Escalada na repressão e violência contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): do Paraná a São Paulo

imagemAna Saldanha

1. No dia 4 de Novembro de 2016 uma repressiva acção policial brasileira estendeu-se da região centro-sul do Estado do Paraná até ao Estado de São Paulo, naquela que foi denominada operação “Castra” (em latim: terreno ou edifício onde se reagrupavam tropas na Roma antiga). Através de um forte dispositivo policial, cujo elevado grau de violência culminou com a invasão da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), a acção teve como objectivo a prisão de militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Paraná: 7 de abril de 2016

A terra é vulcânica, vermelha, sanguínea, e não nos larga. Cola-se-nos aos sapatos, às roupas, à pele: é a terra paranaense. A 170 km (em linha reta) das cataratas de Foz de Iguaçu, e a 120 Km da cidade de Cascavel, fica a pequena cidade do interior do Paraná, Quedas de Iguaçu. A 10 km desta pequena cidade, construída à medida das necessidades, e sob os auspícios, da empresa brasileira Araupel (exportadora de madeira), fica o acampamento D. Tomás Balduíno, ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) (a última, em data, no Paraná).

A ocupação foi iniciada em 6 de julho de 2015, por aproximadamente 1500 famílias, e exige, para fins de Reforma Agrária, a entrega de 12.000 hectares de terras públicas, exploradas ilegalmente pela empresa extractivista Araupel.

Fruto da fusão, em 1972, de dois grupos brasileiros de extração de madeira (Madeireira Giacomet S.A. e Marodin S.A. Exportação), atuantes desde 1910 na região do Paraná, a então criada Giacomet-Marodin Indústria de Madeiras S.A. muda a sua razão social para Araupel S.A., no ano de 1997. Extraindo, desde a fusão das duas indústrias extractivistas (em 1972), madeira de pinheiros e de eucaliptos, situados em terrenos pertencentes à União, a empresa atua, portanto, irregularmente “em parte de uma área considerada pública, com um histórico de conflito e degradação ambiental na região, com a substituição das matas nativas por uma grande monocultura de pinus e araucária, visando a indústria da madeira” (Nota Oficial do INCRA, 8 de abril de 2016).

É neste quadro que, há exatamente 20 anos, o MST inicia uma séria de ocupações nas terras ilegalmente ocupadas pela Araupel, num conflito que se prolonga até à atualidade, e do qual resultou o assassinato, em 1997, de dois trabalhadores Sem Terra.

A primeira ocupação, iniciada em 1996, e que se prolongou pelo ano seguinte, foi desde logo acompanhada por uma uma ação judicial. É assim que, em 1997 e 1998, a Araupel é desapropriada (esta desapropriação foi, contudo, fruto de uma indemnização por parte do Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra)) de uma área considerada improdutiva (do Título Pinhal Ralo (1)), de cerca de 25 mil hectares. Nesta área, antes ocupada pelos trabalhadores Sem Terra, foram assentadas 1.550 famílias (assentamentos Ireno Alves dos Santos, criado em 1997, e assentamento Marcos Freire, criado em 1998), cuja produção agrícola constitui, hoje em dia, a base da economia do município de Rio Bonito do Iguaçu.

A luta pela terra para fins de Reforma Agrária, entretanto, prosseguiu.

Em 2003, com o objetivo de encontrar uma solução para outra ocupação do MST, desta vez numa área de Quedas do Iguaçu, no Título Rio das Cobras, o Incra buscou a compra de 23 mil hectares desse mesmo Título, à empresa Araupel. Em consequência, nasce, nesse mesmo ano, o assentamento Celso Furtado (com mais de 1.000 famílias assentadas). Em maio de 2015, a Justiça Federal determina, no entanto, que os 23 mil hectares do Título Rio das Cobras pertencem à União, pelo que a Araupel é condenada a devolver as indenizações recebidas precedentemente pelo Incra, pelo uso indevido da área pública.

À luz dessa decisão, ou seja, tendo em vista que a Justiça Federal havia determinado que a área do Título Rio das Cobras (Quedas do Iguaçu) é pública, a União/Incra entrou, ainda em 2015, com uma ação civil pública para questionar a área remanescente, de 12 mil hectares, onde desde então se encontra o acampamento D. Tomás Balduíno. A empresa Araupel recusa-se, no entanto, a entregar as terras que explora ilegalmente no Título Rio das Cobras, pelo que o caso tramita, atualmente, pelos tribunais paranaenses (2).

Em suma, das cinco ocupações realizadas, desde 1996, pelo MST (a última resultou no atual acampamento D. Tomás Balduíno), já se logrou, por via da luta, a constituição de três assentamentos.

Ora, foi nessa terra vermelha de resistência que no dia 7 de abril de 2016 dois trabalhadores Sem Terra foram assassinados (Vilmar Bordim e Leonir Orback), pela polícia militar paranaense.

Este fato relembra-nos que o conflito pela terra no Paraná, contra o latifúndio e o modelo do agronegócio, é feito, desde as primeiras ocupações, em 1996, de luta, mas também de sangue: “A empresa Araupel que se constitui em um poderoso império econômico e político, utilizando da grilagem de terras públicas, do uso constante da violência contra trabalhadores rurais e posseiros, muitas vezes atua em conluio com o aparato policial civil e militar, e tendo inclusive financiado campanhas políticas de autoridades públicas, tal como o chefe da Casa Civil do Governo Beto Richa, Valdir Rossoni” (Nota do MST, 4 de novembro de 2016).

No dia 7 de abril de 2016, 25 trabalhadores Sem Terra encontravam-se dentro de uma carrinha (no perímetro da área que a Justiça havia declarado como pública, em 2015), a aproximadamente 6km do acampamento D. Tomás Balduíno, quando são surpreendidos por polícias militares paranaenses e seguranças privados contratados pela empresa. Os polícias e seguranças privados iniciam, então, uma sucessão de tiros (mais de 120) sobre a carrinha, provocando sete feridos e dois mortos (morte causada por balas recebidas nas costas). Os ocupantes da carrinha tentam, entretanto, de diversas formas, abandoná-la: enquanto se protegiam dos tiros sucessivos das forças militarizadas, trabalhadores Sem Terra saltam pelas janelas, embrenham-se pelo mato, correndo, sob os tiros, em diferentes direções, numa tentativa de alcançar o acampamento. O local da emboscada foi, logo depois, isolado pela própria polícia militar, quer impedindo acampados e familiares dos feridos e dos mortos de se aproximarem, quer permitindo à própria polícia a alteração da cena do crime, numa tentativa de justificar posteriormente o assassinato dos dois trabalhadores Sem Terra, assim como os tiros indiscriminados contra os acampados.

Na sequência da luta que se vem travando contra os interesses da empresa Araupel, lideranças do acampamento vinham sido constantemente ameaçadas de morte, já antes da emboscada, inclusivamente por membros das forças policiais do Estado. Estas ameaças prosseguiram e intensificaram-se depois do assassinato dos dois acampados, nomeadamente por via de ligações anônimas (diretamente aos visados) e das redes sociais.

Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo: 4 de novembro de 2016

No seguimento da criminalização dos dirigentes Sem Terra do Estado do Paraná, a Polícia Civil paranaense emitiu, na manhã do dia 4 de novembro de 2016, 14 mandados de prisão, 10 mandados de busca e de apreensão e 2 de condução coercitiva. Esta ação judicial e militar (as acusações são vastas, indo desde a acusação de furto e dano qualificado, roubo, invasão de propriedade, incêndio criminoso, cárcere privado, lesão corporal, até porte ilegal de arma de fogo de uso restrito e irrestrito, e constrangimento ilegal) tem como principal objetivo a incriminação de lideranças dos acampamentos Dom Tomás Balduíno e Herdeiros da Luta pela Terra, e, consequentemente, a criminalização da luta pela Reforma Agrária: “Desde maio de 2014 aproximadamente 3 mil famílias acampadas, ocupam áreas griladas pela empresa Araupel. Essas áreas foram griladas e por isso declaradas pela Justiça Federal terras públicas, pertencentes à União que devem ser destinadas para a Reforma Agrária” (Nota do MST, 4 de novembro de 2016).

A operação, denominada Castra, desenrolou-se em Quedas do Iguaçu, em Francisco Beltrão e em Laranjeiras do Sul (na região centro-sul do Paraná), onde foram detidos oito trabalhadores Sem Terra, e ainda em São Paulo e no Mato Grosso do Sul.

No Mato Grosso do Sul, 3 viaturas policiais, com placas do Paraná, entraram no Centro de Pesquisa e Capacitação Geraldo Garcia (CEPEGE), em Sidrolândia, sem mandado de busca e apreensão. Nenhum dos Sem Terra que aqui se encontravam foi, contudo, preso.

Entretanto, membros da Polícia Civil invadiram a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em São Paulo, uma vez mais sem qualquer mandado de busca e apreensão: refira-se, aliás, que os polícias, de forma arbitrária e ilegal, apresentaram um mandado de prisão, através de uma foto de Whatsapp, e por isso sem qualquer validade.

Inaugurada em janeiro de 2005, a ENFF é fruto do trabalho voluntário, durante cinco anos, de mais de 1.000 militantes do MST, de 112 assentamentos e de 230 acampamentos, de 20 estados do Brasil, organizados num total de 25 brigadas de trabalho. Diferentes organizações e personalidades garantiram, aliás, o financiamento da construção da escola, como José Saramago, Sebastião Salgado ou Chico Buarque. A escola promove cursos formais (em convénio com Universidades Públicas) e informais (nomeadamente de formação política e ideológica de militantes de diferentes organizações políticas, sociais e populares dos cinco continentes).

a. Com uma violência que não é estranha aos militantes Sem Terra, os polícias (que se haviam deslocado em dez viaturas) entraram fortemente armados pela janela da recepção e saltaram pelo portão da entrada principal, ameaçando os trabalhadores Sem Terra e amigos que aí se encontravam; as ameaças e tentativas de subjugação culminaram com o disparo de três tiros a bala real. Face à imediata ação daqueles que ali se encontravam, e que (apesar da violência destes) entravaram o avanço dos policiais, assim como de advogados que estavam presentes na ENFF nesse momento, os polícias foram obrigados a recuar. Dois militantes, no entanto, foram detidos e acusados de desacato à autoridade (um deles, um Professor de 64 anos, vítima de Parkinson, fruto da violência policial, teve uma costela partida), tendo sido libertados depois de prestarem depoimento.

Pouco tempo antes, numa outra entrada da ENFF, um polícia já havia ameaçado os trabalhadores Sem Terra, gritando para uma militante ali presente: “alguém vai sair morto daqui” (documentado em filme). Há que assinalar que no momento da invasão da polícia civil, mais de 250 estudantes se encontravam presentes na escola.

Denunciando “a escalada da repressão contra a luta pela terra, onde predominam os interesses do agronegócio associado à violência do Estado de Exceção” o MST reivindica “que a terra cumpra a sua função social e que seja destinada para o assentamento das 10 mil famílias acampadas no Paraná” (Nota do MST, 4 de novembro de 2016) (3).

Lutar, Construir, Reforma Agrária Popular!
Lutar, Construir, Reforma Agrária Popular!
Lutar, Construir, Reforma Agrária Popular!

São Paulo, 6 de novembro de 2016

1 – O conflito pelas terras ocupadas indevidamente pela Araupel estende-se, na atualidade, a uma outra ocupação do MST, iniciada no dia 1 de maio de 2014 e que hoje abriga mais de mil famílias, no município de Rio Bonito do Iguaçu, no acampamento Herdeiros da Terra do Primeiro de Maio. Esta ocupação encontra-se na área do título Pinhal Ralo, numa área remanescente de 18 mil hectares. Este caso encontra em análise jurídica pela PFE/Incra /Brasília¬DF. Em homenagem ao trabalhador Sem Terra assassinado em abril de 2016, o acampamento rebatizou o seu nome para acampamento Valmir Bordin.

2 – A Araupel foi condenada no Tribunal de Primeira Instância, no entanto recorreu para o Tribunal de Segunda Instância.

3 – No Sábado, dia 5 de novembro, um ato de solidariedade com o MST foi organizado na ENFF, reunindo mais de 600 amigos e trabalhadores Sem Terra.

http://www.odiario.info/2-escalada-na-repressao-e-violencia/

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