“Incluídos”: trabalho precário e luta de classes

imagemMarcelo Schmidt – militante da Unidade Classista e do PCB-RJ

Escrever neste momento sobre os trabalhadores precários e periféricos é escrever sobre trabalhadores que não se encontram na centralidade da minha pesquisa e da maioria dos marxistas-leninistas, porque no centro da minha pesquisa estão os trabalhadores de transportes organizados e estratégicos, aqueles que estão no coração da produção capitalista, e que, portanto, se organizados têm o poder de parar a produção do sistema. Muito felizmente o filme nos ajuda a compreender que os trabalhadores precários, aparentemente nas margens do sistema e da revolução, não estão na margem do processo, mas estão dentro da dialética do processo revolucionário.

Por isso a urgência: a obra de Renato Prata tem o efeito de fazer pensar na situação da maioria da classe trabalhadora brasileira como incluída no sistema capitalista, como ele mesmo coloca, da maneira mais subalterna, precária e periférica, nos chamando a atenção para o seu protagonismo na construção da revolução brasileira. Neste sentido, ainda que eu pense que a primazia da organização revolucionária precisa ser feita por quadros políticos organizativos nos setores mais estratégicos da economia, a organização da periferia vem logo em seguida, para a correta estratégia de construção do poder popular.

O filme ‘Incluídos’ conta a história de trabalhadores que não possuem qualquer tipo de poder laboral nos marcos clássicos da organização dos trabalhadores ou da classe operária e, no entanto, ele insiste no chamado para a sua inclusão na certeza do seu pertencimento potencial de classe, da sua importância para um processo de ataque aos direitos laborais, um ataque ao mundo do trabalho pelo capital; fala de trabalhadores que, da periferia para o centro, não fazem parar a economia do ‘descartável’ e do reciclável. O ‘trabalhador catador’ não possui um sindicato classista e sua cooperativa é fraca. No filme, o individualismo da jornada nesta odisseia diária nos remete ao caminho da eterna sobrevivência. Ficar doente é passar fome, não trabalhar; mesmo durante a pandemia é passar fome, e o ato, a ação de trabalhar dançando neste abismo entre o centro e a periferia pode ser categorizada como a luta pela imediata sobrevivência. No momento mais insalubre, no lugar mais insalubre, o filme mostra a luta de classes.

Na obra magna de Ricardo Antunes, ‘O Privilégio da Servidão’, o mesmo nos alerta para um processo de transformação da classe trabalhadora, o novo proletariado de serviços, uberizado e precarizado, que teria como ‘privilégio’ encontrar um maneira de servir ao sistema para não passar fome. Que esta seria uma tendência que atingiria todos os trabalhadores brasileiros e mundiais. Que isso não significa um processo de fim do trabalho ou de industrialização, que muda de lugar, mas que isso significa que o setor de serviços é estruturado na periferia e na precarização da classe. Tanto nos países centrais do sistema, como nos países emergentes esta seria uma tendência, onde o processo de precarização do sistema não encontra anteparos organizativos para defender a classe deste ataque. Praticamente em todo o globo o capital avança sem ser parado.

A cena final do filme ressalta o desalento dos que catam recicláveis e comida no maior mercado alimentício da cidade e, segundo Renato Prata, eles saem da ‘nova fábrica’ da modernidade, aos milhares e aos milhões, são a periferia e o precário constituído como maioria da classe. A mensagem do desalento está nos muros. O seu movimento é desorganizado por uma infinidade de anonimatos e nesta ‘fábrica’ há diferentes horários para marcar o ponto da luta pela sobrevivência. Não se encontram. Dificilmente se organizam. O autor os coloca no filme com a verdade nua da câmera. Então, o seu anonimato se torna verdade com nome e sobrenome aos gritos de que somos milhões. A câmera mostra o trabalho submetido à forma ‘de não trabalho’ como sempre acreditamos conhecer, inaugura novas tendências e nos convida a pensar nos desafios da organização crítica do conjunto da classe trabalhadora no século XXI, de como organizar para a revolução brasileira nos locais de trabalho e moradia.

O filme coloca também um desafio direto ao conjunto da esquerda revolucionária: organizar mais e com maior qualidade, a partir de uma enorme carência de quadros para desempenhar tal tarefa. E diante do número escasso de quadros políticos na organização, se coloca o desafio de organizar com um maior número de quadros organizadores, que bem preparados, apoiados e bem organizados, conseguem organizar uma maior quantidade de periferias estratégicas no território metropolitano brasileiro. No meio do resto da classe, eles conseguem intervir nesta cada vez ‘maior maioria’ da classe, que se organiza em modos não clássicos, mas que pode ser da forma antissistêmica, antifascista, anti-imperialista e para além da sobrevivência.

Ao longo do filme os depoimentos se sucedem e mostram o caminho da formalidade para a informalidade, do centro para a periferia, no caminho pendular da casa ao trabalho, mostra o baixo acesso à educação formal, profissional e política. O filme se coloca como uma esfinge diante do quadro revolucionário, que, ainda que muito preparado, precisa decifrá-la coletivamente quando colocado no espelho da classe trabalhadora brasileira. E quando ele não consegue, mais e mais se vê como um ser estranho e ‘alejado’, no sentido de distância desta classe, ou aleijado das condições da sua efetiva organização para o enfrentamento do sistema. Não faltariam apenas quadros, mas também a preparação destes quadros para adentrar na ‘floresta amazônica’ desta classe despreparada para a guerra de classes e desarmada pelos mais de 40 anos de desarme organizativo para a revolução brasileira. Não é apenas uma questão de qualidade da intervenção, mas muito mais de quantidade aliada a esta qualidade organizativa classista que se busca nas periferias da classe trabalhadora.

O filme evidentemente não se propõe a exaurir completamente os desafios da organização da classe trabalhadora brasileira nos seus aspectos mais crus, mais expostos como fratura nesta sociedade, mais nus deste sistema, que não inclui, não conserta; mas conta a história das mãos comuns nos caminhos da reciclagem, que enriquece com bilhões os maiores tubarões da indústria brasileira e mundial, e deixa centenas de metades de cidadãos e cidadãs órfãos da democracia mentirosa na forma da democracia burguesa brasileira.

O filme também não se propõe a ser um lugar de chegada, mas é um excelente ponto inicial do debate da organização crítica da classe trabalhadora, onde cada um daqueles personagens é real, e serve de laboratório para cenários de organização para o micro e para o macro. Para o quadro político, a ferramenta organizativa, e para os conselhos de trabalhadores cooperativados. Para o quadro político que os organiza e para uma junção estratégica entre os donos de ferro-velho e os trabalhadores autônomos para reivindicar um maior valor para o ‘preço da sucata’. Isso fica evidente na hora que se pergunta quem fica rico com o ‘butim’ da produção e a exploração do trabalho.

Uma correta política de quadros organizativos, inseridos na classe, bem apoiados por estruturas sindicais classistas, atuando em conjunto com movimentos populares, com a juventude pode e deve organizar, a partir dos trabalhadores mais estratégicos, os mais precários e periféricos. Neste sentido, uma política de organização do conjunto da classe trabalhadora se faz possível. Através de uma mensagem do poder popular, acessível para a classe. Uma mensagem que o autor buscou junto ao saudoso Vito Gianotti.

O filme executa a tarefa de ser um documentário da classe para a classe, na linguagem universal da classe, portanto, cumpre a tarefa de equipar a classe para a sua realidade concreta na luta de classes, e serve também para o quadro fazer o caminho completo que vai da elevação da consciência que apreende a realidade da periferia incluída no sistema, para o conjunto da classe, que acontece no meio do poder moderador do sistema capitalista na pandemia brasileira, cada vez mais militarizada, mais miliciana na realidade da região metropolitana do Rio de Janeiro. Onde de um lado o poder militar exerce o mando, terceirizado e enraizado nas igrejas e milícias de extrema direita que dividem o território, mediado no Estado de direito, que pela política e pelo poder judiciário segrega, encarcera e mata por colocar no mesmo lugar: marginal e periférico.

Não existe trégua na linha do tempo e do território da luta de classes na conjuntura da guerra de classes, a massa da classe recicla o seu ato de sobreviver todos os dias. A violência casa com a fome. O déficit organizativo se faz presente na maior quantidade e nos maiores detalhes. O trabalho de Renato Prata não resume por completo a análise do conjunto da classe precária e periférica na revolução brasileira, mas serve para começar a estruturar a jornada de provocação para que os quadros saiam dos seus espaços reflexivos e contemplativos, para transformar filosofia em ação, em organização como fazer teoria revolucionária em ação organizativa revolucionária. Para que não descansem nos seus saberes acadêmicos, para que tantos saiam do ‘aquário’ e ingressem mar adentro, oceano, para com expertise oceânica poder encontrar o déficit organizativo da revolução brasileira nos lugares mais estratégicos e mais periféricos.

Nas próprias palavras do autor: “Incluídos é um curta-metragem documentário sobre catadoras e catadores de latinhas e outros materiais recicláveis do Rio de Janeiro. Um trabalho dos mais precários e em condições das mais insalubres, mas que alimenta grandes indústrias e produz uma enorme quantidade de riqueza, mas não para os catadores. Mas, mais do que um filme sobre os catadores, é um filme sobre a classe trabalhadora brasileira”.

Fica clara a prioridade organizativa que possa convergir com o conjunto da organização da classe trabalhadora. Organizar para construir poder para enfrentar aqueles que muito minoritários ficam com toda a riqueza produzida pela maioria. Neste sentido, a riqueza produzida no processo de produção capitalista inclui todos os marginais para enriquecer as grandes indústrias na sociedade burguesa através dos catadores de materiais recicláveis, e nem comunidade, nem nação, nem capitalista, nem sociedade tem qualquer responsabilidade sobre estes trabalhadores.

As forças revolucionárias apenas serão vitoriosas construindo uma vitoriosa estratégia crítica de organização para a revolução brasileira, quando conseguirmos organizar os milhões na periferia e na precariedade dos grandes centros metropolitanos; a partir de dezenas de milhares de quadros políticos organizativos revolucionários, preparados, apoiados, com autonomia tática e respeito ao tempo de maturação da base organizada dos trabalhadores estratégicos em solidariedade à massa trabalhadora precária e periférica nos seus locais de trabalho e de moradia. Não será possível cumprir esta tarefa se quadros políticos não prepararem quadros políticos para a ação política. Política é organização. Onde a luta pela água se torna uma luta pelo controle direto da água pelos trabalhadores na comunidade. Onde a luta por salário se torna a luta pelo poder direto de administração das forças produtivas.

Quadros políticos que preparam também nas periferias e na precariedade, no estudo concreto. Quadros políticos que transformam a teoria crítica em teoria prática aplicada, e fazem isso junto da base organizada. Não existem atalhos para a tarefa de enriquecimento mútuo, quadro político e base organizada, de se enriquecer de conhecimento prático para a tarefa organizativa. E cada quadro político se faz necessário como quadro político organizativo. Cada quadro político na organização se faz necessário para suprir a falta de quadros na organização da massa e da classe trabalhadora a partir da sua parte mais estratégica. Nem a burocracia nem o tempo nas redes virtuais comuns desta geração retiram a responsabilidade de sua inserção na tragédia humana real, precária e periférica. É preciso entrar como se entra na guerra de classes, nada pode atrapalhar o processo integral de inserção na realidade da luta concreta na luta de classes. É muito importante determinar a necessidade correta para a ação correta, quantidade e qualidade, de quadros políticos organizativos, estruturas sindicais classistas, e conselhos de trabalhadores, para intervir e para apoiar a classe trabalhadora precária e periférica no seu processo crítico de elevação da consciência.

Os trabalhadores precários e periféricos estão ‘Incluídos’, e isso se junta à lista de filmes como ‘Vidas entregues’ e ‘Luto que segue’, ressaltando isso: você pode contá-los em todo o tipo de exploração e dominação do sistema, para ser parte do sistema. Se a princípio, eles estão excluídos da formação da vanguarda revolucionária da classe, da vanguarda do operariado, na manufatura e na circulação de mercadorias da classe trabalhadora; sem embargo, eles são a massa prioritariamente vitoriosa, que se integra a vanguarda a partir da vanguarda estratégica, que se organiza para fazer a revolução brasileira. Podemos afirmar que sem incluí-los na organização revolucionária para a revolução brasileira não existe conteúdo revolucionário para a revolução brasileira.

Referências:

PRATA BIAR, Renato – Incluídos

PRATA BIAR, Renato – Vidas entregues,

PRATA BIAR, Renato – Luto que segue,

ANTUNES, Ricardo – Privilégio da Servidão – Boitempo – 2020