A Recriação do Homem
Éclaro que gostávamos dele.
Era um homem pobre, humilde, ofendido e maltratado
Como nós.
Era também corajoso e humano,
Muito humano, talvez humano demais.
Ficava com raiva, se comovia e chorava.
Mas o Livro não registra o seu riso.
Naquela época como hoje,
Não havia motivos para rir.
Há dois mil anos que gostamos dele
Porque fomos nós, os pobres, que o inventamos.
Não agüentávamos mais a tirania do Pai,
Do Pai aliado dos tiranos governantes,
Dono de uma religião contra a nossa independência;
Religião que nos mantinha de joelhos
Diante do Algoz.
Não queríamos uma religião
Que só servia de consolo
Para as impostas privações.
Não queríamos uma religião
Que nos fazia aceitar com naturalidade
A nossa miséria,
Não queríamos uma religião
Que aliviava a culpa dos poderosos.
(Vivíamos num grande Nordeste chamado
Judéia, famintos e desesperados, sob as patas
dos cavalos do FMI do Império Romano.)
Gostávamos dele porque era filho
de uma bela adolescente virgem
E de um honesto carpinteiro de mãos calosas
Como as nossas.
Além disso,
Havia nascido numa manjedoura.
Contava fábulas lindas sobre uma vida melhor
Para todos nós.
Havia amor e comunismo entre nós que dividíamos
O pão, a lágrima, a esperança e o riso eventual.
Mas cedo os ricos e poderosos
Descobriram as vantagens da nossa religião.
Prenderam nosso deus simples e humano
E o trancaram num palácio.
Cobriram-no de jóias
E o afastaram de nós.
Fizeram dele um sócio-mercador.
Quando alguém da nossa tribo ousava reclamar,
O Poder explicava:
“Se ele que é Deus foi crucificado”,
Por que tu, mísero mortal,
Não queres sofrer aqui na terra
Quando sabes de antemão
Que terás toda a felicidade no céu?”
Protegidos pelas armas,
Como falavam bem os nossos tiranos!
E nós continuamos a agradecer aos senhores
Que por mais de dois mil anos nos obrigam a conviver
Com a fome, o desemprego, a peste, a miséria,
A brutalidade, a humilhação e o salário mínimo.
Dizem que um dia ele voltará.
Por isso sonhamos com Baltazar, Melchior e Gaspar
Como eles eram naquela época,
Bem diversos do que são hoje e atendem pelos nomes
De Lucro, Ganância e Poder.
Deixaram de ser reis para se transformarem
Em assistentes de Papai Noel.
E se esta bela história da Carochinha fosse verdade
(Como o é em alguns corações)
Senhores donos das pompas do mundo?
Se no dia do juízo Final, nós, os pobres,
Formos mesmo os primeiros?
Haverá um inferno suficientemente quente
Para aqueles que há dois milênios nos maltratam?
É fácil reverenciá-lo agora que ele está morto
E pode ser adorado sem riscos.
Mas nós nos lembramos de como ele era antes;
Antes que o roubassem de nós.
Um dia nos revoltaremos ao lado dele.
Ou sem ele e, se for preciso,
Até mesmo contra ele!
Hoje à noite, quando vocês estiverem
Abrindo presentes,
Bebendo champanhe
Como bons fiéis
Pensem bem antes de mandar o porteiro expulsar
Aquele crioulo sujo, desdentado, cheirando
A álcool, medo, humilhação e mijo.
Pode ser o juiz supremo disfarçado,
Aquele por quem tanto esperamos
E o qual vocês tanto temiam.
Pode ser o aniversariante.