O livro da filha de Prestes

imagemA historiadora Anita Leocadia Prestes acaba de publicar uma extensa biografia do pai, o líder comunista Luiz Carlos Prestes. Fala muito pouco sobre a vida pessoal, mas esmiúça a trajetória política, sem desviar de temas espinhosos, como o justiçamento de uma simpatizante suspeita de traição

Luiza Villaméa

Na sala da historiadora Anita Leocadia Prestes, repleta de fotografias de Luiz Carlos Prestes, uma tela de Candido Portinari chama a atenção. É um belíssimo retrato de Olga Benário, pintado em 1945, a partir de uma fotografia publicada nos jornais. Encarregada pela Internacional Comunista de garantir a segurança de Prestes, Olga havia vivido de forma clandestina no Rio de Janeiro, mas ganhara notoriedade no País ao ser presa junto com ele, depois de um levante frustrado contra o governo Getúlio Vargas. Três anos antes de ser retratada por Portinari, a comunista alemã de origem judaica tinha sido morta em um campo de concentração da Alemanha nazista, para onde fora deportada pelo governo Vargas, no sétimo mês de gravidez.

“Prestes viu esse retrato antes mesmo de ele ficar pronto, no estúdio de Portinari, pouco depois de ser libertado”, conta Anita, a filha do casal, na sala de seu apartamento, referindo-se aos nove anos que o pai amargou nos cárceres, por conta do Levante Comunista de 1935. Anita nasceu em novembro do ano seguinte, na prisão de Barnimstrasse, em Berlim, para onde Olga foi levada ao desembarcar na Alemanha. Às vésperas de completar 79 anos, Anita acaba de lançar a biografiaLuiz Carlos Prestes – Um Comunista Brasileiro, pela Boitempo Editorial. Embora tenha uma sólida produção acadêmica, a historiadora sabe dos percalços de biografar o próprio pai, que assessorou por mais de três décadas e com quem tinha absoluta afinidade ideológica: “Tenho de correr o risco. Não afirmo nada nesse livro que não esteja calcado em documentos”.

Parte desses documentos Anita encontrou em arquivos da extinta União Soviética, onde morou em diferentes períodos, assim como Prestes. Quando chegou pela primeira vez a Moscou, no começo dos anos 1930, ele tinha liderado no Brasil um movimento militar contra a República Velha e as elites agrárias, que ficou conhecido como Coluna Prestes.Durante dois anos e meio, a Coluna percorreu 25 mil quilômetros pelo interior do Brasil. O movimento é tema de outra obra de Anita, que assina mais dez livros e é professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Brasileiros – Quais as suas primeiras lembranças de infância?

Anita Leocadia Prestes – São do México. Do período anterior, não tenho a menor lembrança. Nasci na prisão de Barnimstrasse, em Berlim, onde minha mãe estava presa, depois de extraditada pelo governo Getúlio Vargas. Ela chegou em um navio cargueiro alemão. Estava no oitavo mês de gravidez. Chegou em outubro, eu nasci em novembro. Foi um mês de viagem. O navio tinha saído do Rio no dia 23 de setembro de 1936.

Não houve como interceptar o navio?

Na França e na Espanha, portuários amigos se prepararam para tentar resgatá-la, mas o capitão tinha recebido ordem de não parar em nenhum porto. Levava Olga e Sabo (como era conhecida Elise Saborowski Ewert), as duas alemãs, judias, extraditadas para a Alemanha nazista. Um advogado francês foi mandado a Hamburgo, onde elas desembarcaram, mas não conseguiu nem chegar perto. Voltou para Paris dizendo que o esquema de segurança era assustador.

Por que Paris?

Paris era o centro de uma campanha mundial, dirigida por minha avó paterna, Leocadia Prestes, pela libertação dos presos políticos no Brasil. Prestes era o nome principal. Como minha mãe foi extraditada para a Alemanha nazista, a campanha era também pela libertação dela e minha. Mandavam cartas do mundo inteiro, inclusive dos Estados Unidos. Eu era uma criancinha, emocionava a opinião pública. Com Olga, ficava mais difícil. Ela era uma comunista conhecida, com a cabeça a prêmio na Alemanha.

Ela tinha comandado uma ação armada.
Na prisão de Moabit, em Berlim, para libertar o filósofo Otto Braun, anos antes. Já o meu caso era de uma criança que corria o risco de ser mandada para um orfanato nazista. Lá, a criança perdia o nome e virava um número. Como a família iria localizar, se sobrevivesse?

Verdade que Olga só poderia ficar com você enquanto estivesse amamentando?
E até nisso a campanha foi importante. Com os recursos arrecadados, todo mês a minha avó e a minha tia mandavam um enorme pacote com alimentos para ela. Alimentos que não precisavam de ir ao fogo, como solúveis, chocolates, biscoitos. A Gestapo roubava uma parte, mas entregava outra. Com isso, a alimentação dela melhorou muito e ela teve leite. Depois, com a pressão da opinião pública, a Gestapo chegou à conclusão de que o melhor era se livrar de mim.

Como foi isso?

Fui entregue a minha avó e a minha tia quando tinha 14 meses, no dia 21 de janeiro de 1938. Fomos de trem para Paris, onde ficamos até outubro. Com o perigo da guerra, viajamos de navio para o México, que estava dando asilo político a todo mundo que precisava. Eu não tinha completado dois anos.

O que você lembra do México?

Lembro bem que na parede da sala tinha duas fotos grandes, do meu pai e da minha mãe. Todos me ensinavam quem era o pai, quem era a mãe, porque eles estavam presos, porque estavam ausentes. As cartas que chegavam eram lidas na minha presença. Havia muita solidariedade. Eu ganhava muitos brinquedos. Claro, tinha também o sofrimento da minha avó, com o filho preso no Brasil. Lembro da angústia dela, esperando carta. Frequentemente não tinha notícia nenhuma. Ou vinham notícias alarmantes, de que ele tinha sido assassinado.

Por quanto tempo ele ficou isolado?

O tempo todo. Durante alguns períodos, não havia nem correspondência. A primeira carta que ele recebeu foi em março de 1937, um ano depois de ter sido preso. Foi quando soube do meu nascimento. Ele supunha que eu tivesse nascido, mas não sabia em que condições nem o que tinha acontecido com a minha mãe. Começou aí uma correspondência, mas muito irregular. Volta e meia a polícia proibia as cartas. Ele ficou nove anos preso.

Prestes acreditava que o tratamento que recebia podia ser vingança de Filinto Müller, o chefe da polícia, que anos antes tinha sido expulso da Coluna?
Sem dúvida. Filinto Müller era um su­­jeito vingativo, mas a principal responsabilidade era de Vargas. Aliás, o meu pai sempre falava isso. Que a extradição da minha mãe foi uma maneira de torturá-lo. A responsabilidade foi também do Supremo Tribunal Federal, que negou o habeas corpus pedido pelo advogado. Mas, voltando a sua pergunta inicial, minhas primeiras lembranças são do México, com meus pais muito presentes, mesmo presos em outros países. Não tive grandes traumas. Embora houvesse um clima de tensão, eu compreendia e aceitava. Inclusive o tempo todo me lembravam que existiam outras crianças em situação muito pior, passando fome, no meio de uma guerra.

Isso por iniciativa de dona Leocadia?

Dela e da minha tia Lygia. Elas me criaram muito nesse estado de espírito. Depois, minha avó morreu. Eu tinha só 6 anos. Quem passou a ser a minha mãe na prática foi a Lygia. Com ela passei inclusive quatro meses em Cuba, participando da Campanha Prestes, que continuava em 1943. Lá o regime era bastante democrático, embora o presidente fosse Fulgencio Batista, que depois virou ditador. Junto com Lygia, participei de muitos comícios. Era superfestejada.

Quando você se encontrou com Prestes pela primeira vez?

Dois anos depois. Cheguei com minha tia no Aeroporto Santos Dumont, em 28 de outubro de 1945. Isso eu lembro bem. Já estava com quase 9 anos. Tinha uma grande manifestação. O partido estava legal. Chamava-se então Partido Comunista do Brasil. Os companheiros tomaram conta do aeroporto. Foi permitido que o meu pai chegasse até a escada do avião. Os cordões de isolamento tinham sido rompidos. A massa invadiu a pista. Sei que fiquei muito assustada. Fiquei com meu pai, atravessando aquela massa. Todo mundo queria me agarrar, me beijar. Uma loucura.

Naquela época, você fazia ideia do que tinha sido a Coluna Prestes?
Fazia, até porque o meu pai escrevia. Ele sempre falava sobre a Coluna, das andanças pelo interior do Brasil, e em particular do rio Araguaia, que achava um dos lugares mais bonitos do mundo. Dizia que algum dia nós iríamos de Jipe até o Araguaia, para ele me mostrar o rio, mas isso nunca aconteceu. Ficou só no plano.

E a biografia dele, quando você decidiu escrever?
Esse trabalho começou há mais de 30 anos, quando resolvi estudar História. Antes disso, tinha me formado em Química em 1964 e feito estágio na fábrica de borracha da Petrobras, em Duque de Caxias. Com o golpe, todo mundo que era de esquerda foi posto para fora e não arrumava outro emprego. Fiquei no trabalho político, no Rio. Depois, fui para o trabalho clandestino do partido em São Paulo. No início dos anos 1970, como a repressão estava muito violenta, fui para a União Soviética. Lá, fiz uma tese de Economia Política. Integrei o Comitê Central do PCB, o Partido Comunista Brasileiro. Quando voltei do exílio, uma das preocupações era que meu pai estava com mais de 80 anos e não queria escrever suas memórias. Mas tinha uma memória espetacular.

Ele falava do passado?

Ele era um cara que gostava muito de conversar, de contar as histórias da Coluna, não só para mim, mas para quem quisesse ouvir. Fizemos muitas gravações. Na qualidade de historiadora, não me limitei só a ele. Três anos atrás, fui a Moscou, para pesquisar nos arquivos da Internacional Comunista. Trabalhei por períodos, até chegar em 1990, quando ele morreu. Ele viveu 92 anos, sendo 70 de atuação política intensa, no Brasil e no Exterior. Descobri também uma fonte interessantíssima, que é o arquivo do ex-presidente Artur Bernardes.

Contra o qual a Coluna se levantou.

Nesse arquivo tem documentos superinteressantes, como os telegramas dos comandantes militares governistas para o ministro da Guerra, que eram repassados para Artur Bernardes. O ministro também escrevia relatórios: “É impossível combater uma tropa que foge o tempo todo”. Isso porque a Coluna evitava o confronto direto. Fazia guerra de movimento. Já os governistas tinham aprendido com os franceses as normas da guerra de posição. Abriam trincheiras, se instalavam e ficavam esperando o ataque. Já a Coluna estava interessada em driblar, não em atacar.

De onde Prestes tirou a ideia de guerra de movimento?

Da prática, da experiência no Sul. Ele sempre falava nas guerras a cavalo entre oligarcas gaúchos. Daí encontrou a saída, por exemplo, para o chamado Cerco de São Luís, no começo da Coluna. A desproporção era muito grande. O governo estava com 14 mil homens bem armados. Reunida sob o comando de Prestes, a Coluna tinha 1,5 mil homens, mal armados. Um fuzil para cada dois. Um confronto direto seria morte certa. Mas a Coluna tinha as potreadas, pequenos grupos de soldados que se destacavam do grosso da tropa em busca de informações sobre o inimigo e sobre o terreno. Com essas informações, o comando traçava o plano de operações. Enfim, naquela ocasião eram sete colunas governistas, cada uma com dois mil homens, que marchavam para cercar a cidade de São Luís e liquidar os rebeldes. Só que eles conseguiram passar entre duas colunas sem serem vistos e seguir para o Norte. Quando as tropas governistas entraram em São Luís, não tinha nenhum rebelde.

Prestes proibiu a presença de mulheres entre os combatentes, mas elas não obedeceram. Qual o papel das mulheres na Coluna?

Foi logo no início, quando atravessaram o rio Uruguai, na fronteira com Santa Catarina. Ele deu ordens para as mulheres não atravessarem. Tinha medo que elas perturbassem a Coluna. Quando ele chegou do outro lado do rio, pois foi o último a atravessar, elas estavam todas lá. Eram 30 mulheres do Rio Grande, que depois se juntaram com as de São Paulo. Dava ao todo umas 50 mulheres. Mais tarde, Prestes reconheceu que foram muito úteis na Coluna, não só para cozinhar. Elas combatiam com um heroísmo enorme. Uma delas, a gaúcha Santa Rosa, teve um filho pelo caminho, com o inimigo vindo atrás. Não dava para parar. Então, ela teve o filho, montou o cavalo e continuou a marcha.

Qual lição Prestes tirou dessa marcha?

A lição principal foi ter conhecido a situação do povo brasileiro. Ele era engenheiro militar, chegou a capitão do Exército. Sempre dizia que eles, oficiais formados em escolas militares no Rio de Janeiro, ficaram profundamente impressionados com a miséria que existia no interior do Brasil. E ele chegou à conclusão de que o programa liberal dos tenentes não iria resolver nada. Que o problema era social, muito mais grave.

Como ele analisava a situação?

Na época, ele não tinha a menor noção de marxismo, comunismo, nada disso. Politicamente, esses militares eram muito atrasados. Cheios de boas intenções, mas conhecimento, que é bom, muito pouco. Ele sempre sublinhava isso. Quando eles se internaram na Bolívia, em fevereiro de 1927, estava havendo uma certa abertura democrática no Brasil. O estado de sítio e a censura à imprensa tinham sido levantados.

O que aconteceu?

Jornalistas dos principais jornais do Brasil foram a Gaiba, na Bolívia, onde estava a Coluna. Eles fizeram reportagens imensas. Um dos jornalistas levou os primeiros livros marxistas para Prestes. As condições eram muito adversas para o estudo. Eles trabalhavam de sol a sol, abrindo estrada de rodagem. Meu pai morava em uma espécie de cabana, construída por ele mesmo. À noite, começou a ler alguma coisa. Depois, esteve na Bolívia Astrogildo Pereira, o secretário-geral do PCB.

É quando Prestes vira comunista?

Não. Foi só uma conversa amistosa, sem maiores compromissos. Prestes tinha muito interesse sobre a União Soviética, que era um negócio muito misterioso. Astrogildo Pereira tinha estado lá, contou muita coisa. E levou uma maleta de livros marxistas para ele. Prestes ficou ainda mais um ano na Bolívia, para ganhar dinheiro e assegurar a volta dos soldados para casa. Só depois é que ele foi para o exílio em Buenos Aires.

Já era chamado de Cavaleiro da Esperança?
Ele estava na miséria, mas com muito prestígio. E começou a ser chamado de Cavaleiro da Esperança. Uma quantidade enorme de políticos brasileiros foi a Buenos Aires para tentar conquistá-lo para a Aliança Liberal. Ele ficou cercado por essa gente, mas tinha que trabalhar para sobreviver. Ao mesmo tempo, estudava marxismo. Em Buenos Aires ficava o bureau sul-americano da Internacional Comunista.

Ele mantinha vínculos com os comunistas brasileiros?
Pelo contrário. Os comunistas dessa época eram muito sectários. Achavam que ele era um líder pequeno burguês. Estavam no período do chamado obreirismo. Até Astrogildo Pereira, fundador do partido, tinha sido afastado, porque era intelectual. Isso só vai mudar em 1934. Ainda assim, em Buenos Aires, desde 1929 Prestes fazia todo um esforço para conquistar seus companheiros tenentes para as posições comunistas. Sem sucesso. Eles aderiram à Aliança Liberal e deixaram passar a ideia de que Prestes também apoiava o movimento. Como naquela época não existiam os meios de comunicação de hoje, Prestes ficou falando sozinho em Buenos Aires.

Ficou por isso mesmo?
Em maio de 1930, ele convocou as principais lideranças tenentistas para Buenos Aires, para informar que lançaria um manifesto assumindo posições comunistas. Ninguém aceitou. Os tenentes tentaram convencê-lo a aderir ao movimento mais tarde conhecido como Revolução de 1930. Naquele momento, o poder foi oferecido a Prestes de bandeja. Na época, ele era a maior liderança do País. Poderia ocupar o lugar de Getúlio, que não tinha tanto prestígio naquele tempo. Só vai adquirir depois. Mas Prestes entendeu que não havia um movimento popular organizado para lhe dar sustentação e que ele teria de fazer a política das oligarquias. Até hoje grande parte dos historiadores não entende isso. Prestes cometeu erros na vida, que ele mesmo reconheceu, mas isso foi acertado.

Quais erros ele reconhecia?

Erros cometidos à frente do partido, como em 1935. Ele reconhecia que na época consideraram erradamente que havia uma situação revolucionária no Brasil. Houve erros, mas houve acertos também. Foi importante criar a Aliança Nacional Libertadora, que chegou a ter 100 mil pessoas inscritas, e lutar contra o fascismo, o integralismo, o imperialismo e o latifúndio. As bandeiras eram essas. Não eram bandeiras comunistas. Eram de liberdades democráticas, progressistas.

No livro, a responsabilidade sobre os erros de 1935 recai sobre Miranda (codinome de Antônio Maciel Bonfim).

Miranda foi altamente responsável. Ele era o secretário-geral do partido e convenceu os soviéticos de que havia condições para fazer uma revolução no Brasil. Ele informava errado o próprio Prestes, que estava fora do Brasil havia muitos anos. Depois do exílio em Buenos Aires, Prestes ficou no Uruguai, onde havia o bureau latino-americano da Internacional Comunista. Em Montevidéu, foi convidado para ir para Moscou, como engenheiro, mas com a possibilidade de aprofundar os estudos do marxismo. Enfim, no final de 1934, quando sua volta ao Brasil é decidida, ele estava muito mal informado. Tinha saído do País em 1927, sendo que nos três anos anteriores esteve embrenhado no mato, com a Coluna.

Ele confiou então nos informes de Miranda?
Pelos relatos de Miranda, o Brasil estava às vésperas de uma revolução. Trabalhei em uma documentação interessante, as atas de uma conferência dos partidos comunistas latino-americanos realizada em Moscou em outubro de 1934. Nessas reuniões, as informações que Miranda deu são incríveis. Disse que bastaria uma palavra de Prestes para que as tropas do Exército brasileiro se levantassem e apoiassem a revolução. Um negócio totalmente sem sentido. Naquela época, os comunistas acreditavam muito no secretário-geral. Era algo assim mitológico.

Quem era Miranda?
Ele era sargento do Exército e tinha sido professor na Bahia. Falava muito bem francês. Parece que tinha facilidade para aprender línguas. Em Moscou ele impressionou por causa disso. Dimitri Manuilski, o chefe da Internacional, falava francês.

Prestes também.
Naquela época, estudava-se francês. Prestes e dona Leocadia eram pessoas cultas, que tinham estudado francês desde a infância. O Miranda não sei onde ele estudou, mas ele falava bem. Isso impressionou. E tinha cara dura para contar todas aquelas mentiras. Então a responsabilidade dele foi muito grande. Havia ainda um agravante. Prestes teve que vir clandestino para o Brasil, porque havia uma ordem de prisão preventiva contra ele. Ele voltou para o País, mas ficou muito isolado.

Ele tinha mais contato com os estrangeiros, que vieram preparar…

Vieram ajudar. Não vieram preparar. Vieram o quê? Uns dez comunistas estrangeiros para dar apoio. Todo mundo pensando que havia aquelas condições que o Miranda tinha descrito. Mas não havia tais condições. Naquele início dos anos 1930, tinha ocorrido uma reestruturação do Exército, dirigida pelo general Góes Monteiro. O Exército era outro.

Como Miranda chegou a secretário-geral?

Como sargento, ele tinha participado de vários movimentos. Esteve preso no início dos anos 1930. Antes de 1935, participou de um curso de marxismo dado no Brasil por uma dirigente russa conhecida como Inês Guralski. Pelo visto, era muito bom de bico, pois se destacou nesse curso e acabou sendo eleito secretário-geral. Naquela época, o partido era muito limitado, muito atrasado. Depois de 1935, ele foi preso, falou muito na prisão e se desmoralizou bastante. Também foi muito torturado.

Em algum momento, Prestes reviu a ordem de justiçamento de Elvira Caloni, a Garota, a namorada de Miranda?
Na época, ele negou peremptoriamente, embora existissem cartas assinadas por ele nesse sentido. Em 1940, quando foi instaurado um processo sobre a morte dela, ele continuou negando. Hoje, passados tantos anos, vendo as cartas, a gente sabe que são verdadeiras. E foi um erro. Foi um erro não só dele. Foi um erro do partido.

Ele chegou a conversar com você sobre isso?

Conversamos algumas vezes. Ele considerava que tinha sido errado. Sem dúvida que foi errado, mas naquele momento era a guerra. E ele tinha a experiência da Coluna. Ela estava traindo, fazendo o trabalho do inimigo. Se era traidora, estava prejudicando.

Havia um espião no próprio grupo organizado pela Internacional Comunista.

Teve o famoso Gruber (Franz Paul Gruber, codinome do alemão Joahnn de Graaf). Um cara super-hábil, especialista em explosivo, com curso na União Soviética. Foi ele que colocou o explosivos no cofre que tinha na casa de meu pai, que explodiria se alguém mexesse. Mas o cofre não explodiu. É evidente que Gruber sabotou. Mais do que isso, ele passava informação, por meio da empresa Light, que chegava a Getúlio. Trabalhava para o Intelligence Service, o Serviço Secreto da Inglaterra. É uma história rocambolesca, mas hoje em dia está mais do que provado que ele era espião.

Dez anos depois do levante, Prestes apoiou Getúlio. Como ele pôde apoiar um regime tão cruel, que torturou, que mandou Olga para a Alemanha nazista?

Essa história é mal contada. Não foi quando ele saiu da prisão, em 1945. Foram vários anos antes, quando Getúlio e alguns assessores perceberam que os acontecimentos não marchavam para a vitória do nazifascismo, como eles pensavam no início. Getúlio começou então a promover uma certa abertura dentro do próprio Estado Novo. A situação mundial estava mudando, havia uma pressão muito grande do governo americano para que o Brasil se afastasse da Alemanha. Havia também um movimento popular muito forte a favor da luta contra o nazifascismo. Os comunistas participaram ativamente desse movimento. Na medida em que Getúlio Vargas tomou medidas nesse sentido, Prestes achou importante apoiá-lo. Essa foi a posição.

Houve um acordo?

Não. Nenhum documento assinado. Prestes nunca apertou a mão de Getúlio. Nada disso. A posição dele não era pessoal. Muitas vezes, eu ouvi Prestes dizer que, se fosse do ponto de vista pessoal, ele sairia da prisão para dar um tiro em Getúlio. Mas ele era um dirigente político. Em 1943, ainda preso, tinha sido eleito secretário-geral do partido. Precisou tomar uma posição política. Não se tratava de perdoar Vargas. Existe uma foto de 1947, muito explorada pela direita, em que os dois estão no mesmo palanque. Isso porque os partidos que lideravam apoiavam um determinado candidato. Os dois estiveram no mesmo palanque, mas não se falaram.

O fato de você ser filha dele ajudou ou dificultou ao fazer a biografia?
Não sei. Muita gente vai dizer que é obra da filha elogiando o pai. Paciência. Tenho de correr o risco. Não afirmo nada nesse livro que não esteja calcado em documentos. Por outro lado, o fato de ser filha facilitou porque tive uma fonte à disposição durante um período muito grande de minha vida. Cheguei a conhecer bem o pensamento dele, a maneira de ele agir.

Você se considera uma guardiã do legado de Prestes?
Dizer guardiã é meio exagerado, mas tenho uma certa responsabilidade de contribuir para isso. Outros companheiros também trabalham nessa direção. Não estou sozinha, mas acho que tenho essa responsabilidade.

Na adolescência, você estudou em Moscou. Por quê?
O partido achou que eu corria muito risco aqui. Saí daqui no final de 1950. Era época da Guerra Fria, governo Dutra, muitos comunistas sendo presos, assassinados. Havia ameaças. A mim não me diziam, mas minhas tias recebiam cartas anônimas com ameaças. Então o partido achou melhor eu ir para a União Soviética. Cheguei lá com 14 anos.

Só quando voltou, com quase 21 anos, você ficou sabendo que Prestes tinha se casado, tinha outra família. Como foi?
Nem eu nem minhas tias sabíamos. Prestes contava tudo, dentro das possibilidades, mas ele estava clandestino. Essa família era clandestina. Estava em um aparelho do partido. Então, não era conveniente falar, ainda mais por carta. Quando cheguei, ele apresentou essa família, mas, lamentavelmente, dona Maria, desde o primeiro dia, foi extremamente hostil em relação a mim e às minhas tias.

Por isso você não se relaciona com seus sete irmãos?

Aconteceram muitas coisas. Meu pai nunca quis voltar para o Exército. Nem quando estava doente, no final da vida. A situação financeira era difícil, mas ele jamais aceitou. Jamais. Depois que ele morreu, dona Maria pediu para ele ser promovido. E o Exército fez uma manobra muito interessante, uma maneira de integrar o Prestes no sistema.

Qual?

Ele foi promovido post mortem a coronel. O general da Coluna foi promovido a coronel de pijama. Resultado: pensão para a mulher e as filhas mulheres. Um belo dia eu recebi uma convocação, pois tinha direito a uma parte desses proventos. Fiz uma declaração dizendo que eu não aceitava de jeito nenhum. Mais adiante, acho que já em 2004, ela recorreu para ele ser promovido a general. Deram a pensão de general. Ele seria furiosamente contra. Depois, publicaram na capa de uma revista de História uma foto dele de calção de banho. Quando ia à praia, ele colocava calção de banho. Mas era um homem extremamente contido, não aceitaria de maneira nenhuma aparecer de público de calção de banho.

Você também não aceita? Aquela foto é tão bonita.

Prestes seria totalmente contra. Eu me lembro como ele ficou indignado com Figueiredo (o ex-presidente João Figueiredo), que apareceu no jornal de calção e sem camisa. Ficou indignado: “Esse homem nu”. Ele não ficava em casa sem camisa de jeito nenhum.

Há quem diga que você é que é intransigente.

Eu sou intransigente com o que acho errado. Ele era uma pessoa que prezava muito a privacidade. Tem de respeitar. Não sou contra colocar maiô, mas tudo tem hora.

Voltando à política, em 1964, o partido estava forte. Por que não apresentou nenhuma reação ao golpe?

Forte não era. Tinha lideranças sindicais. Não tinha capacidade para organizar as forças sociais e políticas para dar apoio a Jango e às reformas de base. E não tinha sustentação para apoiá-lo na hora do golpe da direita. Não havia golpe de esquerda. A única coisa razoável a ser feita era recuar. Foi o que se fez. Senão seria uma matança generalizada.

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