Comentários sobre a Transição Socialista
As Precondições para a Extinção da Lei do Valor
Por Warlen Nunes*
Poder Popular – MG
Para amplos segmentos do espectro político de esquerda, o período pós-revolucionário, isto é, o de transição para uma forma de organização social sem classes e sem estado, não abole a vigência do Valor como lei reguladora. Dessa maneira, o trabalho assalariado, a mercadoria, o dinheiro etc., continuam a desempenhar um papel importante nas relações de produção e distribuição. Assim, a transição socialista na visão deles, seria uma sociedade com o pleno funcionamento das categorias econômicas da sociedade atual, embora sem a classe capitalista, ou seja, estaríamos em presença de uma sociedade com as determinações materiais e econômicas do capital, mas sem os capitalistas. De alguma forma, esse curto escrito irá se contrapor a esta visão.
De início, abordaremos as precondições para a transição socialista, que são criadas pelo próprio desenvolvimento contraditório da sociedade capitalista. Marx, certa vez, designou o capital como uma contradição em processo e, é justamente esse desenvolvimento contraditório que devemos explorar, a fim de encontrar as premissas do novo modo de produção, para depois analisarmos como Marx coloca a questão das relações de produção no período de transição socialista.
Ademais, Marx não nos deixou um conjunto sistemático de textos falando sobre como seria a sociedade comunista, inclusive ele ficou de escrever um livro, no qual se ocuparia da dissolução do modo de produção e da sociedade baseada na forma do Valor de Troca. O referido livro não saiu das intenções de Marx. Todavia, isso não significa que Marx não tenha feito aportes importantes sobre a transição para uma sociedade onde os produtores livres e associados com meios de produção comum possam definir conscientemente a forma de produzir e distribuir os produtos do trabalho sem a mediação fetichista da Mercadoria, do Dinheiro e do Capital. Para Marx, o modo de produção comunista seria produto das contradições internas da moderna sociedade burguesa e da ação revolucionária dos trabalhadores.
Dado o caráter anárquico e não planejado de uma economia mercantil, a Lei do Valor atua como reguladora, estabelecendo o equilíbrio na distribuição do trabalho social entre os diversos ramos da economia (RUBIN,1987). Dessa forma, o trabalho dos indivíduos não aparece diretamente como trabalho social. Só se converte em social porque é igualado a algum outro trabalho, e esta igualação do trabalho é realizada através da troca (RUBIN,1987). É somente na economia mercantil que o fenômeno da igualação dos diversos trabalhos se dá através da igualação das coisas, ou seja, a igualação dos produtos do trabalho como valores (RUBIN,1987, p.82). Essa igualação, é algo especifico da forma de sociedade mercantil.
Nem toda distribuição do trabalho social confere ao produto do trabalho a forma de Valor, mas apenas aquela distribuição de trabalho que não é diretamente organizada pela sociedade, mas regulada indiretamente através do Mercado e da troca de coisas. O produto adquire Valor somente nas condições em que é produzido especificamente para venda, e adquire, no mercado, uma avaliação exata e objetiva que o iguala (através do dinheiro) a todas as outras mercadorias e lhe confere a propriedade de ser trocável por qualquer outra mercadoria. […]. O trabalho não confere, por si mesmo, valor aos produtos; somente o trabalho organizado numa determinada forma social (na forma de uma economia mercantil) (RUBIN, 1987, p.83-84).
Neste sentido, devemos recuperar, da análise crítica de Marx, os momentos em que se gestam as precondições para a abolição das relações mercantis. Como nos adverte Rosdolsky, é na análise de Marx sobre a maquinária nos “Grundrisse” que encontraremos as precondições para a superação da Lei do Valor, pois a magnitude do tempo de trabalho segue sendo determinante para a produção da riqueza.
Em “O Capital”, Marx demonstra que a maquinaria e a grande indústria reduzem o trabalhador a mero apêndice da máquina ao transformar o trabalho em algo parcelar, rotineiro e mecânico. (MARX,2013). Já nos “Grundrisse”, além da função de reduzir o trabalho a algo parcelar, a maquinaria cria também as condições para a anulação da Lei do Valor. Vejamos:
[…] à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado, do que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder esse que, por sua poderosa efetividade , por sua vez, não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção ( Marx, 2001, p. 941).
A maquinaria reduz a dependência do tempo de trabalho necessário individual, subordinando cada vez mais a produção de riqueza ao nível de desenvolvimento da técnica e da ciência, aplicadas à produção, isto é: quanto mais o sistema se desenvolve, mais ele cria as precondições para a anulação de suas leis imanentes, entre elas a Lei do Valor. Desse modo, “não é nem o trabalho imediato que o próprio ser humano executa, nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão e seu domínio da natureza para sua existência como corpo social” (MARX,2001, p.942).
Dessa maneira, como disse Marx: “O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza” (MARX, 2001, p.942).
Temos aqui a contradição estrutural das relações capitalistas, e essa se expressa entre a necessidade que o capital tem de desenvolver as forças produtivas materiais ao máximo, embora esse desenvolvimento se choque frontalmente com as relações de produção existentes. O próprio capital cria as condições para sua abolição, ao reduzir o tempo de trabalho ao mínimo. A tendência do capital é sempre, por um lado, criar tempo disponível e, por outro
lado, convertê-lo em trabalho excedente (MARX, 2001).
De acordo com Rosdolsky, tão logo o trabalho, em sua forma imediata, tenha deixado de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa de ser sua medição e o valor de troca deixa de ser a medição do valor de uso. O mais trabalho deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza social […] (ROSDOLSKY, 2001). É justamente o desenvolvimento das forças produtivas impulsionadas pelo desenvolvimento técnico-material que cria as condições para suprimir o “roubo do tempo de trabalho alheio”.
As condições de destruição do Sistema Capitalista estão postas pelo próprio sistema, que se desenvolve ao ponto de negar-se a si mesmo, como podemos constatar na Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro, ocasionada pela constante substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto. Todavia, este sistema só será destruído pela ação revolucionária dos trabalhadores, que de forma consciente e organizada edificarão um novo modo de produção.
Vejamos agora, como Marx trata a distribuição do trabalho em uma sociedade de transição (pós-revolucionária).
Nosso objeto aqui é uma sociedade comunista, não como ela se desenvolveu a partir de suas próprias bases, mas, ao contrário, como ela acaba de sair da sociedade capitalista, portanto, trazendo de nascença as marcas econômicas, morais e espirituais herdadas da velha sociedade de cujo ventre ela saiu. […]. Aqui impera, é evidente, o mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que esta é troca de equivalentes (MARX).
A impressão que temos, na citação acima, é que de fato na primeira fase do comunismo, assim que ela saiu das entranhas da sociedade capitalista, ainda imperam as categorias econômicas da sociedade burguesa, e que o princípio da troca de equivalentes funciona como na sociedade anterior, mas, se recorrermos à parte anterior do texto, a impressão é desfeita. Vejamos, como a citação é esclarecedora:
No interior da sociedade cooperativa, fundada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos. Do mesmo modo, o trabalho transformado em produtos não aparece aqui como valor desses produtos, como uma qualidade material que eles possuem, pois agora, em oposição à sociedade capitalista, os trabalhos individuais existem não mais como um desvio, mas imediatamente como parte integrante do trabalho total. A expressão “fruto do trabalho”, que hoje já é condenável por sua ambiguidade, perde assim todo sentido (Idem).
Alguém poderia dizer que, nesta citação, Marx está se referindo à segunda fase da sociedade comunista e não à sociedade na sua primeira fase (socialista) tal como ela sai da sociedade burguesa. Mostraremos que não, nesta passagem em que Marx trata da primeira fase do comunismo:
Antes ele demonstra que: “aqui impera, é evidente, o mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que esta é troca de equivalentes. Mas aqui, já com um diferencial, pois “o produtor individual, feitas as devidas deduções, recebe de volta da sociedade exatamente aquilo que lhe deu.”. Nesta primeira fase da sociedade comunista, a diferença para a sociedade burguesa fica evidente pois, na sociedade burguesa, a troca de equivalentes é uma mera aparência da circulação mercantil, para ocultar “o roubo do tempo de trabalho alheio”. Já em uma sociedade socialista (primeira fase do comunismo), o trabalho assume uma nova forma.
No socialismo, “o trabalho do indivíduo é, desde o início, trabalho social, não há nenhum produto particular para ser trocado. O produto não é um Valor de Troca” (Rosdolsky). “Portanto, a tese de que no socialismo os mesmos elementos que permeiam a sociedade burguesa terão vigência no período de transição é falsa e faz parte do revisionismo contemporâneo que quer um utópico socialismo com mercado regulado pelo Estado. Tal sandice não se justifica à luz de um exame atento dos escritos de Marx. Na sociedade socialista, a medição do trabalho pelo tempo só será um meio do planejamento social e nada terá em comum com a Lei do Valor” (ROSDOLSKY,2001). Apesar de longa, a citação que faremos de Rosdolsky contém uma interpretação que ao nosso entender está correta sobre a primeira fase do comunismo, tal como contida na Crítica do Programa de Gotha.
“[..] Marx pensava em sociedade socialista […] tal como ela surge da sociedade capitalista.”. É certo que esta sociedade expropriou os capitalistas, […] , aqui “ o produtor individual recebe, depois das deduções, exatamente” o que dá à sociedade, “ o que deu a ela é sua quantidade de trabalho individual […] a sociedade lhe dá a certificação de que entregou tanto de trabalho, […] e esse certificado ele extraiu das reservas sociais dos meios de consumo […] Em uma sociedade assim, não pode haver lugar para uma lei como a do valor, porque nela estamos em presença de uma forma de produção totalmente diferente da produção de mercadorias; a regulação da produção e da distribuição não fica entregue ao jogo cego do mercado. Fica submetida ao controle consciente da sociedade.”. (ROSDOLSKY, 2001, p.360).
Portanto, a tese do “socialismo de mercado”, que deixa intacta a Lei do Valor, a forma Mercadoria, o Dinheiro como forma de expressão do trabalho social, isto é, que apresenta as relações de produção entre as pessoas como relações entre coisas, se torna insustentável.
Em Marx, a transição socialista tem que criar as condições para o surgimento deste novo modo de produção. Podemos resumir assim as premissas históricas para uma sociedade sem classes 1) o fim da subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho, 2) fim da oposição entre trabalho manual e espiritual,3) fim do trabalho como meio de vida, 4) desenvolvimento multilateral dos indivíduos e 5) crescimento das forças produtivas até a riqueza jorrar em abundância.
Mesmo que os defensores do assim chamado socialismo com mercado digam o contrário, se nós estivermos em uma formação social que não apresenta os elementos acima descritos, não estamos diante de uma sociedade em transição para o comunismo.
Com a abolição dessas relações, teremos a passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade. Assim, iremos superar a pré-história da história humana.
Se esse curto escrito servir para fomentar o debate, ele já terá se mostrado válido. Agora, para os detratores que não terão o trabalho de ler, só digo: “os cães ladram e a caravana passa”.
*Warlen Nunes é militante do PCB e educador popular do NEP 13 de maio.
Referências bibliográficas
MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, Edição online. Disponível em: Lelivros.site.
______________. Grundrisse. Tradução: Mário Duayer; Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2011.
O Capital: crítica da Economia Política. Livro 1: O Processo de Produção do Capital. Tradução: Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013.
ROSDOLSKY, R. Gênese e Estrutura de O Capital, de Karl Marx. Rio de Janeiro, EDUERJ, Contraponto, 2001.
RUBIN, Isaak. A Teoria Marxista do Valor, São Paulo, Editora Polis, 1987.
Fonte: https://www.poderpopularmg.org/comentario-sobre-a-transicao-socialista-as-precondicoes-para-a-extincao-da-lei-do-valor/
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