O liberalismo choca o ovo da serpente
«Meeting» (2004), gravura de Bartolomeu Cid dos Santos
Manuel Augusto Araújo
ABRIL ABRIL – Portugal
Nos últimos decênios a extrema-direita real, a de um neofascismo que tenta mascarar o fascismo clássico que está nos seus alicerces, vem aumentando a sua implantação política tanto nos EUA como na Europa, o que se acelerou com as políticas Thatcher e Reagan, em linha com os Chicago Boys de má memória no Chile de Pinochet que, com pertinazes falsificações, até é elogiado pelos próceres da Iniciativa Liberal. A engrenagem mais useira e vezeira dessa direita mais extrema e seus pares próximos é aproveitarem-se do descontentamento provocado pelas derivas do neoliberalismo mais radical e pelas indecisas e oportunistas políticas econômicas dos partidos socialistas mais à esquerda, como as do Partido Socialista Francês com Miterrand, ou dos que se alinharam claramente com o neoliberalismo, de que o exemplo mais acabado é o trabalhismo thatcherista de Blair. Políticas que abriram as portas para o capitalismo selvagem, em que as desigualdades aumentaram com a brutal exploração do trabalho, o emprego precário, o desemprego de longa duração, a especulação bolsista e imobiliária, a concentração da riqueza numa elite cosmopolita de algumas centenas de indivíduos que se aproveitam as crises para um vertiginoso crescimento das suas fortunas, como se tem assistido com a crise provocada pela pandemia, um catalisador dos lances das anteriores crises. Não perdem tempo, já estão preparando novos assaltos.
A extrema-direita, muitas vezes acobertada pelas vestes neoliberais herdeiras dos primitivos liberais, tem capitalizado as insatisfações, as angústias provocadas por essas políticas, mentindo com grande descaramento para travestirem os seus intentos, como se tem assistido por todo o mundo e por cá, com um partido assumidamente fascista e com uns autoproclamados liberais que só aparentemente são concorrentes, que tem aumentado a implantação social e o peso político, mascarando os seus desígnios com o populismo mais desbragado, mentindo descaradamente, sabendo até bem demais que imposturas repetidas com contumácia podem ser ou acabam por ser assumidas como verdades, por mais que sejam denunciadas. Sabem de ciência certa que uma mentira, por mais inaudita que seja, por mais que seja comprovada a sua falsidade, deixa um lastro inapagável. É a lição de Goebbels que aprenderam e usam per fas et nefas.
Tal como aprenderam com Hitler que, apoiado pelo grande capital dos dois lados do Atlântico, explorou a incapacidade da esquerda se unir em momentos cruciais e o descrédito das políticas dos sociais-democratas da República de Weimar, as altas taxas de desemprego e a inflação galopante. Com retóricas populistas chega ao poder para assim que o alcançou privatizar todas as empresas estratégicas, siderúrgicas, minas, bancos, estaleiros, transportes marítimos, ferrovias, serviços públicos. Um filme pronto a ser vertido em várias versões pelos mais diversos realizadores e com os mais variados actores, mas sempre com o mesmo guião: o da barbárie capitalista de uma sociedade fundada na violência de classe.
Ao que hoje se assiste é ao ressuscitar do velho caceteirismo dos arruaceiros e à nova e velha hipocrisia dos sicofantas, com cenas grotescas, somando falsidades, encenando provocações, numa deriva perigosa, com o uso de uma linguagem subcultural que caracteriza o discurso de direita que se aproveita de um generalizado provincianismo adubado pelo esclerosamento mental veiculado pelas grosseiras mentiras que se alastram pelo éter como um vírus para o qual não há vacinas, aproveitado de forma oportunista e hábil para no fim da linha imporem a sua visceral antidemocraticidade.
«É uma evidência que o neofascismo por ora executa linchamentos morais por ainda não ter possibilidade de fazer outros. O ovo da serpente está quebrando a casca, em alguns lugares até já a quebrou. Tem que ser combatido antes que as cascavéis que, por enquanto, sobretudo chocalham, comecem a espalhar muito mais veneno»
Por cá a contumácia das aldrabices, das mentiras, dos insultos, das ameaças do trapaceiro Ventura encontram albergue nos meios de comunicação que os repercutem como se fossem declarações de alguém com alguma fiabilidade política. Não só nos órgãos de comunicação social que o promovem, agora mais assanhados com a viuvez a que Trump os relegou, nos que encobrem o seu fervor neoliberal em independência informativa, mas também naqueles que deveriam ser de serviço público e que são diretamente dependentes do governo, que se remete a um silêncio condenável. Se uns abrem os armários para reciclar os esqueletos do fascismo-salazarista onde os tinham guardado depois do 25 de Abril, outros obscurantistas arregimentam-se com essa tropa de arruaceiros fandangos para recuperar falácias, das mais antigas às mais modernaças, em que se amalgamam dos panegíricos fascistas e pós-fascistas mais elaborados aos mais ridículos, todos não inocentes, para estercar um culto de direita e extrema-direita que se beneficia do clima instalado na mídia pelos plutocratas seus detentores, com os seus fiéis servidores, diretores, editores, comentadores, na sua esmagadora maioria de direita e centro-direita, para que as denúncias a esse estado de sitio sejam débeis. O que está em curso é a direita e a extrema-direita, com o beneplácito da centro-direita, a ocuparem lugar no espaço democrático.
É uma evidência que o neofascismo por ora executa linchamentos morais por ainda não ter possibilidade de fazer outros. O ovo da serpente está quebrando a casca, em alguns lugares até já a quebrou. Tem que ser combatido antes que as cascavéis que, por enquanto, sobretudo chocalham, comecem a espalhar muito mais veneno.
Chocalhos e veneno das cascavéis que procuram desacreditar a política, a classe política e a sociedade aos olhos do homem comum normalizado por uma cultura conformista e por um jornalismo, com destaque para o televisivo, que balança entre o conservadorismo e a imbecilidade. O ciberespaço, as notícias falsas, a multiplicação de falsos perfis deu-lhes um novo impulso bem visível nos trumps, trumpinhos e trumpões que por aí se reproduzem como cogumelos. A bula é a mesma e não hesita em usar todos os truques que decalcam e copiam com detalhe o que é nuclear a que agregam variantes regionais. Aqui com Ventura, na França com Le Pen, na Itália com Salvini, no Brasil com Bolsonaro, nos EUA com Trump, por esse mundo adentro com outros monstros que vão, com maior ou menor êxito, emergindo dos pântanos. Atualizam, com as modernidades do século XXI, os hitleres, mussolinis, salazares e francos e, como eles, não se eximem às demagogias mais descaradas, sem peias, com uma desfaçatez que até deixa atônitos os mais desprevenidos, bem ilustrada pela capa de jornal AIZ com uma, como sempre excelente, fotomontagem de John Heartfield, que já nos anos 30 do século XX os desmascarava.
O neoliberalismo e a ascensão da extrema-direita
Tem o caminho facilitado pela degradação social e cultural que fraturou as nossas sociedades. A doxa neoliberal do capitalismo liderado pela finança corroeu e destruiu conquistas dos trabalhadores alcançadas em séculos de árduas lutas, enriquecendo obscenamente com a exploração do trabalho e dos recursos naturais. Degradou a cultura com o consumo espetacular de uma sucessão de entretenimentos, na lógica perversa das modas das indústrias culturais e criativas da gestão das artes, de pouca memória cultural e política, em que não se promove ou só se promove muito residualmente a humanização e a socialização dos sentidos. A esquerda, as esquerdas, muitas delas contaminadas por um hedonismo consumista infiltrado pelo pensamento dominante, fragmentaram as lutas, o que as fragilizou e as fez se ausentar de muitas frentes de combate, abandonando as lutas de classe em favor das lutas fracionistas e identitárias, reduzindo-se à denúncia do capitalismo selvagem que, bem financiado, aproveitando essas brechas, manipula a opinião pública através dos meios tradicionais de comunicação, imprensa, rádio e televisão e dos novos meios do universo digital, blogues, redes sociais, videojogos, enquanto se vai infiltrando nos aparelhos de Estado, consolidando oligopólios que adquirem um tal poder que atuam como novos senhores feudais, impondo os seus diktats sem lei nem debate público.
Há que mudar de políticas para travar decididamente a propagação do fascismo, que é bem visível depois de anos em que foi abrindo caminho pelas brechas de um liberalismo que objetivamente é seu aliado. À esquerda, às esquerdas, há que exigir que, com um grande debate sobre o que as separa, combatam o que está na raiz da eficácia do argumentário da direita e da extrema-direita, com políticas econômicas que tirem do fosso onde sobrevivem os «perdedores», para usar um adjetivo tão caro aos liberais de qualquer jaez, mesmo sabendo que não há uma relação de causa e efeito imediata entre a melhoria das condições de vida de milhões de pessoas e a aquisição da consciência do que as atirou para esse fosso. À esquerda, às esquerdas, há que exigir políticas sociais para que os direitos dos trabalhadores sejam repostos, os perdidos e os degradados, revigorando-os com a sua ampliação. Há que exigir políticas econômicas em que os setores estratégicos que, em nome de uma falsa racionalidade gestionária, têm sido privatizados, retornem à esfera pública para se acabar de vez com as políticas econômicas neoliberais ou poluídas pela ideologia neoliberal, em que a criação de riqueza é entregue ao capital, a riqueza pública se desgasta e é insuficiente, a capacidade produtiva degenera, os baixos salários persistem. Repor e recompor a democracia que é impossível com tamanha desigualdade entre ricos e pobres. Nada é mais desigual que a igualdade entre desiguais.
Os cânceres não se combatem com aspirinas. Fascismo nunca mais, não é palavra de ordem para conforto de um dia, é um combate de todos os dias.