O FETICHE DAS IDEIAS

imagemJuliano Medeiros

Dias atrás o professor e filósofo Vladimir Safatle publicou artigo no jornal Folha de São Paulo onde questiona a existência de uma onda conservadora no Brasil. O artigo traz uma série de considerações sobre o momento político que vivemos, estimulando um importante debate sobre como encarar as transformações que o país tem vivido. Além disso, o artigo tem dois méritos inquestionáveis: cobrar uma posição mais clara daqueles que acreditam que há um fortalecimento do conservadorismo no Brasil e, ao mesmo tempo, apontar as responsabilidades da esquerda neste processo. No entanto, apesar de festejado por muitos, o artigo tem fragilidades que merecem ser debatidas. Num momento tão complexo como o que vivemos, não temos o direito de estimular análises superficiais da realidade.

A posição de Safatle sustenta-se em duas constatações e uma hipótese. A primeira constatação é que o fortalecimento das posições conservadoras na sociedade brasileira deve-se à “decomposição” das esquerdas, notadamente aquelas que se enredaram em compromissos com a ordem do capital a ponto de comprometerem sua própria identidade. A segunda constatação é de que o Brasil sempre teve grande parcela de sua população identificada com ideias claramente conservadoras e isso não é propriamente uma novidade. Ambas as constatações nos parecem corretas.

Em seguida Safatle formula uma hipótese que contraria suas próprias constatações: a “onda conservadora” seria apenas uma narrativa cômoda, um discurso útil que, como tal, não encontra base concreta na realidade. Daí o título bombástico de seu artigo: a “falsa” onda conservadora. Ou seja, uma onda conservadora que, na verdade, não existe. Acontece que, contraditoriamente, Safatle admite que posições conservadoras ganharam força no conjunto da sociedade, chegando inclusive a atribuir esse fenômeno à incapacidade das esquerdas de apresentarem uma alternativa global à visão de mundo representada por essas ideias. Mas esse não é, exatamente, o ponto fraco do artigo de Safatle. O problema de fundo está em tomar a ofensiva do conservadorismo como um fenômeno restrito ao mundo das ideias. O marxismo ocidental já foi muito criticado por sua falta de vínculos com a prática, por ser um “marxismo de filósofos” que dava as costas para a realidade. Não podemos cometer este erro num momento tão decisivo para o Brasil.

Lauro Campos dizia que, como resultado do trabalho intelectual da burguesia, o indivíduo alienado erige um ponto de vista particular, limitado, que acaba eliminando e obscurecendo outros pontos de vista. Isto é, como falsa consciência, a ideologia impede que sejam observadas as determinações que constituem a totalidade dos fenômenos sociais. Romper com o particularismo, ou com o fetiche das ideias em relação às determinações econômico-sociais, é a melhor forma de superar aquele ponto de vista exclusivo, parcial.

Por isso, o avanço do conservadorismo não pode ser medido apenas pelo fortalecimento das “ideias conservadoras”. Esta é uma visão unilateral do fenômeno. Em outras palavras, seria um erro interpretar a presente ofensiva do conservadorismo apenas como fenômeno de natureza político-ideológico quando, na verdade, é sua expressão material que representa a verdadeira possibilidade de retrocessos.

A onda conservadora não encontra sua forma final nas posições de Silas Malafaia, Jair Bolsonaro ou Marco Feliciano. Esses indivíduos e suas visões de mundo, como adverte corretamente Safatle, sempre tiveram alguma penetração na sociedade brasileira. O que estamos vendo, possivelmente, é uma amplificação dos discursos de ódio devido à inexistência de forças de contenção como as que existiram nos anos 80 e 90. Considerar que a onda conservadora se expressa fundamentalmente na forma de “discurso do ódio” reforça a visão unilateral que Safatle reproduz em seu artigo. Ao contrário, a ofensiva do conservadorismo não se restringe à sua dimensão político-ideológica. É no campo das determinações materiais que ela se expressa mais concretamente. Trata-se, em última instância, de uma ofensiva do capital para retomar seus níveis de acumulação e colocar em marcha um novo ciclo de expansão do sistema capitalista. Por isso é necessário eliminar as conquistas democráticas que representam entraves a esta estratégia, tais como a legislação ambiental, os direitos indígenas, o sistema de proteção trabalhista e previdenciário, o controle do Estado sobre setores estratégicos da economia ou dos serviços públicos, dentre outras. Ao contrário do que pensa Safatle, a ofensiva conservadora não se resume a uma torrente de ideias atrasadas, retrógradas, anti-iluministas: sua expressão material pode ser percebida em dezenas de iniciativas que tem como objetivo retroceder em relação aos direitos hoje existentes para “destravar” um novo ciclo expansivo do capitalismo brasileiro.

Com isso, podemos afirmar, por exemplo, que a Agenda Brasil, oferecida por Renan Calheiros à presidente Dilma, é uma expressão muito mais concreta da ofensiva do conservadorismo que os discursos de Bolsonaro ou Malafaia. Assim como o são a PEC 215, que pretende extinguir a demarcação de terras indígenas, permitindo assim a expansão da fronteira agrícola; o PL 4330, que permite a utilização desenfreada do trabalho terceirizado; a proposta de retroceder ao regime de concessão na exploração do petróleo; e mesmo as medidas do ajuste fiscal de Dilma e Levy, que retiraram direitos trabalhistas e previdenciários, ampliaram as privatizações e o arrocho sobre as contas públicas, diminuindo a capacidade de investimento do Estado enquanto reajustam as taxas de remuneração dos especuladores através dos juros da dívida pública. Ou seja, a ofensiva conservadora se expressa concretamente na retirada de direitos, especialmente aqueles que podem representar barreiras à reprodução do capital em tempos de crise.

O exemplo da redução da maioridade penal é eloquente. Votada pela Câmara dos Deputados depois de vinte anos de tramitação, a aprovação veio acompanhada, poucos dias depois, de duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC) que preveem a redução da maioridade laboral, de 16 para 14 anos. Como se vê, mesmo quando o que está em questão é um tema aparentemente de natureza jurídico-penal, os interesses do capital não tardam a surgir.

Isso não significa, é claro, que o aumento dos casos de homofobia, racismo, xenofobia, violência contra a mulher, intolerância religiosa e defesa de regimes ditatoriais, não componham uma agenda conservadora que prevê retrocessos também no campo das liberdades individuais. O que estamos afirmando, ao contrário, é que esta agenda não existe por si própria: ela se alimenta de condições históricas e sociais geradas pela ofensiva do capital sobre o trabalho. As determinações falsas, defeituosas, alienadas, que constituem a ideologia, correspondem à dinâmica defeituosa, conflitiva e contraditória em que se objetivam as relações sociais em torno da produção, isto é, do conflito entre capital e trabalho, essência determinadora de fenômenos sociais mutuamente dependentes. Abrir mão deste legado interpretativo é aderir completamente ao subjetivismo.

O artigo de Safatle tem dois méritos inegáveis, a saber, destacar a responsabilidade das esquerdas no avanço das posições conservadoras – em especial aquela que, depois de 14 anos no poder, pouco fez para conter essas posições – e chamar a atenção para o fato de que o conservadorismo não é fenômeno recente no Brasil. Mas ele não soube extrair as conclusões corretas de suas constatações, circunscrevendo a ofensiva conservadora a um produto puramente ideológico, e portanto, falso. Infelizmente, Safatle e sua visão idealista da realidade tem muitos adeptos. Que a esquerda seja capaz de superar o fetiche das ideias e colocar, mais uma vez, a luta de classes no centro de suas análises.

Juliano Medeiros é historiador e membro da Executiva Nacional do PSOL.