O bloco “Comuna que Pariu!” como fenômeno cultural e político

imagemMauro Luis Iasi.

O “Comuna Que Pariu!” é um bloco de carnaval que se organizou em 2009 por iniciativa da UJC (União da Juventude Comunista) e tomou forma mais definitiva em 2013, aquecido pelas lutas na cidade do Rio de Janeiro. Tornou-se uma iniciativa da base de cultura do PCB, hoje denominada de célula de cultura, que reúne militantes do partido, ainda que o bloco tenha aglutinado militantes de diversos campos da esquerda de forma bem ampla.

Sua proposta inicial era apenas de ser um espaço de confraternização e encontro de companheiros e camaradas, mas foi assumindo uma identidade própria, uma qualidade artística e uma irreverência que lhe dão a feição que hoje assumiu. O traço principal desta identidade é a união entre a irreverência e a política. Este não é um casamento fácil e pode descambar para duas armadilhas bem conhecidas: o rebaixamento da questão política ao ponto da sátira transformar-se em banalidade frívola, ou a seriedade da pauta política matar a irreverência e a forma artística em sua especificidade, levando a instrumentalização da arte. Não queremos um “carnaval politicamente correto” ou uma “política carnavalizada”.

O que se quer é um carnaval vivo. Mas para os comunistas, tudo que é vivo reage e luta, mesmo quando dança, canta e ri.

Fico feliz em constatar que a experiência do “Comuna” tem conseguido escapar destas armadilhas navegando neste mar perigoso da sátira. Não nos propomos aqui enveredar pelo tortuoso caminho da análise da sátira como faz de forma precisa György Lukács, mas apenas indicar como o autor que a questão da sátira encontra-se no interior do problema da relação entre o fenômeno e a essência. Diz Lukács:

“Isso se dá [a explicitação dos limites da estética burguesa] porque, na questão da forma da sátira, a relação com o conteúdo de classe se expressa mais imediatamente do que na maioria dos problemas formais na literatura. A sátira é um modo de expressão literária abertamente combativo. O que é figurado na sátira não é o porquê e o contra o quê se combate, nem o próprio combate: é a forma da figuração que, em seu princípio e de modo imediato, assume a característica de um combate aberto” (György Lukács, “A questão da Sátira”, Em: Arte e Sociedade: escritos estéticos 1932-1967. Rio de Janeiro: Ed da UFRJ, 2009, p.168).

Para o marxista húngaro, a sátira não era propriamente um gênero literário, mas um método criativo – exatamente aquele que diante das contradições da realidade, dos problemas que explodem no cotidiano pela franca degradação da vida da sociedade de classes, pode expressá-los como uma figuração particular, polindo o cotidiano para que ele assuma forma artística, ou como pensava Hegel, o “ridículo deve ser depurado para se elevar ao cômico”.

No entanto, se é verdade que não basta apresentar a contradição presente no real como expressão da degradação da atual sociedade, é nesta expressão cotidiana que ela se faz viva e presente para as pessoas, através da linguagem e de comportamento cotidianos. Aqui o desafio: apresentar este conteúdo na forma especificamente estética, sem que no processo se perca a referência de onde partiu, permitindo o diálogo entre a arte e a vida. Não é fácil.

Bakhtin tratou do tema em seu estudo sobre Rabelais ao afirmar que o cinismo do autor era “essencialmente ligado à praça pública da cidade, ao campo da feira, à praça do carnaval do fim da Idade Media e do Renascimento” (Bakhtin, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Fraçois Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987, p.126). Conclui então que aquilo que aparece sob a figura do grosseiro e do grotesco (os excrementos, os órgãos genitais, o corpo…) “representa para nós tudo que é diretamente ligado à vida da praça pública, que traz a marca do caráter não oficial e da liberdade da praça pública, mas que não pode ao mesmo tempo ser classificado entre as formas da literatura da festa popular, no sentido próprio do termo” (p.132). Na praça, seja na feira ou no carnaval, os elementos da linguagem popular como os juramentos e grosserias se apresentavam e se infiltravam em todos os gêneros festivos, gozando, nos termos do autor russo, de uma certa “extraterritorialidade” no mundo da “ordem e da ideologia oficiais”, espaço no qual o “povo aí tinha sempre a última palavra”.

Assim, com a linguagem vinda do cotidiano, mas vestida de adereços, com as palavras do povo cantadas sob o peso dos ritmistas bem ensaiados, com as contradições do real fantasiadas de ironia cortante, o “Comuna” assumiu uma forma própria. Não é a mera transposição da contradição do real para a forma artística, há aqui um trabalho, que nas palavras de Lukács pode ser assim resumido: “esta tarefa consiste em figurar como necessário, sob a forma de uma evidência imediata, o que surgiu apenas ‘por acaso’ na realidade” (Lukács, op. cit., p.174).

Os temas que foram se apresentando nestes anos são significativos: no carnaval de 2010, a tônica foi a luta pelo petróleo; no de 2011, uma homenagem ao MST; em 2012, a luta contra as remoções e os mega-eventos; em 2013, uma homenagem a Oscar Niemayer; em 2014, a lutas de massas contra as remoções e a Copa do Mundo; em 2015, a luta feminista sob o lema “lugar de mulher é aonde ela quiser”; e neste ano de 2016, a luta do movimento negro com o lema “na raça contra o racismo”.

A inclusão de certos temas tem provocado reações em alguns setores, como é o caso da opressão sobre as mulheres e a questão negra no Brasil, principalmente para aqueles que transformaram em questão de honra a suposição de que tais temas estão proibidos ao marxismo e a esquerda por uma falha de origem, ou para um tipo de intelectual e militante de grife, docilmente financiado por projetos governamentais e apassivado pelo balcão das ONGs, que crê que certos temas viraram propriedade privada de certos segmentos, inscrita no cartório geral de temas da pós-modernidade.

Incomoda muita gente que seja um partido com mais de 90 anos, comunista, marxista, a tocar em temas tão importantes como o machismo, o racismo, a homofobia entre outros. Tais temas podem ser trabalhados na esquerda não porque ela deixou de ser machista, racista ou homofóbica, mas exatamente porque também aqui o preconceito se expressa e precisa ser combatido. Os comunistas tratarão destas questões por coerência ao seu quadro geral de referencia na emancipação humana, mas também e principalmente, os comunistas tratarão do tema da mulher, do negro e do homossexual pelo simples fato de que há mulheres comunistas, negros comunistas e, para desespero de toda espécie de conservadores, homossexuais comunistas. Nós nos orgulhamos muito disso.

Outro aspecto a ser destacado é que o “Comuna” funciona de forma coletiva, inclusive no processo criativo, com todos os problemas que daí derivam, mas tem funcionado bem e o resultado parece comprovar o acerto. Já em sua resolução de fundação, onde apresenta seus três sucintos princípios norteadores, isso fica claro:

I

O Comuna Que Pariu! é um Bloco Revolucionário do Proletariado, ou seja, folia de carnaval na cidade do Rio de Janeiro organizada pelo Partido Comunista Brasileiro. Sem outros formalismos, este é seu estatuto de classe.

II

No Comuna Que Pariu!, as decisões são tomadas em reunião pelas pessoas que concretizam suas ações. Ou seja, suas ações são concretizadas pelas pessoas que decidem em sua reunião. E vice-versa.

III

Revogam-se demais disposições, em especial as contrárias à camaradagem, ao amor e à felicidade, ou seja, ao comunismo, à liberdade e ao carnaval.

Bom… tem sido assim. Tem classe nos temas do setores populares, tem história nas contradições do presente, tem política na vida e vida na política. Tem comunistas no samba. Ficou bonito. Acontece lá, numa viela no centro do Rio de Janeiro (bem em frente a uma ocupação urbana) que vai ficando pequena para as mais de duas mil pessoas que tem aparecido, localizada estrategicamente entre o imponente Teatro Municipal e a Câmara dos Vereadores, entre a arte e a política… na rua!

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A Boitempo prepara para 2016 o lançamento do fundamental Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, pensadora e militante do movimento negro, feminista e comunista, que trabalha a interseccionalidade entre a luta feminista, a luta antiracista e a luta anticapitalista.

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

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