Crise, sociedade do espetáculo, guerra

imagemPrefácio do último livro de Domenico Losurdo, A esquerda ausente.
por Domenico Losurdo [*]

Não poderiam ser encontrados pormenores chocantes sobre episódios de crueldade?
Otto von Bismarck

Ninguém mente tanto como o indignado.
Friedrich Nietzsche

O historiador do futuro não deixará de se surpreender com um fenômeno que caracteriza a nossa sociedade e o nosso tempo. Por um lado, não é difícil ler em livros, revistas e jornais análises realistas e incisivas sobre a condição atual do Ocidente, dos problemas e dramas de nosso presente. Uma crise política acresce à crise econômica: segundo autores de prestígio, há um esvaziamento da democracia, que regride perante as grandes fortunas e a “plutocracia”. Mas existe uma esquerda no Ocidente capaz de fazer essa análise e essa denúncia e, a partir daí, articular um projeto de luta e transformação política do existente?

No que diz respeito à política internacional, mesmo alguns órgãos de imprensa que frequentemente se destacam pela sua coragem evitam admitir o caráter neocolonial que tiveram as guerras mais recentes desencadeadas pelos Estados Unidos e pela OTAN no Oriente Médio. Está à vista de todos o horror de Gaza e a tragédia que é infligida ao povo palestino pelo domínio e o expansionismo colonial de Israel. E não temos outro remédio a não ser perguntar novamente: existe uma esquerda no Ocidente capaz de se opor à terrível onda que agora semeia morte, destruição e desenvolve os germes de uma conflagração numa escala muito maior?

Em março de 2014, Seymour M. Hersh, jornalista americano premiado com o prestigiado Prêmio Pulitzer, fez importantes revelações sobre o uso de armas químicas na Síria em 21 de agosto do ano anterior. Não, os responsáveis por essa infâmia não eram os líderes do país, mas os “rebeldes” apoiados pelas monarquias reacionárias do Golfo Pérsico, aliados do Ocidente e pela Turquia, um país membro da OTAN e protagonista da provocação e encenação, visando criar uma onda de indignação mundial contra os líderes sírios, justificando a ação devastadora de bombardeiros com os motores já ligados e prontos para entrar em ação.

Em agosto de 2013, estadistas, jornalistas, reis e rainhas da sociedade do espetáculo rivalizavam no modo mais sinistro de pintar o inimigo a se abater. Escusado será dizer que o desmascaramento da mentira teve nos diferentes órgãos de informação um eco muito menor que a propagação da mesma mentira. Era melhor não dar muita publicidade ao escândalo, para não desacreditar ou comprometer a indústria das mentiras, pois esta será sempre útil na preparação de guerras futuras.

E novamente a esquerda brilhou por sua ausência. Ela não teve coragem de fazer perguntas e levantar dúvidas no momento em que a manipulação foi mais intensa, e não considerou necessário chamar a atenção do público para o desmascaramento da manipulação e, em geral, para a indústria bélica da mentira que, apesar de tudo, continua a florescer. De fato, a esquerda encolhe-se justamente quando deveria reagir com mais energia aos processos de polarização social e redistribuição massiva da renda a favor das grandes fortunas (muitas vezes parasitárias), perante o reaparecimento de guerras coloniais ou neocoloniais e a ameaça de guerras em larga escala; perante a redução e distorção da esfera pública provocada pela “plutocracia” e por uma indústria da mentira mais florescente, poderosa e invasiva do que nunca.

Já se vê com suficiente clareza qual é o paradoxo que requer explicação. Não podemos deixar essa tarefa para o historiador do futuro, porque os dramas e perigos do presente exigem uma consciência e uma responsabilidade aqui e agora. Este livro tenta facilitar isso.

Antes de mais, será necessário fazer um reconhecimento no terreno. É a questão abordada no primeiro capítulo. A crise devastadora que estamos sofrendo, embora tenha um alcance planetário, não afeta o planeta inteiro. Os países que, no século XX, sacudiram o domínio colonial e neocolonial lutam hoje para alcançar o desenvolvimento autônomo nos campos econômicos e tecnológicos e, no curso dessa luta, eles colhem sucessos importantes. Vêmo-lo, acima de tudo, no caso da China e de outros países emergentes. Nada seria entendido do cenário internacional atual se dois processos contraditórios não fossem levados em consideração: a “grande divergência” que durante séculos colocou o Ocidente na posição de superioridade absoluta sobre o resto do mundo tende a ser reduzida até ser cancelada; ao mesmo tempo, nos países capitalistas avançados abre-se um abismo, outra “grande divergência” que separa uma minoria opulenta cada vez mais separada do resto da população.

Compreende-se então que o Ocidente capitalista reaja a esta situação desmantelando o Estado social e aplicando medidas antipopulares de “austeridade”, porém, tentando ao mesmo tempo salvar a sua preponderância internacional. Por isso, desencadeia guerras cujo caráter neocolonial é cada vez mais evidente, o que se reflete inclusive nos meios de comunicação. Nestas guerras neocoloniais, a UE e os EUA não hesitam em aliar-se às forças mais reacionários do Oriente Médio, que escravizam imigrantes, oprimem mulheres, reintroduzem poligamia, etc.

Tudo isso deveria ter provocado a reação da esquerda. Mas, como se observa no segundo capítulo, o mundo capitalista-imperialista todavia consegue creditar-se a si próprio como «mundo livre». É uma pretensão que desde há séculos faz parte da autoconsciência e falsa consciência do Ocidente. Embora hoje, mais do que nunca, devesse ter perdido toda a credibilidade. Desde a ofensiva neoliberal, os “direitos sociais e econômicos” definidos pela ONU não só não foram postos em prática como também se deslegitimaram no plano teórico. Quanto aos direitos políticos, a “plutocracia” que gradualmente se impõe no Ocidente esvazia-os de conteúdo. E como que sorrateiramente e de forma indireta foi reintroduzida a discriminação censitária, que durante séculos excluiu as classes subordinadas da participação na vida política.

Permanecem de pé pelo menos os direitos civis e o Estado de Direito? Todas as terças-feiras – informa o New York Times – o presidente dos EUA reúne-se com seus colaboradores para preparar a “lista de mortes” (lista de assassinatos), a lista dos suspeitos de terrorismo que devem ser “eliminados”, como se diz na anódina linguagem burocrática, desde que se iniciaram as ações com drones. Nesta lista pode até haver cidadãos dos EUA. Para onde foi o Estado de Direito? E acima de tudo: é compatível a profissão de fé democrática do Ocidente com sua pretensão de exercer uma ditadura em escala planetária, reservando-se o direito soberano de desencadear guerras, sanções devastadoras com ou sem a autorização do Conselho de Segurança da ONU?

A fanfarrice do Ocidente às vezes é grotesca. Mas continua a exercer uma influência ideológica tão forte que muitas vezes é capaz de ofuscar a esquerda na Europa e nos EUA. Marx não tinha falta de razão quando observou que o monopólio da produção material é também o monopólio da produção intelectual. Hoje a grande burguesia baseia o seu poder no monopólio da produção de ideias, isto é evidente, mas também, e acima de tudo, no monopólio das emoções: tema central do terceiro capítulo do livro.

Como é atualmente programada e preparada a guerra? Procura-se através da imprensa, rádio, televisão, internet e redes sociais, manipular completamente ou inventar uma imagem que possa demonstrar a crueldade, ferocidade, falta de humanidade do inimigo a derrubar ou matar. Essa imagem é difundida, obsessivamente repetida, com ela se bombardeiam, por assim dizer, todos os recantos do planeta. Todos aqueles que não se alinham incondicionalmente com o Ocidente na guerra que está prestes a desencadear-se são acusados de surdos às razões da ética e de serem cúmplices do Mal. É o terrorismo da indignação, um ultraje que afirma ser moral, mas é realmente maquiavélico no mau sentido da palavra. É assim que a sociedade espetáculo se torna uma mortífera técnica de guerra.

O terrorismo da indignação também desempenha um papel fundamental nos golpes de Estado, habilmente camuflados de “revoluções coloridas”, que promovem a expansão da OTAN e do Ocidente em geral. Também nestes casos os distúrbios baseiam-se numa mentira, uma manipulação ou uma provocação capaz de desencadear uma onda de indignação moral necessária para derrubar um regime odiado ou considerado um obstáculo pelos aspirantes a donos do mundo.

O quarto capítulo do livro traça um balanço histórico dos golpes consumados ou fracassados ao longo dos séculos XX e XXI: a primeira onda abrange mais ou menos os anos da Guerra Fria e o segundo começa quando se perfila o fim da Guerra Fria. Entre os dois períodos não faltam elementos de descontinuidade, mas em ambos é comum a arrogância imperial, que continua a manifestar-se. Desencadeiam-se guerras ou golpes, o Ocidente sanciona-os constantemente arvorando a bandeira do universalismo dos valores do livre mercado, um universalismo que não conhece ou tolera fronteiras estatais e nacionais.

O quinto capítulo chama a atenção para as colossais mudanças produzidas em relação ao passado. Aquele que hoje é o país guia do Ocidente, na segunda metade do século XIX foi o campeão mundial do protecionismo aduaneiro. E o protecionismo também afetava as ideias, ainda nos anos da Guerra Fria, os comunistas sofreram perseguições nos EUA por espalharem uma visão que faz um apelo universalista aos proletários e povos oprimidos de todo o mundo. Apesar da sua extraordinária capacidade de atração em todos cantos do planeta, as autoridades dos EUA proibiram-no qualificando-o de alheio ao autêntico espírito “americano” e ao “americanismo”.

Isto deveria fazer-nos desconfiar da ideologia que se impõe hoje no Ocidente. Na verdade, quando uma cultura ou uma civilização determinada pretende ser a personificação permanente dos valores universais, não está exibindo universalismo, mas, ao contrário, um etnocentrismo exaltado que sempre serviu para desencadear guerras coloniais ou neocoloniais em nome da Civilização, uma noção monopolizada pelo agressor.

Porém, podem realmente ser consideradas neocoloniais as guerras entre o final do século XX e o princípio do século XXI que devastaram o Panamá, a Iugoslávia, o Iraque e a Líbia, e continuam a devastar a Síria? A esta pergunta responde o sexto capítulo do livro, que reflete sobre a história secular da luta entre colonialismo e anticolonialismo e sobre os elementos de continuidade entre o antigo e o novo colonialismo.

Em meados do século XIX, as canhoneiras britânicas subjugaram a China, que não tinha possibilidade de responder ao fogo inimigo. Esta situação foi repetida recentemente (a favor dos EUA e da OTAN) no Panamá, nos Bálcãs e no Oriente Médio. Os derrotados, embora ocupem o cargo de chefes de Estado, são entregues ao Tribunal Penal Internacional, que em compensação não pode investigar sequer um vulgar soldado americano ou mercenário. A dupla jurisdição é um elemento essencial da tradição colonial.

Hoje, a agressão é praticada em nome dos “valores” e “interesses” ocidentais. É a mesma ideologia que sustentou as guerras coloniais clássicas. Da sua preparação ideológica se encarregavam no passado, os missionários cristãos, que hoje transmitiram o testemunho para as ONG, frequentemente controladas por Washington e por Bruxelas. A continuidade entre o colonialismo e o neocolonialismo é impressionante, ainda que por este motivo a envergadura das alterações existentes não deva ser subestimada. Algo que foi suficiente para desorientar e silenciar a esquerda ocidental.

Os EUA, contando com os seus aliados europeus para consolidar as posições do Ocidente no Oriente Médio ou noutras partes do mundo está deslocando para a Ásia e o Pacífico a maior parte de seu gigantesco aparelho militar. Começou a contenção e cerco da China. É uma nova Guerra Fria, que por definição está sempre a um passo de se tornar uma guerra quente ou mesmo num holocausto nuclear.

Hoje, mais do que nunca, a luta pela paz é urgente, mas a esquerda que deveria promovê-la está silenciosa porque, entre outras coisas, não entende que é uma nova fase do choque entre colonialismo e anticolonialismo. O país que encarna a causa do anticolonialismo só pode ser a República Popular da China, que nasceu da maior revolução anticolonial da história e continua dando uma contribuição essencial ao movimento anticolonial. Com a teoria da “guerra de aldeia”, Mao Zedong explicou como um povo oprimido pode desafiar e derrotar um grande poder. Deng Xiaoping explicou que a luta de libertação nacional não está completa se à independência política não sucede a independência econômica.

Depois de analisar os problemas e contradições da atualidade e dar provas da fraqueza e das ausências da esquerda, devemos avançar para uma reflexão mais sistemática sobre as razões dessa fraqueza e dessas ausências.

O capítulo final do livro (o oitavo) é dedicado a esta tarefa e à conclusão. É evidente que mudanças radicais como as produzidas em todo o mundo entre 1989 e 1991 não podem deixar de causar desorientação e confusão. Sim, no Ocidente, a esquerda, moderada ou “radical”, não poucas vezes foi a reboque da ideologia dominante. O terrorismo de indignação que prepara o desencadeamento de guerras neocoloniais intimidou principalmente a esquerda. O papel desempenhado no século XIX pelo “cristianismo imperial”, que abriu caminho para a expansão colonial com seus missionários bem intencionados, corresponde hoje à “esquerda imperial”.

No que diz respeito à luta sócio-econômica dentro de cada país, acontece que a esquerda, embora saia em defesa do Estado social, promove ao mesmo tempo a difusão de filosofias e ideologias extremamente úteis ao neoliberalismo. A crise econômica e política e a deterioração da situação internacional exigem que a esquerda saia deste estado de desorientação e confusão. Com isso pretende contribuir este livro de história e crítica do declínio da esquerda e das situações objetivas nos planos internos e internacionais que favoreceram esse declínio.

As análises evidenciadas nas páginas deste livro encontraram uma confirmação trágica: enquanto estava sendo impresso, o Oriente Médio estava sendo balcanizado e devastado por implacáveis guerras de grupos islâmicos, usados pelo Ocidente para atacar regimes de inspiração anticolonialista e laica; o golpe na Ucrânia e o avanço ameaçador da OTAN na Europa Oriental provocou a reação russa; o deslocamento dos EUA para a Ásia está a transformando num barril de pólvora. Agravam-se os perigos de guerra sobre os quais este livro insiste. Saberá a esquerda mostrar sinais de vida?

[*] Prefácio do último livro de Domenico Losurdo (14/Nov/1941–28/Jun/2018), La izquierda ausente. Crisis, sociedad del espectáculo, guerra (ISBN 9788416288434). O livro pode ser encomendado aqui .

O original encontra-se em https://www.elviejotopo.com/topoexpress/la-izquierda-ausente/

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