95 anos da Revolução Bolchevique: as lições de Lênin

Comemoramos hoje, neste 7 de novembro (25 de outubro no calendário juliano), os 95 anos da Revolução Socialista na Rússia, o mais importante evento histórico do século XX, por ter demonstrado ao mundo – e provocado a reação raivosa da burguesia internacional – a real possibilidade de os trabalhadores tomarem o poder político e decidirem sobre o seu próprio destino, construindo com suas próprias mãos – com erros e acertos – um Estado que, no fundamental, servisse aos interesses e necessidades de sua classe, o Estado socialista.

Figura essencial para o sucesso desta empreitada foi Vladimir Lênin, que, liderando a facção bolchevique (revolucionária) do Partido Operário Social Democrata Russo e enfrentando as vacilações das correntes moderadas e oportunistas (os mencheviques e socialistas-revolucionários) e as de seu próprio grupo, foi o grande dirigente do processo de lutas que desembocou na primeira revolução proletária da história a conquistar e manter o poder de Estado.

Não podemos transformar a Revolução Socialista Russa numa obra exclusiva de um gênio solitário, pois as verdadeiras revoluções não se fazem sem a participação ativa das massas. No caso da Rússia de 1917, havia a experiência concreta de uma incrível participação popular, com a formação de comitês locais de trabalhadores, soldados, marinheiros, camponeses em várias cidades, constituindo na prática um poder paralelo ao governo burguês que, em março (fevereiro no calendário russo), derrubara a monarquia czarista, mas nada fizera para atender aos reclamos populares, no que tange à saída do país da guerra mundial e ao combate interno à fome e à miséria.

Os Sovietes, organizações representativas dos trabalhadores, surgiram nas lutas de 1905, que explodiram em meio à crise provocada pelos efeitos da Guerra Russo-Japonesa (decorrente de disputas imperialistas) vencida pelo Japão. Estes órgãos de representação popular sofreram a repressão do período contrarrevolucionário (1907-1914), mas recuperaram o vigor e voltaram à plena atividade política nos anos da Grande Guerra, tomando à frente dos protestos e manifestações de massas contrários ao regime aristocrático e às mazelas provocadas pelo conflito internacional.

Lênin percebeu a oportunidade histórica de deflagração da revolução proletária a partir da mobilização popular em curso, mas provocou a reação de incredulidade – e até mesmo desprezo – da parte dos militantes socialistas russos, quando apresentou suas Teses de Abril, ao retornar do exílio a que fora confinado na Suíça. Dizia:

A peculiaridade do momento atual na Rússia consiste na transição da primeira etapa da revolução, que deu poder à burguesia por faltar ao proletariado o grau necessário de consciência e organização, para sua segunda etapa, que deve colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato.1

Em sua análise sobre a Revolução de Fevereiro/Março de 1917, havia percebido que ela fora o resultado de um golpe desferido por duas grandes forças políticas e sociais: de um lado, a Rússia burguesa e latifundiária, apoiada pelos capitalistas ingleses e franceses, e de outro, o Soviete de Deputados e Operários. Haviam se fundido, naquele acontecimento, correntes com interesses de classe absolutamente heterogêneos: a conspiração dos imperialistas anglo-franceses, que buscavam impedir os acordos de paz em separado entre Nicolau II e o Imperador alemão Guilherme II e incentivaram a burguesia russa a derrubar a monarquia; o movimento proletário e popular de massas, em defesa da paz, do pão e da verdadeira liberdade. Mas a classe que efetivamente tomou o poder foi a dos latifundiários e da burguesia (fortalecida com a indústria da guerra), que já dirigia a economia da Rússia e necessitava tomar para si o aparato estatal a fim de garantir os privilégios do capital.

Eis um dos aspectos centrais com que Lênin sempre se preocupou em suas análises: o poder de Estado. Em texto produzido às vésperas da Revolução Socialista, afirmava:

A questão mais importante de qualquer revolução é sem dúvida a questão do poder do Estado. Nas mãos de que classe está o poder, é  isto que decide tudo.

(…) Não é possível eludir nem afastar a questão do poder, pois esta é a questão fundamental que determina tudo no desenvolvimento da revolução, em sua política interna e externa.

(…) Durante uma revolução popular, que desperta as massas, a maioria dos operários e camponeses, para a ação, o poder só consegue ser estável caso se apoie de modo evidente e incondicional na maioria da população. Até esse momento, o poder de Estado na Rússia permanece de fato nas mãos da burguesia (…).2

E desancava sem dó sua crítica aos reformistas e oportunistas da época, que confundiam deliberadamente o “poder dos sovietes” com “um ministério dos partidos da maioria nos sovietes”, ou seja, com a ocupação de cargos políticos no governo burguês por membros dos partidos que, momentaneamente, tinham maioria no interior dos sovietes, os mencheviques e esseristas (SRs = soclialistas-revolucionários). Estes consideravam absurda a proposta bolchevique de revolução proletária, por entender que a classe trabalhadora não estava “madura” para assumir o poder ou que a revolução era “ilegítima” por não obter o apoio explícito da maioria da população. A história daria razão a Lênin e aos bolcheviques.

Lênin deixava claro então que o poder soviético significaria uma mudança radical no exercício do poder de Estado. Não bastava tomar o poder de assalto (algo que de fato foi facilitado pela degradação do Estado burguês em 1917, por sua progressiva fragilidade, ao se desgastar política e socialmente na tentativa de manter a presença da Rússia na guerra a qualquer preço, preferindo atender às necessidades dos imperialistas ingleses e franceses a fazer valer a vontade popular):

O “poder dos sovietes” significa uma transformação radical de todo o velho aparelho de Estado, deste aparelho burocrático que entrava tudo quanto é democrático, a eliminação deste aparelho e sua substituição pelo aparelho novo, popular, isto é, verdadeiramente democrático, dos sovietes, isto é, da maioria organizada e armada do povo, dos operários, dos soldados, dos camponeses, a concessão da iniciativa e da autonomia à maioria do povo não só na eleição dos deputados, mas também na administração do Estado, na realização de reformas e transformações.3

A construção do poder proletário exigiria muito mais que assumir o controle do aparato estatal e muito mais ainda que meramente ocupar cargos no interior do governo existente. Era preciso destruir o aparelho que até então servia aos interesses do latifúndio e do capital e, em seu lugar, erigir um Estado de caráter genuinamente popular, que garantisse a participação efetiva dos Sovietes nas tomadas de decisão. Para Lênin, estava claro que as experiências ditas democráticas nas sociedades burguesas ocidentais encobriam a constituição de verdadeiros exércitos a serviço do capital e não dos interesses da população:

Toda a história dos países parlamentares burgueses e, em considerável medida, a dos países burgueses constitucionais, mostra que uma mudança de ministros significa muito pouco, pois todo o trabalho administrativo real está nas mãos de um exército gigantesco de funcionários. E este exército está impregnado até a medula de um espírito antidemocrático, está ligado por milhares e milhões de fios aos latifundiários e à burguesia, dependendo deles de todas as formas. Este exército está rodeado por uma atmosfera de relações burguesas, respira apenas nela, está congelado, petrificado, anquilosado, não tem forças para se libertar dessa atmosfera, não pode pensar, sentir, agir de outro modo que não seja à maneira antiga. Este exército está ligado por relações de respeito aos superiores, por determinados privilégios do serviço “do Estado”, e as categorias superiores deste exército estão completamente submetidas, por meio das ações dos bancos, ao capital financeiro, do qual são em certa medida agentes, véculos de seus interesses e influência.

E continuava:

… tal aparelho de Estado é absolutamente incapaz de levar a cabo reformas, não que destruam, mas até as que apenas cerceiem ou limitem seriamente os direitos do capital, os direitos da “sagrada propriedade privada”. Daí resulta sempre que, em todos os ministérios de “coligação” possíveis em que participam “socialistas”, estes socialistas, mesmo que alguns dentre eles sejam de uma absoluta probidade, se revelam de fato um ornamento inútil ou um biombo do governo burguês, um para-raios da indignação popular provocada por este governo, um instrumento do engano das massas por este governo.4

As palavras de Lênin são cristalinas na percepção de que não havia – e continua não havendo hoje – qualquer possibilidade de reformar o Estado burguês, por mais aparentemente democrático que ele possa ser. Até porque o que existe nos dias atuais de democrático (sufrágio universal, direitos político e sociais universais) no Estado que serve fundamentalmente aos interesses do capital foi obtido, com muita luta e sangue, pelos movimentos dos trabalhadores e das camadas populares ao longo dos séculos XIX e XX.

Não é mero exercício de retórica ou emulação política retornar aos ensinamentos de Lênin, produzidos no calor da revolução que propiciou uma experiência ímpar de democracia popular radical (no poder os bolcheviques mantiveram as unidades do Exército Vermelho ligadas à classe operária e aos camponeses; democratizaram a justiça, com eleições de juízes; transformaram a polícia em instrumento de defesa diária da segurança da população; implantaram a eleição e o mandato revogável dos funcionários públicos; garantiram a participação dos sindicatos e dos sovietes na criação de organismos econômicos, na elaboração dos planos de produção e na gestão industrial; suprimiram as desigualdades sociais e socializaram os meios de produção, colocando-os a serviço dos interesses e necessidades da maioria), mesmo que, posteriormente, esta experiência tenha sofrido revezes em decorrência de inúmeros fatores que não cabe aqui, neste pequeno artigo, abordar. O líder bolchevique continua atual na análise do caráter do poder de Estado como definidor da estratégia de luta dos comunistas. Hoje, como em 1917, não cabem ilusões com a possibilidade de obter pequenas conquistas ou reformas de fachada em nome dos trabalhadores no interior do aparato burguês. Aqueles que, nos dias atuais, em troca de migalhas para as camadas populares e da promessa de um socialismo desfigurado de seus princípios e cada vez mais distante de ser efetivado, contentam-se em ocupar cargos em ministérios e governos que não fazem outra coisa a não ser promover o aprofundamento das relações capitalistas, um dia serão varridos pela História. A exemplo do ocorreu em outubro/novembro de 1917.

1. Lênin – Sobre as tarefas do proletariado na presente revolução (teses de abril) em Zizek, Slavoj – “As Portas da Revolução, São Paulo, Boitempo Editorial, 2005, p. 64.

2. Lênin – Uma das questões fundamentais da revolução – idem, pp. 113-114.

3. Idem, ibidem, pp. 114-115.

4. Idem, ibidem, p. 115.

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