Lênin: às vésperas da Revolução de Outubro

imagemRicardo Costa – membro do Comitê Central do PCB

Em 25 de outubro de 1917 (07 de novembro no calendário ocidental), deu-se na Rússia o mais importante evento histórico do século XX: a Revolução Socialista, que demonstrou ao mundo a real possibilidade de os trabalhadores e as trabalhadoras tomarem o poder político e decidirem sobre o seu próprio destino. Figura essencial para o sucesso desta empreitada foi Vladimir Lênin, que, liderando a facção bolchevique (revolucionária) do Partido Operário Social Democrata Russo e enfrentando as vacilações das correntes moderadas e oportunistas (os mencheviques e socialistas-revolucionários) e as de seu próprio grupo, foi o grande dirigente do processo de lutas que desembocou na primeira revolução proletária da história a conquistar e manter o poder de Estado.

Não podemos transformar a Revolução Socialista Russa numa obra exclusiva de um gênio solitário, pois as verdadeiras revoluções não se fazem sem a participação ativa das massas. No caso da Rússia de 1917, havia a experiência concreta de uma incrível participação popular, com a formação de comitês locais de trabalhadores, soldados, marinheiros, camponeses em várias cidades, constituindo na prática um poder paralelo ao governo burguês que, em março (fevereiro no calendário russo), derrubara a monarquia czarista, mas nada fizera para atender aos reclamos populares, no que tange à saída do país da guerra mundial e ao combate interno à fome e à miséria.

Os Sovietes, organizações representativas dos trabalhadores, surgiram nas lutas de 1905, que explodiram em meio à crise provocada pelos efeitos da Guerra Russo-Japonesa (decorrente de disputas imperialistas) vencida pelo Japão. Estes órgãos de representação popular sofreram a repressão do período contrarrevolucionário (1907-1914), mas recuperaram o vigor e voltaram à plena atividade política nos anos da Grande Guerra, tomando à frente dos protestos e manifestações de massas contrários ao regime aristocrático e às mazelas provocadas pelo conflito internacional.

Lênin percebeu a oportunidade histórica de deflagração da revolução proletária a partir da mobilização popular em curso, mas provocou a reação de incredulidade – e até mesmo desprezo – da parte dos militantes socialistas russos, quando apresentou suas Teses de Abril, ao retornar do exílio a que fora confinado na Suíça.

Em sua análise sobre a Revolução de Fevereiro/Março de 1917, havia percebido que ela fora o resultado de um golpe desferido por duas grandes forças políticas e sociais: de um lado, a Rússia burguesa e latifundiária, apoiada pelos capitalistas ingleses e franceses, e de outro, o Soviete de Deputados e Operários. Haviam se fundido, naquele acontecimento, correntes com interesses de classe absolutamente heterogêneos: a conspiração dos imperialistas anglo-franceses, que buscavam impedir os acordos de paz em separado entre Nicolau II e o Imperador alemão Guilherme II e incentivaram a burguesia russa a derrubar a monarquia; o movimento proletário e popular de massas, em defesa da paz, do pão e da verdadeira liberdade. Mas a classe que efetivamente tomou o poder foi a dos latifundiários e da burguesia (fortalecida com a indústria da guerra), que já dirigia a economia da Rússia e necessitava tomar para si o aparato estatal a fim de garantir os privilégios do capital.

Textos produzidos no calor dos acontecimentos

Os artigos abaixo disponibilizados abaixo (“Uma das questões fundamentais da revolução”, “Os bolcheviques devem tomar o poder” e “Marxismo e Insurreição”) são parte integrante desta fundamental batalha das ideias que antecedeu e contribuiu de forma decisiva para a ação dos bolcheviques na tomada do poder de Estado em outubro/novembro de 1917 na Rússia.

No primeiro deles, Lênin debruça-se sobre a questão do Estado e sobre a necessidade de compreensão de que a palavra de ordem “Todo o Poder aos Sovietes” jamais deveria ser interpretada como mera ocupação de cargos no governo burguês (“um ministério dos partidos da maioria nos sovietes”), como assim faziam mencheviques e esseristas (os quais detinham até então a hegemonia no interior dos sovietes), mas sim “uma transformação radical de todo o velho aparelho de Estado” e “sua substituição pelo aparelho novo, popular, isto é, verdadeiramente democrático, dos sovietes, isto é, da maioria organizada e armada do povo, dos operários, dos soldados, dos camponeses, a concessão iniciativa e da autonomia à maioria do povo, não só na eleição dos deputados, mas também na administração do Estado, na realização de reformas e transformações”.

Para Lênin, as experiências ditas democráticas nas sociedades burguesas ocidentais encobriam a constituição de verdadeiros exércitos a serviço do capital e não dos interesses da população:

Toda a história dos países parlamentares burgueses e, em considerável medida, a dos países burgueses constitucionais, mostra que uma mudança de ministros significa muito pouco, pois todo o trabalho administrativo real está nas mãos de um exército gigantesco de funcionários. E este exército está impregnado até a medula de um espírito antidemocrático, está ligado por milhares e milhões de fios aos latifundiários e à burguesia, dependendo deles de todas as formas. Este exército está rodeado por uma atmosfera de relações burguesas, respira apenas nela, está congelado, petrificado, anquilosado, não tem forças para se libertar dessa atmosfera, não pode pensar, sentir, agir de outro modo que não seja à maneira antiga. Este exército está ligado por relações de respeito aos superiores, por determinados privilégios do serviço “do Estado”, e as categorias superiores deste exército estão completamente submetidas, por meio das ações dos bancos, ao capital financeiro, do qual são em certa medida agentes, veículos de seus interesses e influência.

E continuava:

… tal aparelho de Estado é absolutamente incapaz de levar a cabo reformas, não que destruam, mas até as que apenas cerceiem ou limitem seriamente os direitos do capital, os direitos da “sagrada propriedade privada”. Daí resulta sempre que, em todos os ministérios de “coligação” possíveis em que participam “socialistas”, estes socialistas, mesmo que alguns dentre eles sejam de uma absoluta probidade, se revelam de fato um ornamento inútil ou um biombo do governo burguês, um para-raios da indignação popular provocada por este governo, um instrumento do engano das massas por este governo.

As palavras de Lênin são cristalinas na percepção de que não havia – e continua não havendo hoje – qualquer possibilidade de reformar o Estado burguês, por mais aparentemente democrático que ele possa ser. Até porque o que existe nos dias atuais de democrático (sufrágio universal, direitos político e sociais universais) no Estado que serve fundamentalmente aos interesses do capital foi obtido, com muita luta e sangue, pelos movimentos dos trabalhadores e das camadas populares ao longo dos séculos XIX e XX.

No segundo texto, assevera que é chegada a hora de os bolcheviques tomarem o poder, afirmando que, no período de maio a setembro de 1917, os acontecimentos e as lutas levaram à situação em que a maioria no interior dos sovietes das capitais passava a pender para o lado dos bolcheviques.

No terceiro artigo, baseando-se em escrito de Engels sobre a “arte da insurreição” (Revolução e Contrarrevolução na Alemanha, que, assinado por Marx, foi publicado no New York Daily Tribune em 1851 e 1852) aprofunda a análise segundo a qual a revolução estava na ordem do dia na Rússia, pois, a partir dos eventos de julho e agosto de 1917, estavam dadas as condições objetivas e subjetivas para o sucesso da empreitada revolucionária. Lênin referia-se às jornadas de julho e à “kornilovada”. As manifestações de julho foram desencadeadas por um movimento de soldados, marinheiros e operários, enfurecidos contra o governo provisório e suas ordens militares, notoriamente infrutíferas e irresponsáveis. As demonstrações de massa ocorreram em Petrogrado, e os manifestantes gritaram as palavras de ordem dos bolcheviques, como “todo o poder aos Sovietes”, exigindo que a direção máxima dos Sovietes assumisse o poder, o que foi negado pelo Comitê Executivo Central, dominado por socialistas revolucionários e mencheviques. O movimento foi massacrado pelo governo provisório, que atacou o Partido Bolchevique, empastelando seus jornais e gráficas e mandando prender as lideranças operárias.

Já a “kornilovada” foi uma revolta contrarrevolucionária da burguesia e dos latifundiários em agosto de 1917, liderada pelo general czarista Kornilov, que planejava implantar uma ditadura militar para restaurar a monarquia. O governo provisório, sob comando de Kerenski, adotou postura ambígua no episódio, insuflando inicialmente a revolta, para se ver livre dos bolcheviques. Mas foram estes que enfrentaram decisivamente a tentativa de golpe de Kornilov e continuaram a denunciar o governo provisório e seus cúmplices socialistas revolucionários e mencheviques. A kornilovada foi liquidada pelos operários e camponeses liderados pelo Partido Bolchevique.

Lênin, então, percebia que, após estes dois grandes acontecimentos históricos, as massas haviam vivenciado experiências decisivas no enfrentamento aos seus inimigos de classe, e era cada vez mais evidente o desmascaramento dos reformistas e oportunistas, que, ocupando ministérios no governo provisório, assumiam na prática a defesa dos interesses burgueses. Lênin enfatizava que, por tudo isso, a batalha pela hegemonia no interior dos Sovietes estava sendo ganha pelos bolcheviques. E dizia que, naquele exato momento histórico, existiam as condições objetivas para a tomada do poder, pois “temos a nosso favor a maioria da classe que é a vanguarda da revolução, a vanguarda do povo, capaz de arrastar as massas”.

Não há dúvidas de que, por meio da leitura desses textos, podemos concluir que, para Lênin, uma das questões centrais na luta e conquista do poder na Rússia foi a batalha ideológica travada no interior do Sovietes, para tirar da influência de mencheviques e esseristas as mais valorosas lideranças operárias e camponesas, as quais, sob a firme direção dos bolcheviques, comandaram a Revolução de Outubro. Portanto, está posta a questão da hegemonia como um aspecto central da vitória bolchevique em 1917, fato que, com certeza, poderá se verificar também nas demais revoluções socialistas do século XX.

Não é mero exercício de retórica ou emulação política retornar aos ensinamentos de Lênin, produzidos no calor da revolução que propiciou uma experiência ímpar de democracia popular radical. No poder, os bolcheviques mantiveram as unidades do Exército Vermelho ligadas à classe operária e aos camponeses; democratizaram a justiça, com eleições de juízes; transformaram a polícia em instrumento de defesa diária da segurança da população; implantaram a eleição e o mandato revogável dos funcionários públicos; garantiram a participação dos sindicatos e dos sovietes na criação de organismos econômicos, na elaboração dos planos de produção e na gestão industrial; suprimiram as desigualdades sociais e socializaram os meios de produção, colocando-os a serviço dos interesses e necessidades da maioria.

Leia Uma das questões fundamentais da revolução

Leia Os bolcheviques devem tomar o poder

Leia Marxismo e Insurreição

Confira também:

Zizek, Slavoj – Às Portas da Revolução: escritos de Lenin em 1917. São Paulo, Boitempo Editorial, 2005.

V. I. Lenin – Lenin e a Revolução de Outubro – textos no calor da hora (1917-1923). São Paulo, Expressão Popular, 2017 (apresentação: José Paulo Netto).