Um corte de classe sobre o Setembro Amarelo
O suicídio não é mais que um entre os mil e um sintomas da luta social geral”
– Karl Marx, em Sobre o Suicídio [1]
Por Ricardo Lima, estudante de filosofia da UECE e militante da UJC do Ceará
A história da humanidade, sem dúvidas, é a história das lutas de classes entre os seres humanos, evoluindo no tempo e espaço, pelo trabalho e pela triste exploração do homem pelo homem, até o presente momento. Algumas das características do sistema capitalista são as de simplificar essas lutas de classes, aumentar, com toda racionalidade técnica, a exploração de uns poucos sobre a maioria e potencializar todas as formas de opressões individuais e coletivas. Um fenômeno cinza e estudado por vários autores — passando por Benedictus de Spinoza, Émile Durkhein, Albert Camus, para citar alguns exemplos, e até Karl Marx em seu pequeno apanhado intitulado “Sobre o Suicídio“ — é o que vamos abordar aqui como uma opressão social-individual, em que o indivíduo como animal político (zoon politicon, Aristóteles) sofre, por diversos fatores, um peso na sua existência ao ponto de dar fim a própria vida — um ato solitário e ainda muito estigmatizado na sociedade brasileira e mundial e com políticas de prevenção ineficazes por parte do dito poder público para com o povo e com atenção — no caso, sem a devida atenção — essencial à classe que trabalha e produz a riqueza de uma sociedade.
Uma pesquisa realizada em 2016 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) mostrou que a taxa de suicídio no Brasil cresceu 7% para cada 100 mil habitantes, comparada ao último levantamento feito em 2010, enquanto que no mundo todo houve uma queda de 9,8 %. Os dados ainda são alarmantes: a cada 4 segundos uma pessoa comete suicídio no mundo, chegando a 800.000 mortes por ano. É a segunda maior causa de mortes, superando óbitos por câncer de mama, malária, homicídios e guerras, e entre os declarados homens a taxa é o dobro se comparada ao suicídio entre mulheres: 13,7% por 100.000. No Brasil, o Jornal Brasileiro de Psiquiatria chama atenção para o aumento de suicídio entre jovens de 10 a 19 anos.
As estatísticas, porém, por mais que úteis e necessárias ao combate e à prevenção do suicídio, são epidérmicas. Não vão ao fundo da questão que não é apenas do indivíduo consigo mesmo, mas social. Em uma sociedade na qual se preza mais pelo lucro de farmacêuticas e de terapeutas crônicos, a preocupação por parte do sistema capitalista e dos Estados burgueses e suas políticas neoliberais se mostra ineficiente. Os tratamentos não são disponibilizados a todo o conjunto da sociedade. Para a pequena e grande burguesia do país há, com toda certeza, uma luz mais forte no fim de um túnel muito menor e menos claustrofóbico. Para a classe trabalhadora, para o lumpemproletariado e, enfim, para quem não tem condições financeiras, a história se mostra diferente.
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são distribuídos de maneira desigual em todo país; as pessoas que são atendidas reclamam constantemente da desorganização, das lotações e da falta de atendimento, sem falar na falta de financiamento por parte do Estado Brasileiro. Vale dizer que os CAPS disponibilizam tratamentos para pessoas que tem problemas mentais diversos (aliás, não podemos deixar de esquecer a grande camarada e médica psiquiatra Nise da Silveira [2] e seu legado antimanicomial na sociedade brasileira), além de problemas com álcool e demais drogas, sendo estes um dos principais agravantes de depressão e suicídio entre jovens. Outro fator triste é o da depressão e o do suicídio entre pessoas idosas: miséria, solidão, falta ou negação de aposentadoria levam aqueles e aquelas que tanto trabalharam durante à vida a dar cabo da própria vida (a reforma da previdência — PEC 06/19 proposta pelo golpista Michel Temer e aprovada por Jair Bolsonaro, Paulo Guedes e seus aliados, tende a agravar a situação, junto da reforma trabalhista e demais ataques à classe trabalhadora).
Mas, afinal, como a sociedade dividida em classes, como a sociedade baseada na exploração e opressão tal como o sistema capitalista de produção e de relação social, no nosso caso, agrava a situação? Sabemos que o suicídio é algo concernente à vida privada e que vários fatores levam ao ato. Mas a vida privada não difere, necessariamente, da vida política. Na contemporaneidade, elementos como as novas formas de tecnologia, redes sociais e todas as suas consequências agravam muitos sentimentos de inferioridade e baixa autoestima causadas pelo fetiche de querer ser sempre aquele modelo aparente e fluido proporcionado pelo mundo do mercado global (aqui poderíamos pensar com o sociólogo Émile Durkheim que aponta o auto desenvolvimento da indústria e a expansão indefinida do mercado fortalece o desencadeamento de desejos e a busca de conquistas que, se não controlados, levam ao suicídio ) [3].
Para além da metodologia cientificista podemos ir além numa perspectiva marxista da vida.
O jovem Karl Marx, no ano de 1846, publica um interessante artigo intitulado “Peuchet: vom Selbstmord ”, mais conhecido como “ Sobre o Suicídio”. Artigo tal publicado a partir das memórias de Jean Jacques Peuchet: um arquivista francês que relata em alguns de seus escritos, atos de suicídio — sem deixar de lado, por mais que não fosse um socialista ou um revolucionário — as questões de opressão social, patriarcal/familiar sobre a vida de mulheres e o que lhes levou ao fim, e também uma crítica aos comportamentos deprimentes e moralizantes da época. Marx, com tais exemplos, não limita a análise apenas à classe trabalhadora/proletária mas à sociedade como um todo que é e está doente e que leva as pessoas a irem contra à sua própria vida: “[…] está na natureza de nossa sociedade gerar muitos suicídios […] ” ( MARX, Karl,2006. P25.) E um pouco antes escreve:
“ Embora a miséria seja a maior causa do suicídio, encontramo-lo em todas as classes, tanto entre ricos ociosos como entre os artistas e os políticos”
(MARX, Karl. P.24 )
Em sociedades pré-capitalistas havia, com certeza, problemas sociais e psicológicos indevidamente estudados e com tratamentos hediondos, torturantes. Com o ascenso do capital e sua globalização, tais problemas aumentaram ou mudaram sua forma torturante para algo mais “progressista” e menos desumano. Claro que não podemos dizer emocionadamente que o capitalismo não nos trouxe progressos: trouxe, mas à custa de uma exploração nojenta, febril e fabril, uma exploração que quer humanizar relações sociais que por si só não mais se humanizam. O capital nos trouxe evolução econômica, e social — para alguns — mas à custa do trabalho alheio. Um dos maiores males da sociedade contemporânea, como já dito acima, é o do suicídio. Os números (aliás, as vidas perdidas!) são tristes. Os problemas da sociedade burguesa ganham ares que agravam qualquer situação de opressão social-individual. Sobre isto, demos a palavra mais uma vez a Marx e ao grande comandante Friedrich Engels, aqui no Manifesto do Partido Comunista:
“ A burguesia, lá onde chegou a dominação, destruiu, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem misericórdia todos os variados laços […] e não deixou outro laço entre homem e homem que não o do interesse nu, o do insensível “pagamento pronto”. Afogou o frêmito sagrado da exaltação pia, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia pequeno-burguesa, na água gelada do cálculo egoísta. Resolveu a inúmeras liberdades bem adquiridas e certificadas pôs a liberdade única, sem escrúpulos, de comércio. [..] “ [4]
A falta de sensibilidade para com o outro, a falta de preocupação com os outros, seguindo a lógica do mercado, nos distancia, faz com que não percebamos, muitas vezes, as dores daqueles e daquelas que estão conosco no cotidiano. Estamos sós numa sociedade de milhões em que a vida em si, é secundária, pelo lucro e pela mesquinhez. Ou, como escreve Michael Löwy em na sua introdução “Um Marx insólito” para a obra citada de Marx/Peuchet Sobre o Suicídio:
“ Cada indivíduo está isolado dos demais, é um entre milhões, numa espécie de solidão em massa. As pessoas agem entre si como estranhas, numa relação de hostilidade mútua: nessa sociedade de luta e competição impiedosas, de guerra de todos contra todos, somente resta ao indivíduo é ser vítima ou carrasco. Eis, portanto, o contexto social que explica o desespero e o suicídio.” ( Löwy, 2006. P.16) [5]
UMA REFLEXÃO PARA NÃO FINALIZAR
Em setembro há a campanha Setembro Amarelo. Várias pessoas, instituições e a mídia — das mais burguesas até as mais “progressistas” — pautam, publicizam a necessidade de, neste mês, dar uma maior atenção e alertar sobre os casos de depressão e suicídio. No entanto, uma frase se coloca em alguns meios midiáticos, repetidamente: “a depressão é uma doença democrática”. Pura mentira. Para começo de história o termo “democracia” na sociedade capitalista/burguesa é para poucos. Num sistema opressor e explorador, pobre e trabalhador/a tem que acordar cedo — com os olhos marejados, às vezes — contra a própria vontade, passando por um caso clínico e não tratado, para tentar ganhar a vida (sic) e não ser estigmatizado pela força dos moralistas e/ou religiosos de calça bege, como preguiçoso/a, fraco/a, “sem Deus no coração” e condenado ao inferno, caso tire a própria vida. A classe trabalhadora não tem tempo sequer para ganhar a vida, sem o peso da existência injusta… Já a burguesia, a pequena burguesia e, enfim, os ricos, tem como bancar seus psicólogos e — aqui e acolá, romantizando a dor — escrever seus poemas melancólicos à base de um bom tratamento, que não é fornecido devidamente pelo poder público ao povo (mas, ora, o que se esperar de formações universitárias que produzem conhecimento e tecnologia ao capital e não ao povo?). Em um sistema capitalista a democracia, amigos/as, é apenas burguesa!
As misérias e a tristeza do mundo atual não serão sanadas com filantropia de araque e muito menos em um mês. A leitura marxista é que apenas a mudança radical da sociedade pode nos levar a um outro patamar em que o ser-humano e a vida será a prioridade (não a propriedade!). É nosso dever, enquanto sujeitos conscientes dos problemas do mundo, enquanto homens e mulheres, socialistas anticapitalistas, em uma palavra, enquanto comunistas, lutar por uma sociedade que não diferencie ricos e pobres, burgueses e proletários, ou seja, que emancipe os/as explorados/as de sua condição inferior e os exploradores/as de sua condição como tais. Que sejamos solidários, atenciosos com nossos camaradas, amigos, colegas de trabalho e de estudo.
O Sistema Opressor e sua dinâmica (com o trabalho alienado, o trabalho-tortura, extenuante e suas consequências psicológicas) nos proporcionam paixões tristes que desestimulam nossa ação, nossa vida, nossa práxis humana. Lutemos por uma sociedade em que reine as paixões alegres e em que o indivíduo goze plenamente da sua potência livre, criadora. Seria utópico, claro, lutar por um mundo onde não há momentos tristes que são normais à vida cotidiana. Mas podemos estar alertas para com quem está passando por tristezas profundas ao nosso lado, sem sequer “dar bandeira”. Exijamos do poder público mais eficácia no tratamento de transtornos mentais/químicos como a depressão, mas lutemos por uma sociedade socialista e que preze a vida de todo e qualquer um.
Eis a sociedade realmente socialista e, logo após, comunista e humana que desejamos: em que o suicídio não seja “mais um dos sintomas da luta social em geral”. Eis a sociedade em que poderíamos viver a vida plena. É por tal sociedade pela qual se vale a pena lutar e viver. Sigamos lutando, resistindo e alertas.
[1] O título original do artigo/apanhado de Marx é “ Peuchet: Vom selbsmord”./ MARX, Karl — São Paulo, Boitempo, 2006.
[2] Nise Magalhães da Silveira (1905–1999) foi uma médica psiquiatra brasileira. Foi também uma militante comunista.
[3] DURKHEIM, Émile. O Suicídio , estudo de sociologia. São Paulo, Martins fontes, 2000.
Disponível em: < https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2965009/mod_resource/content/0/%C3%89mile%20Durkheim%20-%20O%20Suicidio%20%282000%29.pdf >
[4] MARX, Karl. O Manifesto do Partido Comunista
Disponível em : < https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap1.htm?fbclid=IwAR3qESTqptUAozppb3XytJMIgtcf_TJsNy_H8EAgymELdiIuc3v3yK_FXPw
[5] Introdução de Michael Löwy, intitulada “ Um Marx Insólito”, extraído de Sobre o suicídio, Boitempo, 2006.