A cidade e seus conflitos

Ricardo Costa, conhecido como Rico, nascido em 1960, é coordenador do curso de história da Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia, onde se graduou em 1993. Carioca, transferiu-se para Nova Friburgo em 1985. Fez o mestrado, em 1997, na Universidade Federal Fluminense (UFF), produzindo dissertação sobre Nova Friburgo “no período republicano, com destaque para as disputas travadas entre os dois maiores grupos representativos das frações da classe dominante local, cujos projetos de poder vinculavam-se a distintas visões acerca da cidade ideal a ser construída”, com o seguinte título: Visões do “Paraíso Capitalista”: hegemonia e poder simbólico na Nova Friburgo da República. No doutorado, também na UFF, em 2005, estudou um período da história do Partido Comunista Brasileiro (PCB), com a tese: Descaminhos da Revolução: o PCB e a construção da estratégia nacional libertadora (1958-1964).

Rico, que participou do livro Teia Serrana, coordenado por João Raimundo de Araújo e Jorge Miguel Mayer, com artigo baseado em sua dissertação de mestrado, conversou com A VOZ DA SERRA, na segunda-feira, 2 de maio, apresentando parte de sua reflexão sobre Nova Friburgo.

A VOZ DA SERRA – Há perspectiva de se retomar o trabalho do Teia Serrana, de ser feito um segundo volume?

Ricardo Costa – Primeiro, estamos tentando a reedição do primeiro volume, que hoje só se encontra na Queijaria Suíça, com um preço salgado. Não se encontra mais em lugar nenhum. Até estamos com os originais em CD e vamos procurar patrocínio ou tentar bancar essa segunda edição. Mas há a perspectiva de se fazer o número 2, já há autores posteriores ao Teia Serrana, que têm o que contribuir, novos trabalhos já realizados sobre a história de Friburgo.

AVS – Explique o que você abordou no Teia Serrana.

Rico – O artigo trata da história política de Nova Friburgo, abordando os dois grandes grupos do século 20, um que nasce com o Galdino do Vale Filho, que depois tem a continuidade com o grupo do Heródoto Bento de Mello, com a fundação da UDN [União Democrática Nacional], em 1945, e o outro grupo é o que chamo de populista na ausência de um termo melhor, ligado originalmente a Dante Laginestra, interventor do Getúlio Vargas na cidade, que depois tem continuidade com o Amâncio Mário de Azevedo e com a criação do PSD [Partido Social Democrata] aqui em Friburgo. Esse foi o foco central de minha dissertação de mestrado, esses dois grupos, que vão se revezar no poder até muito recentemente, afinal, o Heródoto está aí de novo. Mas em torno dessa disputa central tem também a história do PTB [Partido Trabalhista Brasileiro], a história dos comunistas, tem um pouco da questão da presença do nazismo na cidade. Vai até o golpe de 1964.

AVS – Mas existe mesmo uma continuidade entre Galdino e Heródoto? Afinal há um grande intervalo de tempo entre as épocas em que os dois se destacam.

Rico – São dois contextos diferentes, dois momentos históricos diferentes, mas há um elo de ligação, que é justamente a criação da UDN, que é fundada pelo Galdino.

AVS – Mas isto acontece em 1945 e atuação do Galdino tem o marco inicial em 1910.

Rico – Sim, mas o elo principal de ligação é justamente o mito da Suíça brasileira, a visão sobre a cidade, a ideologia construída em torno da cidade, que vai se casar perfeitamente com os interesses políticos do Heródoto nos anos 50 e 60, quando ele vem a representar um grupo de empresários. E o Galdino, no início de sua trajetória política também está ligado ao empresariado local. O mito da Suíça brasileira é construído no momento da instalação das fábricas, é um mito que interessa também ao empresariado, àqueles que vão acabar construindo a cidade no sentido da indústria, do progresso, com toda essa ideologia da razão, da ciência, que vem com o positivismo, mas que tem acima de tudo o interesse desse empresariado e de até criar todas as condições para um acomodamento das classes trabalhadoras a essa ideologia.

AVS – Apesar desse acomodamento, que você identifica, há uma grande inquietação na vida desta cidade, você acha que existe essa inquietação?

Rico – Existe, claro, mas faz parte do próprio processo social, não existe relação social sem conflito e a cidade tem vários momentos de explosão de conflitos. A questão do acomodamento, ou do amoldamento da classe trabalhadora, é resultado do papel que o grupo dominante exerceu, de criar uma ideologia e formas de dominação para evitar o conflito, só que é impossível evitar o conflito. Temos na própria história da cidade diversos momentos de explosão.

AVS – Qual seria um desses momentos?

Rico – Em 1933, por exemplo, houve uma greve geral que abalou a cidade. Quando fiz a pesquisa para minha dissertação ainda estavam vivos os principais líderes do movimento sindical operário do século 20, o Costinha e o Chico Bravo, que participaram ativamente dessa greve. Outros movimentos aconteceram mas talvez não tenham sido tão impactantes. Eles descreveram com detalhes aquele movimento e a respeito de acontecimentos mais recentes eles não guardavam muita memória. Então, essa greve de 33 foi algo realmente impactante. No Pró-Memória, há uma descrição do jornal Nova Friburgo sobre essa greve que é com muitos detalhes. A greve começou na Fábrica de Rendas Arp, por conta do clima mesmo de opressão que tinha ali dentro, um regime prussiano, com disciplina rígida, diferenciação de salários entre alemães e brasileiros, estes ganhando menos, e muita exploração. Então, a coisa explodiu ali e, depois, as outras fábricas aderiram. E é nesse movimento, inclusive, que morreu o operário Licínio Teixeira, que depois foi homenageado, no governo Brizola, que deu seu nome ao Ciep de Olaria. Pelo relato do Chico Bravo o movimento acabou se espalhando e se tornando um movimento geral dos trabalhadores da cidade, envolvendo as principais fábricas que já estavam aqui, a Rendas, a Ypu e algumas outras fábricas têxteis. O movimento se centrou na indústria têxtil, mas o Chico Bravo, por exemplo, era dirigente do sindicato dos trabalhadores da construção civil. O Partido Comunista já estava organizado, tinha uma fração sindical, liderou e organizou o movimento, apresentou uma carta de reivindicações, que incluía uma série de propostas, que depois seriam absorvidas pela legislação trabalhista, como a licença maternidade, por exemplo. Há um relato interessante do Costinha que diz que alguns operários não entendiam e diziam: “a gente faz o filho e o patrão que vai cuidar?”. Existe essa fala.

O movimento adquiriu uma força para além da Fábrica de Rendas Arp, que era o caldeirão que fervia mais, e houve greve mesmo, com alguns dias de paralisação, manifestações, passeata pelas ruas, ganhando uma envergadura tal que foi chamada a polícia de Niterói [,então capital do estado], que chegou aqui atirando a esmo contra uma manifestação na praça do Paissandu e acabou matando o Licínio [Teixeira]. No dia seguinte, em outra grande passeata, em protesto contra essa morte, uma faixa dizia: “O sangue de Licínio clama por vingança”. As letras estavam em vermelho e muita gente achou que eram escritas com o sangue do próprio Licínio. Foi um movimento forte. Outros aconteceram, mas não com essa força.

AVS – E tudo isso deixa marcas na alma da cidade.

Rico – Isso. Esse foi um dos problemas para a efetivação da ideologia do mito da Suíça brasileira como uma cidade sem conflito. É o movimento operário que estava se organizando nos anos 30 e provocou alguns transtornos nessa ideia de um cidade harmoniosa. Depois, veio a ditadura do Estado Novo, que iria interromper esse processo, mas logo depois voltaram os movimentos. No final dos anos 40, anos 50, já havia uma série de greves pipocando na cidade. O núcleo da organização operária vai passar a ser a Filó. O jornal Nova Friburgo dá detalhes, inclusive com entrevistas com operários reclamando pelo tratamento recebido.

AVS – Você poderia falar dos movimentos sociais de hoje e sobre esse abalo provocado pela tragédia das chuvas de janeiro? Mudou alguma coisa na alma da cidade?

Rico – Acho que mudou. Desde que estou em Nova Friburgo, na década de 80, sempre percebemos uma grande dificuldade de realizar manifestações, mobilizações mais populares, mais massivas. Dá a impressão de que o friburguense é muito voltado para dentro de casa. Participei de várias manifestações em Friburgo, acompanhando inclusive o contexto nacional, como a Campanha das Diretas, quando comecei minha militância em Friburgo. Houve uma participação grande, foram dois ônibus participar daquele comício das diretas, lá na Candelária. Depois, o impeachment do Collor e outros movimentos, como 1º de Maio. Até determinado momento, fazíamos 1º de Maio da rua, hoje não se consegue mais. Mas, depois da tragédia, em virtude até da dificuldade das pessoas de verem os problemas resolvidos — porque não houve ação efetiva, principalmente nos bairros mais atingidos — a manifestação do dia 12 de abril teve um aspecto bastante interessante: concentrou-se na praça [Dermeval Moreira] e ali já se percebia que havia mais de 300 pessoas. Depois, houve a passeata pela [Avenida] Alberto Braune, onde cresceu a participação — ali deu umas 500 pessoas — e parou em frente à prefeitura. O que eu achei mais interessante foi que as pessoas dos bairros, dirigentes ou não de associações de moradores, estavam usando o microfone e falando abertamente o que pensavam, sem nenhum freio.

AVS – E isto é novo?

Rico – Isto para mim é uma novidade, as pessoas terem a disposição de ir para a rua e botar para fora o que estão vivenciando e com críticas, mesmo, à inação dos governos. Percebe-se que ainda existe um discurso contrário à presença dos partidos políticos de esquerda, com suas bandeiras. Há um senso-comum antipartidos forte. Só que, na hora dos discursos, o que se ouviam eram discursos politizados.

AVS – Existem movimentos sociais que representam os conflitos das relações econômicas, das relações sociais em geral. Mas existem outros movimentos que aparentemente não representam conflitos, mas que são protestos diante de determinadas situações, como os hippies americanos diante da Guerra do Vietnã, por exemplo. Aqui, em Nova Friburgo, nós tivemos a Geração Bendita, o primeiro filme hippie do Brasil. Como você vê esse tipo de movimento?

Rico – Hoje a gente até estuda isto na faculdade. O João Raimundo costuma passar esse filme para os alunos de história regional. É um momento importante da vida da cidade, justamente expressando a inquietação daquela juventude da época, que até por falta de outras formas de se manifestar e organizar acompanhou o movimento hippie internacional. Então, tem uma história na cidade, que é importante. É o período da ditadura, algumas dessas pessoas que participaram desse movimento até contribuíram de alguma forma para o movimento estudantil mais organizado. O João Carlos Teixeira, que fez parte do filme, participou desse movimento. E daqui saiu um estudante que chegou a participar, no Rio, da luta armada [contra a ditadura], que foi o Mário Prata, que hoje dá o nome ao DCE [Diretório Central dos Estudantes] da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro]. Na época, as coisas acabaram se misturando um pouco, mas essa vertente do movimento hippie também foi importante para a contestação daquela moral rígida da época. É uma vertente mais cultural, que também ajudou a contestar a ditadura e toda a pressão militar da época.

AVS – E muitas dessas pessoas, daqui de Friburgo, estão por aí.

Rico – Estão, é o Carlos Bini, o Renato, professor da Candido Mendes e da Santa Dorotéia.

AVS – Essa gente não tinha um projeto, um programa político para chegar em algum lugar …

Rico – … não se vinculava a qualquer partido…

AVS – … e talvez fosse até mais difícil para a repressão controlar.

Rico – Isso me lembra de quando fiz a pesquisa para o mestrado e descobri, através de um caderninho de anotações de Tarcísio Tupinambá, escritor que esteve em um período aqui em Friburgo dando aulas, em que ele conta a história de um grupo que se reunia durante a ditadura do Estado Novo, também com essa conformação de rebeldia, de preocupação com a questão cultural, que também se envolveu na luta pela retomada das liberdades democráticas. Era um grupo que teve uma importância em um momento em que a Câmara Municipal estava fechada, não havia partidos. Mesmo a Associação Comercial assumiu o papel de reunir grupos, principalmente de empresários, porque não havia mediação entre governo e sociedade civil. E havia esse grupo de professores, de intelectuais, gente ligada à cultura, artistas, que se reuniram e tiveram papel importante na luta conta a ditadura do Estado Novo, nos anos 40.

AVS – Hoje existem vários grupos de pessoas se reunindo por aí, pretendendo pensar a cidade. Isto vai ter algum resultado, não é?

Rico – Espero que sim.

Rico conta que, para reprimir a greve de 1933, em Nova Friburgo, “foi chamada a polícia de Niterói, que chegou aqui atirando a esmo contra uma manifestação na praça do Paissandu”. Um dos resultados foi a morte do trabalhador Licínio Teixeira, que hoje dá

Fonte: http://www.avozdaserra.com.br/noticias.php?noticia=14387