A imprensa do PCB nos anos de formação
Ricardo Costa *
Nos primeiros anos de sua existência, o Partido Comunista Brasileiro, então denominado Partido Comunista do Brasil (PCB), exerceu importante influência entre os trabalhadores dos grandes centros, verificada, por exemplo, na circulação da revista Movimento Comunista, criada antes mesmo da fundação do Partido, em janeiro de 1922, com tiragem média de mil e quinhentos exemplares e tendo 24 números editados até o ano de 1923, quando se tornou a primeira dentre as inúmeras publicações comunistas a ser fechada pela repressão policial no Brasil.
Os comunistas atuavam primordialmente no interior dos sindicatos e, contando no início com menos de cem militantes, concentrados em sua maioria no Rio de Janeiro e em Niterói, buscavam difundir as conquistas da Revolução Socialista na Rússia em 1917 e as ideias contrárias ao capitalismo através de palestras, festas nas sedes dos sindicatos, revistas, livros, panfletos e artigos publicados na imprensa sindical. Militantes do PCB dirigiam pequenos jornais dos sindicatos operários e controlavam a página sindical do jornal O Paiz, da chamada grande imprensa. Em função das crescentes rivalidades com os anarquistas nos anos de 1923-24, o PCB realizou alianças com setores reformistas do sindicalismo, obtendo por isso acesso a uma coluna denominada “Seção Operária” no jornal conservador O Paiz, espaço em que Octávio Brandão publicou textos de Lênin, documentos da Internacional Comunista e artigos de sua autoria.
Entretanto, seu maior veículo de informação no período foi o semanário A Classe Operária, editado pela primeira vez em 1º de maio de 1925, chegando a alcançar a tiragem de onze mil exemplares no número 12, quando também foi fechado pela repressão. O jornal reapareceria em diversos momentos da história do PCB, como num outro 1º de maio, no ano de 1928, já com uma tiragem entre quinze e trinta mil exemplares, significativa da conjuntura rica em lutas sociais, a prenunciar as mudanças políticas que se avizinhavam nos estertores da República Velha.
Sobre “a nossa muito gloriosa A Classe Operária”, Astrojildo Pereira comentaria em palestra proferida na Associação Brasileira de Imprensa, ABI, no Rio de Janeiro, em julho de 1947, evento organizado com o objetivo de angariar fundos para a imprensa comunista, promovida pelo Movimento de Auxílio à Tribuna Popular (diário do PCB):
“Por ela, em anos duros de luta contra a reação, deram a vida alguns heróicos companheiros cujos nomes permanecerão para sempre gravados na história das lutas populares em nossa terra. Perseguida, batida, suprimida cem vezes, cento e uma vezes ressuscitou A Classe Operária e não se extinguirá jamais, porque é imortal como a própria classe que ela encarna e representa na imprensa deste país.”
Astrojildo Pereira Duarte Silva foi uma das principais figuras desta primeira fase de organização do Partido. Nascido em 8 de outubro de 1890, em Rio Bonito, interior do Estado do Rio de Janeiro, era filho de um médico proprietário rural e comerciante, descendente próximo de português. Estudou no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo, educandário de orientação jesuíta, de onde foi expulso. Morando com a família em Niterói, começou a trabalhar como gráfico e entrou em contato com o universo cultural do Rio de Janeiro. Na década de 1910, aproximou-se dos núcleos anarquistas. Em 1913, participou ativamente da organização do II Congresso Operário Brasileiro, que, dirigido então pelos grupos anarquistas, reestruturou a Confederação Operária Brasileira (COB).
Foi na imprensa operária que Astrojildo deu início à carreira de jornalista, atividade a que se dedicou durante a maior parte de sua vida. Em fins de 1918, participou de uma frustrada tentativa de levante anarquista, razão pela qual foi preso. No entanto, os ecos da Revolução Socialista de 1917 na Rússia já se faziam sentir entre os militantes do movimento operário no Brasil, e Astrojildo acabou por afastar-se do anarquismo. Proferiu palestras defendendo a União Soviética e o internacionalismo proletário e editou a revista Movimento Comunista. Deu início à organização de uma seção brasileira da Internacional Comunista, efetivada em março de 1922 com a fundação do Partido Comunista do Brasil, do qual foi eleito Secretário-Geral. Fez sua primeira viagem à União Soviética em 1924 e foi encarregado, em 1927, de estabelecer o primeiro contato do PCB com o líder do movimento tenentista Luiz Carlos Prestes, então exilado na Bolívia. Passou a fazer parte do Comitê Executivo da IC em 1928, mas, no início da década de 1930, a guinada “obreirista” no partido foi responsável pelo afastamento dos intelectuais, e Astrojildo seria substituído na Secretaria-Geral.
Durante a realização do II Congresso do PCB, em maio de 1925, no Rio de Janeiro, foi aprovada a criação de um jornal com o propósito de divulgar as principais propostas e bandeiras dos comunistas junto à classe trabalhadora. O Brasil na época vivia sob um regime de perseguição e vigilância constante exercido sobre os setores populares, em virtude do estado de sítio que vigorou durante o governo de Artur Bernardes (1922-1926). Apesar das dificuldades impostas pelo clima de repressão permanente, o registro legal do novo jornal foi obtido, sendo que o ministro da Justiça Afonso Pena Júnior indicou dois jornalistas de renome (Alberto Lira e Carlos Sussekind de Mendonça) para exercerem a censura do periódico. Fundado por Astrogildo Pereira e Otávio Brandão Rego, com o auxílio de José Lago Molares e Laura Brandão, assim surgia A Classe Operária, que não se assumia abertamente como órgão oficial do PCB, sendo apresentado como um “jornal de trabalhadores, feito por trabalhadores, para trabalhadores”.
Octávio Brandão do Rego, alagoano nascido em 1896, entrou para o PCB em novembro de 1922 e integrou seu Comitê Central entre 1923 e 1930, tendo sido o principal inspirador das teses aprovadas no II Congresso do Partido. Farmacêutico por profissão, também começou sua militância política nos meios anarquistas, inicialmente em sua cidade natal, Viçosa e, depois, em Maceió. Estudando no Recife, foi atraído para as ideias comunistas com o impacto da Revolução Soviética no meio intelectual da capital pernambucana. Transferiu-se depois para o Rio de Janeiro, onde o contato com Astrojildo Pereira foi fundamental para sua militância no recém-fundado Partido Comunista do Brasil.
Eleito para a Comissão Central Executiva do Partido poucos meses após a sua filiação, foi o principal intelectual orgânico dos comunistas até a sua destituição da direção do PCB em 1930, quando foi acusado de “desvios de direita”, ao lado de Astrojildo e outros dirigentes. A partir de então, passou a viver o ostracismo partidário, tendo permanecido por quinze anos na União Soviética após ser preso e deportado pela polícia de Getúlio em 1931. Retornando ao Brasil em 1946, conquistou a cadeira de vereador no Rio de Janeiro (então Distrito Federal) no ano seguinte, êxito conquistado graças à antiga base operária que o elegera intendente pelo Bloco Operário e Camponês (BOC) em 1928. Por conta da cassação do PCB, foi novamente preso e torturado, passando a viver na clandestinidade entre 1948 e 1956, após o que voltou à militância partidária e intelectual, sem o mesmo prestígio de antes.
A poetisa e professora Laura Adelaide Leopoldina da Fonseca e Silva, mais conhecida como Laura Brandão, depois que se tornou companheira do dirigente comunista, embora nunca tenha tido ligação mais orgânica com o Partido, foi redatora de A Classe Operária e revisora das cartas dos operários publicadas no periódico. Em 1928, participou da fundação do Comitê das Mulheres Trabalhadoras, a primeira entidade feminina influenciada pelo PCB. Laura foi presa quando participava de ato comemorativo do 1º de Maio em 1930. No ano seguinte, ela, Octávio e as três filhas foram deportadas para a Alemanha. Rejeitados pelas autoridades alemãs, seguiram para Moscou, onde passaram a viver e onde nasceria a quarta filha do casal. Laura trabalhou na Rádio Moscou como redatora e locutora de programas em português, com transmissões para o Brasil. Quando as tropas nazistas se aproximaram de Moscou, ela teve que se refugiar no interior da URSS e acabou morrendo de câncer sozinha num hospital. Em seu último poema bradava: “Não tenho medo de morrer, mas tenho um grande amor à vida, um grande empenho no processo de humanas maravilhas!”
A partir do segundo número de A Classe Operária, o periódico dos comunistas passou a ser composto e impresso nas oficinas do Jornal O Paiz, o que resultou numa melhora expressiva de sua aparência gráfica. Segundo Marieta de Moraes Ferreira, em verbete produzido pelo CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, o PCB utilizava o semanário para denunciar as adversas condições de vida e de trabalho do operariado brasileiro, divulgando suas reivindicações imediatas na seção de cartas, cujo conteúdo recebia um grande destaque do jornal. O trabalho de Laura Brandão era garantir que todas as cartas recebidas fossem publicadas e respondidas.
Também por meio do noticiário, buscava-se imprimir caráter popular ao jornal, com as informações sendo divulgadas de forma didática, sem análises rebuscadas e grandes discussões teóricas. O periódico criticava a conciliação de classes e indicava que a contradição central na sociedade capitalista se dava entre o trabalho e o capital. A Classe Operária conquistou seu espaço no meio do operariado e das camadas populares, tendo por isso aumentado de forma significativa, para aquele momento histórico, a sua tiragem. Por isso mesmo veio a ser suspenso pelo governo federal ao atingir o terceiro mês de vida, em consequência também de ter movido uma campanha contra Alberto Tomás, representante da Organização Internacional do Trabalho (OIT), acusado pelo jornal de neutralizar a luta entre o capital e o trabalho, ao defender uma política de conciliação das classes.
A Classe Operária ressurgiu em maio de 1928. Meses antes, em dezembro de 1927, o PCB organizou o Bloco Operário e Camponês (BOC), articulado inicialmente sob a designação de Bloco Operário, com o propósito de se constituir como uma “Frente Única Proletária” na luta contra o imperialismo, pelo reconhecimento da URSS pelo governo brasileiro e em defesa de uma série de reivindicações econômicas dos trabalhadores. Representou a primeira tentativa mais sistemática de uma política de alianças dos comunistas brasileiros. No entanto, devido à limitada capacidade do PCB em organizar sua presença junto ao sindicalismo urbano, à falta de conhecimentos sobre a questão agrária no Brasil e à inexistência de um movimento autônomo e expressivo dos trabalhadores rurais à época, acabou se transformando, na prática, numa frente eleitoral dirigida pelos comunistas.
Numa época em que o PCB seguia como um partido não legal, o Bloco Operário (nome inicial da frente) serviu efetivamente para que os comunistas elegessem, em 1927, um deputado para a Câmara Federal, o médico Azevedo Lima, que não era militante do Partido. No ano seguinte, já sob a designação de BOC, foram eleitos Octávio Brandão e o operário Minervino de Oliveira para o Conselho Municipal do Rio de Janeiro. Em março de 1930, na última participação da sigla eleitoral, lançaram-se candidatos comunistas à presidência da República, ao Senado Federal e às assembleias legislativas, mas as votações não foram expressivas, e nenhum deles se elegeu.
O fato é que, para o cumprimento dessas tarefas políticas e eleitorais, tornou-se necessário dispor novamente de um órgão de informação dedicado ao trabalho militante junto ao operariado, o que veio a ser preenchido com o relançamento de A Classe Operária. O jornal manteve as características anteriores de um semanário popular voltado a abordar as condições de vida e a mobilizar os trabalhadores para as lutas do período. Fechado uma vez mais em meados de 1929 pela ação repressiva do governo de Washington Luís (1926-1930), A Classe Operária retornaria no ano seguinte de maneira clandestina e irregular. O jornal era composto e impresso num pequeno quarto em Vila Isabel pelo tipógrafo Antônio Pereira da Silva, após o que eram levados em caixotes cobertos com laranjas até os pontos de distribuição.
Mesmo com toda a repressão que continuou se abatendo sobre os comunistas e seu órgão de imprensa, A Classe Operária seguiu sendo editada clandestinamente até o fim do Estado Novo, tendo desempenhado importante papel no combate ao fascismo e à ditadura de Vargas. Voltou a circular de forma legal e com regularidade após a queda do regime autocrático, conquistada a legalização do PCB. Dirigido por Maurício Grabois, continuou priorizando as notícias envolvendo o cotidiano dos trabalhadores e suas reivindicações imediatas, dando destaque também aos eventos esportivos. Era um jornal voltado para as massas, num momento em que o Partido, na esteira da enorme simpatia granjeada pela União Soviética na vitória contra o nazifascismo e da liderança de Luiz Carlos Prestes, crescia substancialmente no meio da classe trabalhadora e de todos os estratos populares, atraindo ainda inúmeros intelectuais e segmentos das camadas médias.
Com o recrudescimento da Guerra Fria veio o cancelamento do registro do PCB no ano de 1947. A Classe Operária voltou a enfrentar a rotina anterior de perseguições durante o governo Dutra, até ser fechada em definitivo em maio de 1949. O aparato político-cultural dos comunistas havia crescido de forma considerável nos anos da chamada redemocratização (1945-1947), por meio de uma ampla cadeia de informação que contava com diversos semanários e oito jornais diários distribuídos pelas principais cidades do país (“Tribuna Popular”, depois “Imprensa Popular”, no Rio; “Hoje”, em São Paulo; “O Momento”, Salvador; “Tribuna Gaúcha”, Porto Alegre; “Folha do Povo”, Recife; “Jornal do Povo”, João Pessoa; “Folha Popular”, Natal, entre muitos outros), tendo se constituído numa das maiores redes de comunicação da época, talvez apenas suplantada pelos Diários Associados, do empresário Assis Chateaubriand. A tiragem do Tribuna Popular, por exemplo, chegou a atingir entre 30 e 50 mil exemplares nos anos de 1945 e 1946, quando a maior gazeta do Rio alcançava exatamente o número de 50 mil jornais impressos.
A nova onda repressiva abalou essa gigantesca estrutura, mas os comunistas jamais deixariam de atuar nas conjunturas seguintes, fosse sob ares mais liberalizantes, entre meados dos anos 50 e os primeiros anos da década de 1960, ou debaixo da mais violenta repressão, durante a ditadura empresarial militar de 1964-1985. Fica a certeza de que a história da imprensa do PCB se confunde com a própria história da classe trabalhadora brasileira, das suas lutas, das suas desventuras e esperanças, por seus direitos e pela construção de uma nova sociedade, a sociedade socialista.
Ricardo Costa (Rico) é historiador e Secretário Nacional de Comunicação do PCB