Le Fil Rouge – Uma saga revolucionária
Miguel Urbano Rodrigues
Num panorama editorial, nacional e internacional, onde predominam esmagadoramente obras cujos personagens não têm aparentemente compromisso de classe, este livro publicado em 2016 é singular. Os personagens são comunistas, e a sua ação insere-se em alguns dos mais duros combates de classe da primeira metade do século XX.
LE FIL ROUGE* (O Fio Vermelho) é uma saga. Apresenta-se como romance, mas enquadra-se mal nesse gênero literário. Gilda Landino Guibert escreveu um poema revolucionário em prosa que projeta os leitores para cenários de luta pela liberdade e pela transformação do mundo.
O sujeito é simultaneamente individual, uma família, e coletivo, os italianos de aldeias da Toscana que se bateram contra o fascismo mussoliniano e, posteriormente em França, como imigrantes, ao lado dos franceses da Resistência contra a ocupação alemã. A ação transcorre na primeira metade do seculo XX.
O patriarca da família é Aristodemo, um lenhador de Torniella, uma aldeia toscana de camponeses sem terra, a grande maioria analfabetos. Residem em toscos casebres, e a fome é companheira diária dessa gente proletária que sobrevive com salários de miséria.
Aristodemo é desde a adolescência um rebelde. Aos 14 anos a sua participação ativa na ocupação de terras comunais de que se tinha apropriado um conde, grande latifundiário, assinala o início de uma vida dedicada à revolução. Lê tudo o que lhe cai nas mãos. Descobre Marx e Lenin, entusiasma-se com a gesta da Comuna de Paris. Mobilizado para combater contra o povo líbio, deserta. É preso, condenado e, no cárcere, aprofunda a sua cultura política A companheira, Violeta, passa também pela prisão; torturada, não cede. Ambos são revolucionários, muito antes da formação do Partido Comunista Italiano.
A escritora dedica capítulos à ascensão do fascismo na Itália, à destruição da cidade de Roccabrada pelos camisas negras de Mussolini, à prisão dos comunistas de Torniella, nomeadamente Aristodemo.
O chefe dos Landini, com a cabeça a prêmio, emigra para França onde a mulher e os filhos se reúnem a ele.
Gilda descreve com minúcias a difícil, dolorosa integração de Aristodemo (passa a chamar-se Aristide em França) nas minas de ferro da Lorena, e, depois, como lenhador, noutra região e finalmente na Provença, onde a família, já com quatro filhos, se fixa numa aldeia onde a maioria dos habitantes são imigrantes italianos, quase todos comunistas.
As perseguições acentuam-se após a derrota da França. O filho mais velho, Arnolfo (torna-se Roger na Provença), destacado militante comunista como o pai, é particularmente visado pelas autoridades de Vichy. A família vegeta numa pobreza próxima da miséria sem perder a alegria. Quando o cerco aperta, Aristide e os seus mudam-se para Creuse, um departamento do Maciço Central. Fiéis ao seu ideário, mantêm uma combatividade exemplar.
GILDA
Gilda Landini Guibert é neta de Aristide, filha de Leo, o caçula da família.
Não viveu a dramática epopeia da família. Dela tomou conhecimento escutando o pai e através do muito que se escreveu sobre os Landini. Professora de história, presidente da Comissão de História do Museu da Resistência, dedicou dez anos à pesquisa e estudo dos acontecimentos de que os seus antepassados foram protagonistas. O seu trabalho levou-a à Toscana natal do avô, aos arquivos de Roccastrada, ao Museu da Resistência de Florença, aos arquivos provençais de Draguyignan e Muy, ao antigo presídio de Montluc, ao Centro da Resistência em Lyon e ao Museu Nacional da Resistência e da Deportação em Champigny sur Marne. Comunista desde a juventude, na tradição familiar, a sua opção ideológica transparece do início ao fim do livro. Ela escreve com a paixão, a confiança e o entusiasmo dos bolcheviques da Revolução de Outubro.
As dezenas de combatentes citados por Gilda foram revolucionários reais. Muitos deles personagens históricos. Togliatti dormiu em casa do avô, e Thorez pronunciou no Norte o discurso de que ela transcreve alguns parágrafos.
A emoção que escorre das páginas de muitos capítulos suscita reparos da crítica. Mas não foi a ambição literária que a empurrou para a escrita da saga dos Landini.
DO TERROR NAZI À ESPERANÇA
Em circunstâncias diferentes, Aristide, Roger e Leo são presos e torturados. Resistem; nenhum deles fala.
A luta contra os alemães na Resistência é o tema das últimas duzentas páginas, mais de um terço do livro.
Roger primeiro e depois Leo, um adolescente de17 anos, participam de múltiplas ações de sabotagem que visam os transportes ferroviários, fábricas, aviões, edifícios que produzem armas para os alemães.
O cenário é a região de Lyon. Gilda move-se no tempo como historiadora. Cita as datas e os lugares de cada iniciativa da guerrilha rural (o maquis) e da urbana. Alguns capítulos abrem ao leitor páginas da história da França do ano 44, quando a derrota alemã era já uma certeza Leo, capturado, é submetido pela Gestapo a sessões de tortura minuciosamente descritas. Mas não lhe arrancam uma palavra. Sofre tanto que deseja a morte. Nesses dias venceu mais uma batalha. Adquiriu a certeza de que era possível resistir, que suplício algum o faria falar…
KLAUS BARBIE
O chefe local da Gestapo, Klaus Barbie, o “açougueiro de Lyon” dirige pessoalmente a tortura de Leo Landini.
O seu retrato é esboçado com realismo. Foi um dos mais sanguinários assassinos da organização criminosa.
Finda a guerra, conseguiu fugir para os EUA protegido pelo Country Intelligence Corps da US Army, com o qual passou a trabalhar intimamente no quadro da Guerra Fria.
Em 1951 estava na Argentina, colaborando com a CIA. Mas em 1961 já vive na Bolívia, sob o nome de Klaus Altman e torna-se um prospero comerciante. Durante a ditadura do general Hugo Banzer é assessor do alto comando do exército boliviano. Enriquece.
Não esqueci que em 1983 eu estava em La Paz quando o presidente progressista Siles Suazo decidiu prender e entregar à França Altman-Barbie, que fora identificado por um jornalista que o entrevistara. Julgado como criminoso de guerra, foi condenado à prisão perpétua. Faleceu no cárcere em 1991.
EPÍLOGO
O livro termina com a reunião de toda a família Landini. Um desfecho feliz.
Gilda escreveu um livro comovedor. Mas ao magnificar Aristide, Roger, Leo, a mãe Violeta e outros membros da família, erige-os em heróis quase sobre-humanos.
Os Landini surgem na sua saga romântica como revolucionários exemplares. O leitor é levado à conclusão de que a grande maioria dos comunistas são como eles, autênticos continuadores dos bolcheviques da geração de 1917.
Oxalá assim fosse. Mas a evolução da História contemporânea desmente essa visão idealista da neta de Aristodemo Landini.
Vila Nova de Gaia, Fevereiro de 2017
*Le Fil Rouge, Gilda Landini Guibert, Ed. Delga, 560 pags, Paris 2016
http://www.odiario.info/le-fil-rouge-uma-saga-revolucionaria/