A atualidade voraz do racismo no Brasil

imagemImagem / Ilustração Alma Preta

MULHER, NEGRA E 38 ANOS EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

Jacqueline Botelho (*)

O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão, e teve a entrada no mundo capitalista forjada pela coerção do trabalho, que nos assegurou um modelo de economia concentracionista e extremamente desigual. Antes da abolição da escravidão, a Lei de Terras de 1850 já instituía um novo modelo de propriedade, em que a condição de proprietário dependia da mediação de relações de compra e venda para o acesso às terras, o que garantia a manutenção do controle sobre a população negra mesmo no pós-abolição, quando impedia a possibilidade concreta de negros e negras garantirem a própria sobrevivência como seres humanos livres.

Sem o conhecimento desses fatores que aprofundaram a desigualdade racial no Brasil, poderíamos estranhar a notícia que chegou ao conhecimento da população pela grande mídia em 20 de dezembro de 2020 (1), revelando que Madalena, uma mulher negra, de 46 anos, foi encontrada pelo Ministério Público do Trabalho, após 38 anos vivendo sob condições análogas à escravidão em uma residência em MG. O Ministério Público do Trabalho (MPT) resgatou Madalena da casa de uma família mineira onde ela trabalhava, sem que tivesse registro em carteira, salário mínimo ou descanso semanal remunerado. Madalena bateu na porta da residência aos 8 anos de idade, pedindo pão, pois tinha fome. Do lado de dentro, nas entrelinhas lia-se: “‘Preta suja!’, ou simplesmente: “Olhe, uma preta!”. Aquela criança que batia à porta daquela família branca pedindo um pedaço de pão vivia o racismo como ideologia reflexa do escravismo. A partir das palavras de Frantz Fanon, poderíamos imaginar o que se passou com Madalena, que experimentou a desumanização histórica do negro por, no mínimo, 38 anos: “sinto, vejo nesses olhares brancos que não é um homem novo que está entrando, mas um novo tipo de homem, um novo gênero, um preto!” (FANON, 2008 p.108-109). A mulher negra é ainda mais atingida pelo racismo, além de sofrer as consequências do machismo, ficando com os piores empregos e com trabalhos voltados para o cuidado, sendo em regra silenciada como pessoa que também o demanda (2).

Madalena, que viveu a fome na infância, fruto do racismo estrutural, ao pedir por ajuda em uma casa, passa a viver o trabalho infantil e a condição análoga à escravidão. Após 24 anos, ela foi entregue a um professor universitário, filho do primeiro casal, que a manteve em condições desumanas, como se fosse um objeto recebido por herança dos pais, seus primeiros “proprietários”. Ela acordava às 4h da manhã para passar roupa e, segundo vizinhos, quando flagrada pelos “patrões” conversando com alguém do prédio, era visível que ela sentia medo. Os fiscais do MPT relatam que o quarto onde ela ficava não tinha ventilação. Servindo aos interesses dos “patrões”, casou-se com o tio da esposa do professor universitário, um combatente das Forças Armadas, sem nunca ter morado com ele. Quando faleceu, o homem deixou uma pensão que Madalena nunca recebeu, mas que era sacada pelo seu “patrão”. O professor universitário dizia que Madalena não era considerada empregada, mas sim membro da família, o que retoma um mito clássico das relações raciais no Brasil. Com Gilberto Freyre (1933), difunde-se a caracterização do negro como dócil, dotado de uma força bruta, cuja convivência com a Casa Grande lhe emprestara uma certa civilidade, e, aos brancos, o exercício de uma certa benevolência. No pós-abolição, setores conservadores se ocuparam na produção de uma historiografia racista do negro brasileiro, e produtora de um apagamento da história da resistência negra à escravização (MOURA, 2019). Em nossa formação sócio-histórica, o negro foi tratado como “besta selvagem”, e, na sociedade capitalista é associado à imagem racialista do “matuto”, que nada produz. Nesta sociedade, o racismo é atual, se manifesta explicitamente pela discriminação, e está organizado e vivo através da perpetuação material da desigualdade.

A Constituição de 1988, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou 30 anos esse ano (3), trazem elementos que orientam para a proteção aos direitos das crianças e adolescentes no Brasil. Dentro das exigências básicas contidas no ECA, para que esta proteção ocorra, devemos encontrar a garantia de: alimentação; vida e saúde; educação; cultura, esporte e lazer; dignidade, respeito e liberdade; convivência familiar e comunitária.

Na experiência vivida por Madalena, a situação desumana do racismo a qual estava submetida não se resumia às condições degradantes de trabalho e à negação, por parte de seus “patrões”, de artigos básicos para os seus cuidados pessoais (o que a forçava a passar pela humilhação de pedir tais utensílios aos vizinhos, às escondidas). O racismo enraizado também “autorizou” essa família mineira a brutalizar Madalena, negando-lhe o direito de estudar. Aos 8 anos, Madalena ouviu que já era crescida para frequentar a escola e não teve preservado o direito à infância, à saúde e à vida, um exemplo paradigmático de que a realidade de pobreza, fome e impossibilidade de completar os estudos é parte constitutiva da história das crianças negras no Brasil, que lutam cotidianamente pela sobrevivência.

O dia 13 de maio de 1988 representa o dia da falsa abolição, quando negras e negros foram entregues à própria sorte, sem acesso à terra, sendo preteridos pelo imigrante europeu – tomado como referência de trabalhador nacional dentro da estratégia de embranquecimento da população – e com forte restrição no acesso à escola (4).

Podemos caracterizar o trabalho análogo à escravidão como o trabalho forçado, realizado sob condições degradantes, com violação à dignidade humana, incluindo jornadas exaustivas, que ponham em risco à vida do trabalhador. Entre os anos de 2015 e 2019 foram resgatados, somente na cidade de São Paulo, 524 trabalhadores em situação análoga à escravidão (5). “Desde 1995, 55 mil pessoas foram resgatadas em situação de escravidão no país, a maioria na zona rural. Ano passado [em 2019], 14 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo doméstico – que é mais difícil de ser identificado” (6).

Concordamos com Moura (2019;1988), quando identifica o racismo como arma ideológica de dominação e ideologia reflexa do escravismo. Esse racismo assume forma complexa no capitalismo, manifestando-se nas relações sociais não apenas através do preconceito e da discriminação. O racismo é muito mais profundo, é estrutural, considerando sua funcionalidade para a economia capitalista e para as instituições que reproduzem as ideias dominantes. É ele quem naturaliza as desigualdades e responsabiliza a “raça” pela sua condição de vida, negando as determinações sociais que levam à condição de pobreza.

A escritora negra Carolina Maria de Jesus, moradora da favela do Canindé em São Paulo, escrevia no final dos anos 1950 – em “Quarto de Despejo”, publicado nos anos 1960 – a seguinte frase, referindo-se à condição em que vivia com sua filha Vera e outro filho em seu barracão na favela: “[…] A Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado […], era 9 horas da noite quando comemos” (JESUS, 1960, p. 27). A fome, a pobreza, o desemprego são feições do desamparo que servem como grilhões do negro sob o capitalismo dependente no Brasil. Assim, no dia 13 de maio de 1958, Carolina Maria de Jesus revelava em seu diário que lutava contra a escravidão atual, a fome.

O racismo também não é um problema de falta de consciência ou desinformação das pessoas, posto que é apreendido nas relações sociais desde a infância. Muito para além da reprodução de comportamentos discriminatórios, identificamos que o racismo guarda relação com o lugar reservado ao negro na sociedade capitalista – produzido como natural devido à repetição histórica, estratégica e pedagógica do abandono do Estado em relação a esta população. As imagens dos negros dormindo em calçadas, encarcerados, morrendo à espera de leitos em hospitais, e completamente humilhados no espaço doméstico pelos seus patrões constituem uma objetividade esmagadora que indica para a sociedade o lugar de subordinação como o único lugar possível ao negro.

O racismo e o capitalismo estão intimamente ligados, quando o primeiro autoriza o controle do Estado sobre a classe trabalhadora, heterogênea e majoritariamente constituída por mulheres negras. Na atual crise capitalista, presenciamos forte precarização do emprego, redução dos salários, aumento do processo de desregulamentação do trabalho e redução dos direitos sociais para os empregados em geral. Estes processos levaram a uma ampliação do trabalho infantil, afirmação do desemprego estrutural, culto ao trabalho polivalente ou multifuncional, que acentua a intensificação e a exploração da força de trabalho.

Em nome do “desenvolvimento do país”, sobrevive a imagem positiva do trabalho como edificante do homem, muito utilizada pelas elites como forma de apagar a noção depreciativa conferida ao trabalho, posto que quem trabalhava na sociedade escravista era o negro escravizado. Na transição para a sociedade capitalista, ao mesmo tempo em que a imagem do trabalho torna-se positiva, é o imigrante europeu considerado o modelo de trabalhador nacional, que é chamado a ocupar os postos de trabalho como forma de embranquecer a sociedade, o que se fortalece nas ações do Estado Novo no Brasil.

Nesta direção, é impossível esquecer que, além das diversas declarações racistas feitas especialmente no período das eleições em 2018, o presidente Jair Bolsonaro também afirmou não ver problemas no trabalho infantil, esvaziando a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, que antes contava com representações do Ministério Público do Trabalho (MPT), Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Fnpeti) e Organização Internacional do Trabalho (OIT) (7). Tais declarações, por um lado, fortalecem a louvação e beatificação do trabalho, e, por outro, reforçam a superexploração da força de trabalho, que assume no Brasil características condizentes com os séculos XVIII e XIX (IANNI, 2004). O racismo é a ligação entre o passado escravista e o presente capitalista, capaz de denunciar a aliança orgânica entre o “moderno” e o “arcaico”, da qual as elites dominantes se servem para sua perpetuação no poder e política de privilégios, com o controle da organização das relações sociais de produção.

Tal estratégia estabelece elos importantes entre capitalismo, racismo e sexismo, posto que torna do indivíduo o que é da sociedade. No caso do encontro com o racismo, ajuda a identificar na grande maioria da classe trabalhadora indivíduos classificados pela raça e cor como naturalmente desajustados e não-empregáveis, restando-lhes os postos de trabalho mais precarizados. Contra os desmandos capitalistas e a violência sofrida por Madalena e muitas outras pessoas que sobrevivem na mesma condição aviltante, precisamos fortalecer o conjunto de ações e lutas orientadas no combate ao trabalho infantil e às condições análogas à escravidão. Combater o racismo também deve ser ação fundamental para aqueles que identificam as contradições da sociedade capitalista, que define o lucro e a defesa da propriedade acima da vida. A luta por condições dignas de vida da classe trabalhadora é fundamental para que se fortaleçam as possibilidades de solidariedade de classe e o poder popular, onde as necessidades dos “de baixo” são o ponto de partida na construção de uma sociabilidade alternativa ao capitalismo.

(1) Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/12/20/mulher-e-libertada-em-mg-apos-38-anos-vivendo-em-condicoes-analogas-a-escravidao.ghtml
(2) A esse respeito ver em: https://pcb.org.br/portal2/19435/a-mulher-negra-e-a-luta-organizada-contra-o-capital/
(3) Sobre desafios à implementação do ECA, ver em: http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/1729
(4) Sobre o protagonismo dos negros na luta por escola no Brasil durante o escravismo, ver: Botelho e Rocha (2019)
(5) Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-01/denuncias-de-trabalho-escravo-aumentam-45-em-sao-paulo#:~:text=O%20Minist%C3%A9rio%20P%C3%BAblico%20do%20Trabalho,passando%20de%20103%20para%20150.
(6) https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/12/20/mulher-e-libertada-em-mg-apos-38-anos-vivendo-em-condicoes-analogas-a-escravidao.ghtml
(7) Ver em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/12/bolsonaro-esvazia-comissao-contra-trabalho-infantil.shtml?origin=folha

Referências Bibliográficas:

BOTELHO, J. e ROCHA, M. O protagonismo dos pretos e pardos na luta por escola na primeira metade do século XIX. In: A Historiografia em Trabalho-Educação: como se escreve a história da educação profissional. Uberlândia, MG: Navegando, 2019. Disponível em https://www.editoranavegando.com/livro-a-historiografia-em-trabalho

FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. São Paulo: Círculo do Livro, 1933.

IANNI, O. A ideia de Brasil Moderno. SP: Brasiliense, 2004.

JESUS, C.M. Quarto de Despejo. Edição Popular, 1960.

MOURA, C. Rebelião na senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Ciências Humanas, 1988.

______. Sociologia do Negro Brasileiro. 2.ED. SP: Perspectiva, 2019.

(*) Jacqueline Botelho é Professora da Escola de Serviço Social da UFF/Niterói. Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2013). Militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira e do PCB-RJ.

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