na atividade”, explica. As análises econômicas mais atuais confirmam queda em relação ao pico do ano passado, mas preveem a manutenção do preço elevado ao longo de 2021.
No modelo de produção, campo e a cidade se cruzam
E é exatamente no debate sobre o modelo de produção e distribuição de alimentos que as tragédias da fome no campo e na cidade se encontram. No rol das soluções, Elisabetta Recine cita, por exemplo, um estudo da FAO que mostrou como, durante a pandemia, saíram-se melhor em relação à segurança alimentar os municípios em que a integração campo-cidade favorecia a distribuição de alimentos. Isso significa, principalmente, que essas localidades – mapeadas em vários países – foram abastecidas com alimentos produzidos em regiões próximas, sem necessidade de deslocamento por longas distâncias, como é o padrão de vários produtos da cesta básica brasileira. “A pesquisa da FAO mostrou que aqueles municípios nos quais o urbano e rural não eram tão separados conseguiram tanto dar respostas mais ágeis e apropriadas para a situação do abastecimento como atender as comunidades mais vulneráveis e articular programas de apoio social”, resume. E destrincha: “Esses municípios são aqueles que estabeleceram, na prática, os circuitos locais, territoriais, que são mais curtos, em que não há uma distância quilométrica entre o espaço dos sujeitos que produzem e o espaço dos sujeitos que consomem”. E, nesses arranjos, ganha relevo a produção de alimentos que vêm da agricultura familiar e camponesa.
Para vários pesquisadores ouvidos pela Poli, o enfraquecimento de políticas públicas que incentivavam e garantiam a compra de produtos da agricultura familiar e camponesa está diretamente relacionado ao quadro de insegurança alimentar no campo brasileiro, com reflexos também nas áreas urbanas. Mas comecemos do início.
Na pesquisa do consórcio entre a Universidade de Berlim, UFMG e UnB, a identificação do local de moradia, se urbano ou rural, não foi feita previamente, a partir de algum georreferenciamento da amostra, mas sim por autodeclaração das pessoas que responderam ao questionário. Por isso, Eryka Galindo faz questão de ressaltar que, metodologicamente, não é possível garantir que os resultados sobre a insegurança alimentar nos domicílios do campo retratem necessariamente a realidade dos pequenos agricultores. Já no inquérito da Rede Penssan, os domicílios foram sorteados depois do território geográfico, usando os mesmos padrões do IBGE. Além disso, diferentemente do estudo do consórcio, aqui as perguntas foram feitas pessoalmente, o que significa que só respondeu quem foi encontrado no domicílio. “A chance de cair um agricultor familiar, um pequeno ou médio agricultor, é muito maior do que a chance de cair um representante do agronegócio”, diz Segall, explicando que isso se deve a uma “peculiaridade” do campo brasileiro: “São grandes extensões de terra com ninguém dentro. Se você pegar as grandes plantações de grãos ou de cana-de-açúcar, é terra com a planta em cima e praticamente sem gente. Tem pouquíssimos trabalhadores e o proprietário não mora lá”, diz. E completa: “A nossa pesquisa basicamente pegou agricultores familiares, pequenos e médios agricultores, uma representatividade muito grande desse rural que não é o rural rico, e sim o rural de médio para baixo”. E o retrato encontrado foi preocupante.
Se é verdade que, no campo, a renda para aquisição direta de alimentos é um fator menos determinante do que na cidade, já que existem a produção para autoconsumo e as trocas entre pequenos agricultores, também é fato que a plantação precisa ser minimante sustentável. Exatamente por isso é importante garantir o escoamento da produção, com foco nos circuitos locais. “Na área rural, um indicador importante foi a dificuldade de comercialização dos produtos. As feiras fecharam, as pessoas não tinham para quem vender seus produtos e, com isso, houve dois impactos: reduziu a renda dessas pessoas, que não puderam comercializar os seus produtos, mas também reduziu a produção, porque como não tinham para quem vender, elas deixaram de produzir”, resume Segall. Na combinação dessas duas tragédias, teve (e provavelmente ainda tem) muita fome entre a população rural brasileira.
Utilizando um conceito mais amplo do que o previsto na legislação, o professor Mauro DelGrossi, da UnB, cruzou dados da Pnad Contínua Covid-19, publicada em junho do ano passado, para calcular o efeito da crise sobre a agricultura familiar. E, segundo as tabulações, metade dessas famílias perderam cerca de um terço de suas rendas. Naquele momento, os números mostravam ainda que quase dois terços dessa população não tinham recebido o auxílio emergencial. Como efeito desse cenário, ainda de acordo com o texto em que DelGrossi publicou esses resultados, a capacidade produtiva ociosa reduziu a utilização de mão de obra, levando mais de 1,1 milhão de agricultores familiares a procurarem emprego fora de casa. O texto conclui: “A conjuntura atual é paradoxal: do lado da oferta temos uma multidão querendo trabalho e produzir alimentos. Do lado do consumidor, os índices de inflação já apontam para uma elevação dos preços dos alimentos básicos, agravando ainda mais a segurança alimentar das famílias mais pobres do país. Para romper este ciclo vicioso é necessária uma ação rápida do Estado, estimulando agricultores familiares a produzirem alimentos básicos e gerarem empregos no campo”.
Duas políticas públicas têm sido fundamentais para manter funcionando a mola desses pequenos produtores desde muito antes da pandemia. Uma é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), pelo qual o governo federal compra o que é produzido pela agricultura familiar, com dispensa de licitação, e distribui para beneficiários de redes de assistência social que atendem pessoas em insegurança alimentar, além de escolas públicas e filantrópicas. Criada por lei em 2003, a iniciativa, no entanto, vem sofrendo sucessivos cortes orçamentários. Os dados do Siop, o Sistema de Orçamento Público, mostram essa involução: de R$ 1,3 bilhão em 2014, o orçamento do PAA caiu para R$ 287 milhões em 2019 e R$ 151,6 milhões em 2020. Em abril do ano passado, em meio à pandemia e à pressão social, o governo federal liberou um crédito extraordinário de R$ 500 milhões para o Programa. “Mas é muito insuficiente”, insiste o ex-presidente do Consea Francisco Menezes.
Um problema mais conjuntural, diretamente influenciado pela pandemia, comprometeu o apoio que a outra iniciativa, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), representa para esses mesmos pequenos produtores. Isso porque, desde 2009, a lei 11.947 estabelece que 30% do valor repassado pelo Pnae aos municípios e estados para alimentação dos estudantes da educação básica deve ser usado na compra de produtos da agricultura familiar. De acordo com Menezes, isso representa um “mercado” de 43 milhões de alunos consumindo durante 200 dias letivos. Mas, com o fechamento das escolas e a suspensão das aulas presenciais, as redes públicas de ensino resolveram, cada uma a seu jeito, o desafio de manter a alimentação das crianças e jovens. Em muitos casos, a solução foi distribuir cestas básicas ou um cartão alimentação com o qual as famílias pudessem comprar comida em redes de supermercado.
O problema foi duplo. “Primeiro, você calcula uma cesta básica que, na escola, está alimentando uma criança, mas, quando chega na casa, não vai só para ela. Logicamente, você também tirou a qualidade da alimentação da criança, porque vai oferecer uma cesta básica com farinha, macarrão e açúcar, quando ela estava recebendo na escola um cardápio muito mais diversificado”, explica Elisabetta Recine. Mas não é só. “Do outro lado, você quebra a agricultura familiar, porque esse trabalhador tinha contratos com o poder público, seja prefeitura ou estado. Ele organizou a sua produção, esperava entregar esse produto e, consequentemente, receber por ele”, completa. “Os agricultores familiares ficaram completamente desassistidos”.
Na opinião de Francisco Menezes, era possível – e necessária – uma ação estatal para contornar essas dificuldades trazidas pela pandemia. “O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, que faz o repasse desses recursos da alimentação escolar, poderia ter sido exigente no sentido de criar formas para, com os devidos cuidados, manter o fornecimento dessa alimentação a partir das escolas, recebendo da agricultura familiar e fornecendo de forma organizada às famílias. Mas não fez isso, deixou ao sabor dos municípios”, critica.
Ainda que sem o volume – e o orçamento – de que o poder público dispõe, iniciativas de solidariedade desenvolvidas no âmbito da sociedade civil têm tentado contribuir também para o escoamento e o fortalecimento da agricultura familiar e camponesa. Um exemplo é a campanha ‘Se tem gente com fome, dá de comer’. Através de doações, a iniciativa distribui o equivalente a R$ 200 para a alimentação de cada família cadastrada, oferecendo duas opções: cartão alimentação ou cesta de alimentos. Mas, nos dois casos, é acrescida uma cesta de orgânicos. “É uma forma também de a gente fortalecer a economia dos pequenos agricultores nessas regiões”, explica Maria José Menezes, da Coalizão Negra por Direitos, que coordena a campanha junto a várias outras organizações.
E o contrário também é verdade: para abastecer as ‘Cozinhas Solidárias’, projeto que cresceu a partir de 2020 exatamente em função do aumento da fome no país, além das contribuições pessoais, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) tem recebido doações de alimentos do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). E, segundo Ana Paula Ribeiro, do Movimento, a proposta é estreitar as parcerias para começar a comprar os produtos da agricultura familiar. “A gente também está em busca de consolidar [a entrega] de um alimento saudável, agroecológico e sem veneno dentro das favelas”, diz, ressaltando que, como parte desse objetivo, estão sendo construídas hortas dentro das próprias comunidades – nesse caso, urbanas.
Água é alimento
Menezes destaca ainda uma outra política cujo enfraquecimento, na sua avaliação, teve influência direta sobre a situação de insegurança alimentar nas populações rurais. Trata-se do programa de Acesso à Água para Consumo Humano e Produção de Alimentos na Zona Rural, que, segundo ele, teve “impactos muito significativos” instalando cisternas no semiárido brasileiro. Também de acordo com dados do Siop, o orçamento do programa caiu de R$ 643 milhões em 2014 para R$ 74,7 milhões em 2020. “Nós já tínhamos chegado a 1,2 milhão de cisternas. O pessoal sempre fala que se você entrar no Google Maps e tocar na área do semiárido, vai ver diversos pontos branquinhos, que são as cisternas já instaladas nessa região”, conta, lembrando, no entanto, que havia ainda uma demanda grande, para uso doméstico e, principalmente, para a produção agrícola. “E o programa foi praticamente paralisado”, lamenta.
A importância de medidas como essa ficou ainda mais evidente com os resultados do inquérito da Rede Penssan. Em primeiro lugar, o estudo mostrou que 22% da população brasileira não tem acesso ou tem fornecimento irregular de água potável, número que sobe para 40,2% na região Nordeste. A pesquisa não deixou dúvidas sobre essa relação: olhando para a amostra como um todo, entre os domicílios que não tinham acesso ou fornecimento frequente de água potável, 16,2% encontram-se em situação de fome, número que cai para 6,9% entre aqueles que têm fornecimento diário de água tratada. A pesquisa fez o recorte por área de moradia juntando os percentuais de insegurança alimentar moderada e grave. O resultado é que, nas zonas rurais, 39% da população sem acesso à água está nessa situação, enquanto nas cidades o total é de 31,7%.
Nos domicílios em que não havia água suficiente para consumo dos animais, a insegurança alimentar grave e moderada atingiu 42,6% da população e nas residências em que a água não era suficiente para a produção de alimentos, o número foi ainda maior: 44,2%.“Água é alimento. Se falta água na casa, independentemente de para que seja, é uma situação de insegurança”, resume Segall.
Superar a fome
Embora, em meio à pandemia, tenha havido uma explosão de ações de solidariedade movidas pela sociedade civil, a maior parte dos pesquisadores ouvidos pela Poli defende que a mudança desse cenário depende de políticas públicas. “O Estado tem que retomar sua responsabilidade sobre o direito da população à segurança alimentar”, afirma Galindo, ressaltando que não se pode aceitar a ideia de que a solução sejam ações assistenciais e pontuais, como a doação de comida. Maria José Menezes concorda: “A sociedade civil não tem condições, instrumentos e estrutura para cobrir os déficits do Estado. Nós estamos fazendo algo paliativo. O Estado brasileiro é que tem todos os instrumentos, informações e mecanismos, inclusive, o orçamento, para cuidar da sua população”, diz.
“A fome é uma opção política”
Eryka Galindo
O combate à fome foi tema de discurso recente do ministro da economia, Paulo Guedes, durante o Fórum Cadeia Nacional de Abastecimento, organizado pela Associação Brasileira dos Supermercados. O ministro defendeu a necessidade de se “fazer as políticas sociais que permitam que os mais frágeis e vulneráveis sejam incorporados à cadeia produtiva ou amparados socialmente”, ao mesmo tempo em que ressaltou o “desperdício” como marca brasileira, desde a produção até a mesa do consumidor. Uma das suas sugestões foi que os restos desperdiçados pelas classes mais altas nos restaurantes fossem distribuídos para “alimentar pessoas fragilizadas, mendigos, desamparados”. “A fome é uma opção política”, conclui Eryka Galindo.