Virginia Fontes: O Brasil e o Capital-Imperialismo
Mauro Iasi*
Certos temas são fundamentais para uma reflexão de esquerda em nossos tempos: as formas contemporâneas do modo de produção capitalista, o sistema internacional da dominação do capital, a dinâmica da luta de classes atual, as manifestações do inconformismo e do amoldamento da classe trabalhadora, a questão da democracia. Virgínia Fontes nos apresenta uma rica reflexão na qual articula todas estas dimensões na perspectiva de uma totalidade econômico-política daquilo que denomina ‘capital-imperialismo’.
A originalidade deste trabalho — que é o culminar de uma extensa pesquisa e fruto do longo amadurecer de um debate que parte das reflexões acadêmicas da autora, mas que se tempera no profícuo debate político com a militância e resistência da classe trabalhadora diante das manifestações inquietantes de «apassivamento» da rebeldia que marcou os anos 1970 e 1980 — consiste no paciente trabalho de articular as dimensões da determinação econômica próprias da essencialidade do capital e de seu irresistível processo de valorização do valor, com as diversas manifestações que passam a incidir em todo o tecido da vida social, cultural, ideológica e política da sociabilidade subsumida ao capital.
Para quem espera um mero atualizar do caráter imperialista da forma contemporânea do capital, um eterno repetir de si mesmo como fase terminal e parasitária do capitalismo, a análise de Fontes surpreende com argumentos que nos mostram que os elementos essenciais deste momento do modo de produção capitalista, tal como anunciados por Lenin em seu famoso trabalho sobre o tema, estão sim mais atuais que nunca, tais como a concentração e centralização de capitais, a fusão do capital industrial com o capital bancário formando o capital financeiro, a exportação de capitais e a subsequente partilha e repartilha constante do globo, primeiro entre os monopólios e depois entre as nações que os representam; no entanto, não basta reafirmar a máxima manifestação destes fatores, mas afirmar que, em um determinado ponto, seu desenvolvimento aponta para uma nova fase contemporânea, que seria o capital-imperialismo.
O grau de concentração e centralização, o esquadrinhar do globo pelos monopólios e o ápice do processo de valorização e de consequente crise do capital, potencializando a formação do capital portador de juros, criou um cenário no qual a exportação de capitais e a sua constante valorização se dão necessariamente em uma teia internacional de relações, num sistema mundial de Estados que são obrigados a pensar suas formas de dominação a partir desta internacionalização, formando o capital-imperialismo. O essencial no conceito apresentado é a possibilidade de compreender o fenômeno não apenas como uma dominação de um centro sobre uma periferia, mas como uma relação na qual é possível que a subordinação das economias de «capitalismo tardio» não impeça o protagonismo de países nas diferentes frentes de valorização do capital-imperialismo.
É bom que se destaque que aquilo que se internacionaliza ainda é o modo de produção capitalista e isso é essencial, pois a autora, com qualidade teórica, sustenta sua análise da forma atual do capitalismo nos fundamentos da crítica da econômica política e na centralidade do trabalho e da lei do valor, configurando uma valiosa trincheira contra as versões que se popularizaram fundadas na afirmação de uma contemporaneidade «pósindustrial», «pós-capitalista», ou qualquer outra metafísica que busca obscurecer os reais fundamentos da exploração do trabalho como base real do ciclo do capital total.
Nesse sentido, Fontes recusa as saídas fáceis dos termos como «finaceirização» ou «globalização», resgatando não apenas o fundamento capitalista da forma presente como o imperialismo como base para compreender as feições da dominação do capital em nossos tempos. Como já confessou o próprio Galbraith: «Globalização não é um conceito sério. Nós, americanos, a inventamos para dissimular nossa política de entrada econômica nos outros países».
Entretanto, o esforço da autora não se restringe a validar tais fundamentos, vai além. Ainda que as bases econômicas sejam essenciais, recupera a mais cara tradição da renovação dialética do marxismo, ou seja, a perspectiva da totalidade.
Seria aqui, talvez, a nota distintiva de originalidade do trabalho. O capital-imperialismo não é apenas uma expressão da forma atual da dominação dos monopólios e da partilha do mundo, formando áreas de exportação de capitais, mas um sistema que tem que equacionar os meios e formas de dominação e «consentimento», em outras palavras, no conjunto dos meios políticos, ideológicos e culturais através dos quais a burguesia monopolista enfrenta seu antípoda – os trabalhadores –, com a intenção de subordiná-los á lógica hegemônica do capital.
Assim é que não nos surpreende, ao lado de Lenin, a presença de Gramsci. Os dois pensadores marxistas buscam compreender suas formações sociais específicas no contexto de um capitalismo mundial que envolve em seu processo de desenvolvimento as nações «retardatárias», assim como se defrontam com as manifestações de um «apassivamento» reformista da classe trabalhadora.
Desta forma, o fenômeno do imperialismo se mescla com o processo político de busca de estratégias de impor uma hegemonia burguesa que desarme os trabalhadores de sua necessária independência de classe no sentido de um projeto societário para além do capital.
Ora, as formas econômicas e políticas da dominação da burguesia monopolista se aprofundaram e alteraram sensivelmente após a Segunda Grande Guerra, da mesma forma que o gigantismo da valorização do valor exigiu formas políticas capazes de administrar as contratendências à tendência à queda da taxa de lucro, entre elas a formação do capital portador de juros, e desarmar os trabalhadores, levando a um papel diferenciado do Estado burguês, seja na versão clássica do pacto social-democrata, no Welfare State, seja nas ditaduras na América Latina e Ásia. No bojo das novas e necessárias formas de dominação/consentimento, a questão da democracia representativa passa a ocupar lugar central nas formas de amoldamento do proletariado aos limites da ordem do capital.
É a partir deste enquadre teórico e conceitual que a autora olha para a formação social brasileira de maneira provocativa, polêmica e, por isso mesmo, instigante. O desenvolvimento do capitalismo brasileiro não pode mais ser analisado com os precários meios conceituais do «desenvolvimento» ou «subdesenvolvimento», ou da «dependência», uma vez que tal análise acaba deformando o fenômeno imperialista como uma mera dominação «externa», abrindo espaço para a concepção de uma «burguesia nacional» ou estratégias de desenvolvimento capitalista fundadas no pacto social entre dominados e dominadores.
O capitalismo brasileiro não apenas fez seu percurso até o capital monopolista, concentrou e centralizou seus capitais, desenvolveu as instituições de uma sociedade civil burguesa e de um Estado burguês que completa sua transição até uma «democracia representativa», como o fez integrando-se dinamicamente à ordem internacional do capital-imperialismo. Sua subalternidade inconteste diante do centro irradiador e determinante do sistema não impede — pelo contrário, impõe — um papel ativo e diferenciado daquelas formações sociais que se convertem em ‘plataformas de expansão’ do capital-imperialismo.
É evidente que a autora não nega as diferenças que marcam a subalternidade (o peso e o tamanho comparativo dos monopólios nacionais em relação aos do centro, a dimensão militar irrelevante das FFAA etc.), mas isso não pode ofuscar a percepção do peso econômico dos monopólios, sua presença no cenário internacional e mesmo seu caráter evidente de exportador de capitais não apenas no cenário latino-americano como em outras partes do globo.
O Brasil, como parte ativa do sistema do capital-imperialismo, exigia um equacionamento da luta de classes, neutralizando a pressão dos «de baixo». São vistos como unidade o papel de plataforma do capital-imperialismo e o desfecho da luta de classes no Brasil em uma forma pactuada de transformismo e apassivamento da rebeldia proletária, expressa de forma didática pela trajetória que leva da contestação ao amoldamento das organizações inicialmente contra-hegemônicas, como a CUT e o PT.
Por tudo isso, o livro de Virgínia Fontes torna-se uma referência para o debate da esquerda brasileira e daqueles que não abandonaram a perspectiva de ruptura com a ordem do capital. Mais do que uma conclusão definitiva, o livro é um profícuo ponto de partida para uma análise necessária.
Nota: Virginia Fontes, Professora da Iniversidade Federal Fluminense, Brasil, participou activamente nos Encontros Civilização ou Barbárie, organizados por odiario.info.
* Mauro Luis Iasi é professor-adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, membro do conselho editorial da Editora Expressão Popular.