Aos médicos revolucionários!

imagemWladimir Nunes Pinheiro*

O dia 18 de outubro é o dia de São Lucas, um dos quatro evangelistas que escreveram o Novo Testamento. Por exercer a medicina, a categoria médica o tomou como seu padroeiro, comemorando o dia do médico no seu dia. Mas ela não tem muito o que comemorar.

Como outros profissionais de saúde, os médicos vivenciam cotidianamente as angústias da falência do sistema de saúde, com seu subfinanciamento crônico, precarização das condições de trabalho e limitações com relação à sua atuação na tentativa de prestar cuidados à população. Assim como todos os outros trabalhadores, também estão submetidos à subtração brutal de seus direitos e irão sofrer com a intensificação dos ataques às políticas sociais perpetradas pelo governo Michel Temer, em especial àquelas relacionadas à saúde e educação, com a famigerada PEC 241.

Mesmo padecendo dos mesmos problemas de milhões de outros trabalhadores, os médicos não se identificam com a classe trabalhadora. Isso não se explica somente pela sua auto caracterização como profissionais liberais, representantes das camadas médias, portadores de salários diferenciados ou opção por pertencer à classe dominante. É possível encontrar raízes históricas para essa situação. Desde seus primórdios a profissão sempre foi cercada de um status que a separava das pessoas comuns, com acesso limitado à sua prática e conhecimentos restritos a “iniciados”, haja visto suas representações em outros tempos: xamãs, bruxos, mágicos e sacerdotes (o uso do masculino é proposital, uma vez que somente muito recentemente as mulheres começaram a disputar maiores espaços na profissão, apesar de que, na maioria das vezes, acabem exercendo especialidades e ocupando postos de trabalho com menores remunerações). Hipócrates, considerado o Pai da Medicina (àquele ao qual é atribuído o juramento a que todo médico faz ao término de sua graduação), limitava sua atuação à esfera do trabalho intelectual, estudando as doenças, prescrevendo medicamentos, orientando os pacientes e aconselhando hábitos saudáveis; não se punha a realizar procedimentos, considerados trabalho manual, indigno ao cidadão grego e reservado aos escravos, numa clara alusão ao caráter elitista da profissão.

A Idade Moderna trouxe aos médicos uma nova condição: todo um edifício científico, constituído de conhecimentos, técnicas, materiais e substâncias foram desenvolvidos. Apesar de produzidos à partir dos conhecimentos acumulados socialmente, a maioria desses avanços acabaram sendo apropriados privadamente, adquirindo um caráter importante no processo de acumulação capitalista, em especial para as indústrias médico-hospitalar-farmacêuticas. O médico passa a ser um indutor do lucro dessas empresas em função das demandas criadas no seu exercício profissional por medicamentos, exames e insumos. Isso, associado ao papel de recomposição da força de trabalho com vistas a não interrupção do processo de extração de mais-valia, quando de sua atuação sobre o corpo doente do trabalhador, conferem a funcionalidade do profissional médico para o sistema capitalista.

Até em Marx, no Manifesto do Partido Comunista de 1848, encontramos uma afirmação sobre o destino reservado à medicina dentro do capitalismo; “A burguesia despiu de sua auréola todas as atividades veneráveis, até agora consideradas dignas de pudor piedoso. Transformou o médico, o jurista, o sacerdote, o poeta e o homem da ciência em trabalhadores assalariados”. Nem mesmo os processos de exploração direta feito pelo sistema médico-empresarial ou pelos setores de planos e convênios de saúde conferem, à maioria dos médicos, aproximação com a percepção de sua condição mais próxima do proletariado do que da burguesia.

Apesar do pensamento conservador ser hegemônico dentro da categoria médica, encontram-se milhares de profissionais atuando junto aos Sistema Único de Saúde que não abriram mão de alguns princípios caros à classe trabalhadora: a solidariedade de classe, a perseverança ante às adversidades, a confiança nas possibilidades de mudanças, a fé inabalável no gênero humanos. É isso que não os faz desistir da profissão. É isso que os faz dissonante da maioria da categoria. É isso que os identifica com a classe trabalhadora. É isso que os permite compreender a saúde como um processo determinado socialmente e que os impulsionam para lutas além do setor saúde. É isso que os faz chamarem-se a si mesmos de companheiros ou camaradas.

E por se tratar exercício da medicina também de uma construção social, porque não instituir um Dia do Médico Revolucionário? Poderia ser o dia 14 de junho, dia do aniversário de nascimento de Ernesto Che Guevara. Lembrado como revolucionário, Che também era médico. E representa toda uma perspectiva de saúde que atende aos mais nobres interesses que a medicina poderia ter, a solidariedade entre os homens.

Che também era poeta, e tudo o que se escreveu até aqui foi para chegar a esse seu poema. Um poema feito para uma de suas pacientes. Um poema que traz a história da morte (mas também da vida) de alguém que representa os milhões pertencentes à classe trabalhadora. Um poema para a dona Maria, atendida na Unidade Básica de Saúde; para o seu José, atendido no hospital; para o seu João, que morreu na fila dos transplantes; e para Ana, a mãe que cuida com dificuldade de sua filha com microcefalia, provocada pela irresponsabilidade que causou a epidemia do Zika Vírus. Um poema que traduz as adversidades da classe trabalhadora. Um poema que mostra a indignação diante das injustiças, a inconformidade diante das situações condicionadas socialmente, a sensibilidade diante das fatalidades e a esperança diante do futuro. Atributos de todo revolucionário; princípios para médicos que seguem seu caminho de liberdade na construção do homem novo, do mundo novo. Quem sabe o “juramento de Hipócrates” dos médicos revolucionários?

VELHA MARIA
(Che Guevara, Argentina, 1928-1967)

Velha Maria, vais morrer:
Quero falar contigo seriamente.

Tua vida foi um rosário completo de agonias,
não houve homem amado nem saúde nem dinheiro,
apenas a fome para ser compartilhada.
Mas quero faler-te da tua esperança,
das três diversas esperanças
que tua filha fabricou sem saber como.

Toma esta mão de homem que parece de menino
nas tuas mãos, polidas pelo sabão amarelo.
Abriga teus calos duros e teus nós puros dos dedos
na suave vergonha de minhas mãos de médico.

Escuta, avó proletária:
crê no homem que chega,
crê no futuro que nunca verás.

Não rezes ao deus inclemente
que toda uma vida desmentiu tua esperança;
não peças clemência à morte
para ver crescer tuas pardas carícias;
os céus são surdos e o escuro manda em ti.
Mas terás uma vermelha vingança sobre tudo,
juro pela exata dimensão de meus ideais:
todos os teus netos viverão a aurora.
Morre em paz, velha lutadora.

Vais morrer, velha Maria:
trinta projetos de mortalha
dirão adeus com o olhar
num destes dias em que te vais.

Vais morrer, velha Maria:
ficarão mudas as paredes da sala
quando a morte conjugar-te com a asma
e copularem seu amor na tua garganta.

Essas três carícias construidas de bronze
(a única luz que alivia a tua noite),
esses três netos vestidos de fome
chorarão os nós destes dedos velhos
onde sempre encontravam um sorriso.
E isso será tudo, velha Maria.

Tua vida foi um rosário de magras agonias,
não houve homem amado, saúde, alegria
apenas a fome para ser compartilhada.
Tua vida foi triste, velha Maria.

Quando o anúncio do descanso eterno
suaviza a dor de tuas pupilas
e quando a tua mão de perpétua borralheira
absorve a última e ingênua carícia,
pensas neles… e choras,
pobre velha Maria!

Não, não o faças!
Não rezes ao deus indolente
que toda uma vida desmentiu a tua esperança,
nem peças clemência à morte,
que tua vida foi horrivelmednte vestida de fome
e acaba vestida de asma.

Mas quero anunciar-te,
na voz baixa e viril das esperanças,
a mais vermelha e viril das vinganças.
Quero jurá-lo pela exata
dimensão de meus ideais.

Toma esta mão de homem que parece de menino
nas tuas mãos, polidas pelo sabão amarelo.
Abriga teus calos duros e teus nós puros dos dedos
na suave vergonha de minhas mãos de médico.

Descansa em paz, velha Maria,
descansa em paz, velha lutadora:
todos os teus netos viverão a aurora.
EU JURO!

*Wladimir Nunes Pinheiro, médico, é membro do Comitê Central do PCB e responsável pela fração nacional de saúde do PCB.