A violência institucionalizada e a “Lei do Abate”

imagemELEMENTOS PARA REFLETIR SOBRE A BARBÁRIE

José Alex Soares Santos Militante da Unidade Classista – Fração ANDES-SN

O Rio de Janeiro é conhecido mundialmente pela insígnia de “Cidade Maravilhosa”. Ao se olhar a megalópole pela sua formação geográfica com belezas naturais, o rico patrimônio cultural e histórico legado pelo seu passado de sede oficial do Império Português no Brasil e de primeira capital da República, bem como o processo de modernização implementado sobre seu espaço urbano com a industrialização do país, percebe-se que a constatação é verdadeira. Situado no topo do Corcovado, está o Cristo Redentor, considerado uma das “Sete Maravilhas do Mundo Moderno” que, segundo o anedotário popular, de braços abertos “abençoa” a cidade, ao mesmo tempo em que olha para a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar. Esse cenário, para quem já teve a oportunidade de ver seu encanto, causa sensações indescritíveis.

Nas últimas quadras históricas, porém, o encanto de “Cidade Maravilhosa” tem cedido espaço para o desespero e a manifestação cada vez mais ampla da barbárie social e seus elementos aterrorizantes. Fato esse que não é privilégio apenas do Rio, mas que se repete em várias cidades brasileiras de grande porte e com índice populacional elevado. Definiu-se a cidade fluminense como centro da análise em virtude de alguns acontecimentos recentes que a configuram como o “laboratório” mais rico em dados que expressam a crise do capital, o aspecto de “cadáver putrefato” do “Estado Democrático de Direito”, a expressão da violência institucionalizada e da “lei do abate”, enquanto manifestações explícitas da barbárie.

Um dos fatos que destaca o Rio de Janeiro como metrópole brasileira de expressão dos elementos da barbárie compreende em primeiro plano sua escolha como cidade de grandes eventos esportivos como a Copa do Mundo (2014) e sede dos jogos olímpicos de 2016, fato que transformou o espaço urbano em um canteiro de obras e a “menina dos olhos” da especulação imobiliária, mas também uma zona de muitos conflitos, inclusive com o despejo de comunidades inteiras pela força do Estado para beneficiar empreendimentos imobiliários. Quem não lembra das UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora e sua ineficiência no combate à violência nas favelas? Esse programa de segurança pública, criado em 2008, sob a fachada de combater e desarticular o crime organizado nos morros cariocas, cumpriu um papel substancial na opressão de pessoas trabalhadoras que residiam nas favelas.

De acordo com o estudo de Marielle Franco (2014), as UPPs enquanto existiram reforçaram um modelo de “Estado Penal”, para a repressão e o controle dos pobres. Para se ter uma ideia do real sentido das UPPs, de 2011 a 2014, parte do financiamento do programa foi feito pela empresa EBX (R$ 20.000,000) de Eike Batista (condenado em 2018 a 30 anos de prisão por corrupção ativa e lavagem de dinheiro). Uma política pública com alguém do naipe de Batista por trás de seu financiamento já nasce morta.

No âmbito das condenações pela “Lava Jato” aparecem Sérgio Cabral (governador no período de 2007-2014), sendo preso em 2016 e tornando-se “morador” da prisão de Bangu 8 e seu sucessor Luiz Fernando Pezão (governador no período que abarca abril de 2014 a novembro de 2018), preso em novembro de 2018, tornando-se desde então, “residente” do Batalhão Especial Prisional da Polícia Militar, em Niterói. Esse fato é substancial para expressar a decadência do “Estado Democrático de Direito”, demonstrando sua falência no que se refere ao atendimento dos interesses da população mais pobre com políticas públicas que atenuem a miséria social, para continuar servindo ao grande capital financeiro com o pagamento de juros da dívida pública e adotando sua força de repressão para garantir o direito à propriedade privada. Tal realidade, da qual o Rio foi pioneiro, depois como efeito cascata se espalhou por outros estados da Federação, exigindo mais austeridade fiscal e aumentando as desigualdades para patamares gritantes.

Em 2018, a cidade ficou sob intervenção militar de fevereiro a dezembro, o que não impediu as milícias de continuarem agindo e, como resultado de sua ação, o mundo se consternou com a execução de Marielle Franco (vereadora pelo PSOL e militante da causa dos direitos humanos, do povo preto e favelado, bem como da população LGBTTI) e de Anderson Gomes (motorista de Marielle). Um crime que completa 13 meses sem solução. Até hoje ecoa a pergunta: “quem mandou matar Marielle e Anderson?”. O mistério em torno do caso continua sem resposta por parte dos órgãos da polícia e da justiça. O crime organizado e o narcotráfico continuam definindo as regras nas periferias, associado ao jogo do bicho e em alguns pontos às milícias, deixando o povo trabalhador refém do “estado paralelo”.

A maioria do eleitorado fluminense, na sua última visita às urnas, elegeu para o cargo de governador um ex-juiz federal partidário dos ideais da extrema-direita que incita o ódio e a “lei do abate”. Em entrevista ao jornal “Estadão”, em primeiro de novembro de 2018, Wilson Witzel (atual governador do Rio de Janeiro) defendeu a existência de “snipers” (atiradores de elite) para combater pessoas que estejam armadas de fuzis. As palavras do governador são a expressão nua e crua da barbárie, ao afirmar que “o correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”. Com um governador defendendo abertamente a “lei do abate”, a insígnia de “Cidade Maravilhosa” vai perdendo muito do seu encanto e brilho para padrões bárbaros e anticivilizatórios.

Padrões estes manifestos na ação criminosa do grupo de militares do Exército Brasileiro que assassinaram friamente, no dia 7 de abril de 2019, o músico Evaldo Rosa, ao dispararem 80 tiros de fuzil em seu carro, simplesmente por uma suspeita de que o veículo estava envolvido em um assalto na área que a operação acontecia. O crime reflete bem o pensamento do governador Witzel e do presidente da República Jair Bolsonaro, dois indivíduos beligerantes que não têm o mínimo de respeito pela vida humana e pelos direitos humanos e, em todas as oportunidades, aproveitam para incitar o ódio, a violência e o terror contra as/os oprimidas/os.

O assassinato de Evaldo pelos militares é um retrato fiel de que a “lei do abate” começa a fazer vítimas inocentes e sequer se sabe se os responsáveis serão realmente punidos, pois o crime será investigado pela própria Justiça Militar e, conforme sabemos, em 2017 Michel Temer sancionou uma lei que diz que crimes dolosos contra a vida, cometidos por militares das Forças Armadas, serão investigados pela Justiça Militar da União, se o crime acontecer nos seguintes contextos: • do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa; • de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; • de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária.

Fica perceptível que os argumentos usados na referida legislação legitimam pela via da institucionalidade o contexto apocalíptico que vem se consolidando contra a classe trabalhadora, as/os pretas/os, pobres e residentes das periferias urbanas. Estes elementos tendem a se tornar mais fortes caso a Projeto de Lei Anti-Crime, apresentado por Sérgio Moro (Ministro da Justiça), seja aprovado pelo Congresso Nacional. Deste modo, estar-se-á diante de um contexto em que o Estado militarizado tem usado o argumento da violência, da segurança pública e do combate à criminalidade galopante para justificar suas ações terroristas contra vidas inocentes.

Em virtude de tal realidade assustadora, a expressão “socialismo ou barbárie”, cunhada pela revolucionária comunista Rosa Luxemburgo se torna cada vez mais viva e atual. Entretanto, tendo o socialismo assumido uma postura cada vez mais tímida após a queda do muro de Berlim, manifesta-se com intensa agressividade no mundo contemporâneo os elementos da barbárie. Nesse sentido, torna-se necessário refletir sobre a retomada da proposta de socialismo, como fase transitória para o comunismo, construída sobre as bases sólidas do poder popular.

Caso a humanidade não se resolva o mais breve possível pela perspectiva de vida fundada na coletividade para qual aponta o comunismo, seremos devorados pela sociedade do consumo e tragados pelos efeitos catastróficos e apocalípticos da sociedade do capital, arregimentada pelo “estado paralelo” e pelo “Estado militarizado”, sob o risco de uma autodestruição em que aparecem previsões convincentes para o fim deste milênio. As peças do jogo estão no tabuleiro, à humanidade resta fazer a escolha. Nesse jogo ou se constrói o socialismo – transição para o comunismo – como projeto de vida coletiva e autossustentável ou se continua insistindo no apodrecimento do capitalismo até perecer com sua autodestruição.