Tarde da noite em Damasco: antes que os EUA ataquem

Os persas, que são alunos brilhantes e articulados bem conhecidos em todo o mundo, e com muitos dos quais tenho tido a honra de discutir política internacional, parecem ter encontrado companheiros intelectuais à sua altura nos árabes sírios.

Cheguei a essa conclusão pelo que vejo acontecer nas ruas em Damasco, não só nas universidades e escolas, mas nas sessões de “feiras de ideias” que acontecem pelas ruas, nos cafés e em locais de reunião.

A noite de ontem é um exemplo. Já passava muito da hora de esse observador ir para a cama, quando apareceram por aqui alguns amigos, convidando para sentar na calçada “por alguns minutos” e discutir notícias que estavam chegando de Washington e São Petersburgo. Terminamos empoleirados nos blocos de concreto que dividem a rua Al Bahsa em frente ao meu hotel – que está fechada para carros – por mais de três horas! Hiba, uma jovem forte e maravilhosa, jornalista palestina nascida no campo Yarmouk de refugiados, serviu-nos de intérprete. Rapidamente se juntaram a nossa volta alguns soldados, e uns tipos da segurança nacional e shabiha apareceram para ver o que estava acontecendo. Alguns até falaram, na discussão animada, rápida, que logo se seguiu.

Vários estudantes e moradores das vizinhanças reuniram-se também no início do “seminário” e logo ficou bem claro que os sírios acompanham atentamente cada desenvolvimento, até a “sexta-feira negra”, dia 12/9/2013, daqui a menos de uma semana. É quando muitos damascenos e observadores estrangeiros creem que os EUA começarão a atacar.

Na superfície, a vida parece continuar normalmente, mas as tensões aumentam e as pessoas mostram-se alarmadas com a possibilidade de um ataque norte-americano. Esse observador muito aprendeu dos sírios sobre várias coisas, inclusive sobre o conflito que se vive aqui, e sobre como os eventos tendem a desenvolver-se, tanto localmente quanto internacionalmente.

Bem poucos aqui, praticamente ninguém, ainda supõe que o ataque norte-americano seja “limitado” ou rápido, embora nos últimos dias o pessoal de Obama tenha usado frequentemente a palavra “degradar” (em vez de “demolir” ou “arrasar”); nem alguém acredita que o único objetivo do ataque seja “dar um recado” ao governo sírio.

Um senhor, idoso, dono de uma farmácia próxima, explicou:

É mudança de regime aqui e em Teerã, nada menos que isso. Bombardearão sem nem saber o quê, porque os tais 75 alvos que listaram já foram esvaziados e estão sendo diariamente mudados de lugar. Todos trabalhamos para não deixar alvos fixos para Obama.

Chamou-me a atenção a sofisticação dos comentários, numa reunião “de rua”. Uma aluna da Universidade de Damasco, que se prepara para voltar às aulas no final desse mês, fez um apanhado do que se deve esperar dos votos no Congresso e explicou ao grupo, que já era então bem maior que o inicial, que, como no dia 4/9/2013, haverá 47 votos “sim”, praticamente imutáveis; 187 “não” altamente prováveis; com 220 votos ou indecisos ou imprevisíveis. Na sequência, disse que tem quase certeza de que o presidente terá ou de retirar a proposta de resolução ou adiar uma votação da Câmara de Representantes.

Outra senhora, que tenho visto no pátio do meu hotel, mencionou matéria do Washington Post com notícia de que a Conferência dos Presidentes das Maiores Associações de Judeus dos EUA está associada ao lobby israelense do AIPAC numa gigantesca campanha de propaganda a favor de guerra total dos EUA contra a Síria. Não sabia e me perguntei como ela estaria tão atualizada. Ela só disse que fizera as contas:

Até aqui, só 21 senadores já declararam apoio ou dão sinais de que apoiam Obama; 13 disseram que se opõem ou tendem a opor-se à Resolução; e há 66 votos indecisos ou desconhecidos.

Já amanhecia quando nossa reunião começou a acabar, e falava-se sobre a Constituição dos EUA. Um jovem, provavelmente aluno de Direito, citou de memória, não o resumo, mas o texto completo do artigo 1, sessão 8, parágrafo 11: “O Congresso tem o poder de declarar guerra (…) e fazer leis sobre captura de terras e águas”.[1]

Em seguida, explicou que essa específica passagem não prescreve nenhum formato que a lei deva ter para ser considerada “Declaração de guerra”, nem a Constituição usa essa expressão. E perguntou:

O senhor pode comparar esse artigo e parágrafo com a lei de 1973 dos “Poderes de Guerra”, interpretá-los um à vista do outro, e nos dizer o que, afinal, o presidente dos EUA está ameaçando fazer contra o nosso país?

Surpreendi-me pensando “Quem será esse moço?” e em seguida, angustiado: “Onde está o professor Richard Falk, quando preciso dele? Só Falk saberia responder essa pergunta…”

Sem saber nem por onde começar a responder, gaguejei alguma coisa como “é excelente pergunta, e podemos nos reunir mais tarde para discutir isso. Já é muito tarde”.

Para minha sorte, quando eu via no relógio que já eram 4h28 da manhã, todos ouvimos o Adhan, (chamada para as preces islâmicas) cantado por um muezzinde numa mesquita próxima. O som reconfortador, meio mágico, flutuou à nossa volta. Era hora das preces do amanhecer, al-fajr. Fui salvo. Eu não saberia o que responder àquele jovem sírio.

Os soldados pela rua fizeram silêncio, ouvindo. Sabe-se lá o que passaria pela cabeça deles, para a semana que se anuncia de guerra, talvez sob ataque dos norte-americanos. O grupo começou a dispersar-se e fui salvo de ter de mostrar a minha ignorância. Pelo muezzin, não pelo professor Falk.

O povo da República Árabe Síria é gente politicamente sofisticada e os sírios estão surpreendentemente (para mim) bem informados sobre a atual crise, até detalhes precisos sobre os atores externos e seus projetos e planos.

Temos de desejar o bem deles, e nos unir a eles e às pessoas de boa vontade, como tantos cristãos e muçulmanos e de outras fés em todo o mundo, que se uniram no dia de jejum e preces convocado para esse 7/9/2013, por Sua Santidade o papa Francisco.


Nota dos tradutores

[1] Orig. The Congress shall have Power To declare War, grant Letters of Marque and Reprisal, and make Rules concerning Captures on Land and Water. É texto que exige tradução técnica, de precisão. Traduzimos o suficiente, só, para ajudar a ler. Correções e sugestões são todas bem-vindas.


[*] Franklin Lamb foi advogado-assistente do Comitê Judiciário da Câmara dos EUA e professor de Direito Internacional na Northwestern College of LawPortland,Oregon. Obteve seu diploma de Direito na Boston University, sua pós graduação (LLM), mestrado (M.Phil) e doutoramento (Ph.D). na London School of Economics. Ele está atualmente residindo em Beirute e Damasco.

Depois de 3 anos advogando no Tribunal de Haia, tornou-se professor visitante na Harvard Law School’s East Asian Legal Studies Center, onde se especializou em Direito chinês.Ele foi o primeiro ocidental admitido pelo governo da China visitar a famosa prisão de “Ward Street”, em Xangai. Lamb está atualmente pesquisando no Líbano e trabalhando com a Palestine Civil Rights Campaign-Lebanon e a Sabra-Shatila Foundation.Seu novo livro, The Case for Palestinian Civil Rights in Lebanon, será lançado em breve.

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