A transformação de valores em preços

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LavraPalavra
Por Tokil Lauesen e Zak Cope, via Monthly Review, traduzido por Ricardo Almeida Campos

“Em um mundo onde preços de mercado de bens tendem a ser globais enquanto o preço de mercado da capacidade laboral varia em função da luta de classes – tanto histórica quanto contemporânea – o resultado é a redistribuição de valor, de países com baixo preço de mercado da capacidade laboral para países com preço de mercado maior dessa capacidade. Portanto, imperialismo deve ser explicado no contexto de transformação de valor em preço. Sugerir que isso muda o conceito de exploração da esfera de produção para a da circulação, no entanto, é falso”.

Introdução

Neste artigo, pretendemos demonstrar que os preços baixos de bens produzidos no Sul global e a contribuição de suas exportações ao Produto Interno Bruto (PIB) do Norte oculta a verdadeira dependência deste em relação à mão de obra barateada no Sul. Argumentamos que a realocação da indústria para o Sul global nas últimas três décadas resultou em um aumento massivo na transferência de valor para o Norte. Os principais mecanismos para essa transferência são a repatriação de mais-valia através de investimento estrangeiro direto, a troca desigual de produtos que incorporam diferentes quantidades de valor, e extorsão por encargo de dívidas.

A incorporação de grandes economias do Sul global em uma sistema mundial capitalista dominado por corporações transnacionais e instituições financeiras baseadas no Norte global estabeleceu essas economias como dependentes de exportação e socialmente desarticuladas. As taxas de remuneração miseravelmente baixas nessas economias se baseiam em (1) pressão imposta por suas importações terem que competir por parcelas limitadas do amplo mercado consumidor metropolitano; (2) drenagem de valor e recursos naturais que poderiam muito bem ser usados para reorganizar as forças produtivas da economia nacional; (3) a questão agrária não resolvida dilatando a oferta de mão de obra; (4) regimes entreguistas repressivos, que aceitam e se beneficiam diretamente da ordem neoliberal e são portanto incapazes ou indispostos a garantir aumentos salariais à sombra do temor de agitar as demandas da classe trabalhadora por mais poder político; e (5) fronteiras militarizadas que previnem a locomoção de trabalhadores ao Norte global e, consequentemente, uma equalização de retornos ao trabalho.

A Globalização Imperialista da Produção

O debate sobre transferência de valor e trocas desiguais não é novidade. Hoje em dia, porém, há uma proporção crescentemente grande de bens consumidos mundialmente que são produzidos no Sul global. Produção não é, como nos anos 1970, mais limitada a bens primários ou industriais simples, como petróleo, minerais, café e brinquedos. Ao invés disso, apesar do relativamente baixo acréscimo ao valor de produção (mais disso abaixo), virtualmente todos tipos de insumo e produção industriais são produzidos no Sul global: de produtos químicos, a bens de metal fabricado, maquinário elétrico e não elétrico, eletrônicos, mobília e equipamento de transporte, a bens têxteis, sapatos, roupas, tabaco e combustíveis. [1] Mas por que, e como, essa “transladação” do local de produção ocorreu?

A mudança na divisão internacional do trabalho é um produto da eterna busca do capital por maiores lucros e é baseada, primeiramente, em um enorme crescimento do número de proletários integrados ao sistema mundial capitalista e, em segundo, na industrialização substancial do Sul durante as últimas três décadas. Isso se fez possível com a dissolução das economias Soviética e de outras nações socialistas no Leste Europeu, a abertura da economia chinesa ao capitalismo global, e a terceirização da produção para Índia, Indonésia, Vietnã, Brasil, México, entre outras nações mais recém-industrializadas. O resultado foi um crescimento de ao menos um bilhão de proletários mal remunerados dentro do capitalismo global. Hoje, mais de 80% dos trabalhadores industriais estão localizados no Sul global, enquanto essa proporção diminui consistentemente no Norte. Podemos estar vivendo em sociedades pós-industriais no Norte, mas o mundo como um todo está mais industrializado que nunca.

A industrialização do Sul global não foi antecipada pela teoria da dependência dos anos 1960 e 1970. Esta argumentava que o centro do capitalismo deve bloquear qualquer desenvolvimento industrial avançado na assim chamada periferia, para que essa permaneça como fornecedora de matérias-primas, produtos agrícolas tropicais, e produção industrial simples que usa mão de obra intensiva, que, porventura, deve ser trocada por produtos industriais avançados do centro. Poucos analistas haviam previsto a industrialização do Sul global enquanto orientada por comércio e investimento do capital metropolitano.

No entanto, a industrialização do Sul global acabou por providenciar uma solução (temporária) ao mal estar político e econômico do capitalismo nos anos 1970, manifestando-se por um lado pelo declínio das taxas de lucro, a crise do petróleo, e pressão de movimentos trabalhistas no Norte por salários ainda maiores por um lado, e por outro, lutas de libertação nacional no Sul global. Ainda assim, a industrialização do Sul não foi uma concessão às suas demandas políticas; bem pelo contrário. Ao invés de um passo em direção a um mundo mais igual, caminhou-se a um aprofundamento das relações imperialistas em escala global.

Esta nova política econômica imperialista repousa sob duas fundações. Primeiro, o desenvolvimento de novas forças produtivas em eletrônicos, comunicação, transporte, logística, e gerenciamento: computação, a Internet, celulares, transporte de carga, e desenvolvimento de cadeias produtivas globalizadas com regimes administrativos recém-formados. Segundo, o desenvolvimento do neoliberalismo através da remoção de barreiras nacionais ao fluxo de capitais e bens, a privatização de esferas públicas e comuns, o estabelecimento de novas instituições globais como a Organização Mundial do Comércio (OMC), encontros mundiais de líderes (G7, G20, e assim por diante), entre outras formas de administração política global, e novas estratégias militares destinadas a conter e acuar a expansão do desenvolvimentismo nacional e socialista.

Neste novo regime de acumulação, não é apenas capital e comércio de bens acabados que tornaram-se transnacionais; a própria produção foi globalizada em cadeias de valor. Os sub-processos na cadeia produtiva estão localizados nos lugares onde o custo de produção, infraestrutura, e leis de taxação são ótimas ao capital. Um carro ou um computador é produzido usando insumos e componentes de centenas de firmas, situadas em vários países, e o produto pode ser montado em diferentes partes do mundo.

O neoliberalismo gestou uma nova divisão internacional do trabalho na qual o Sul global se tornou “a fábrica do mundo.” O capitalismo global cada vez mais polariza o mundo em “economias de produção” no Sul e “economias de consumo” no Norte. A principal força motriz por detrás desse processo é inquestionavelmente o baixo nível salarial no Sul. Como tal, a estrutura da economia global contemporânea foi profundamente moldada pela alocação do trabalho a setores industriais conforme taxas diferenciais de exploração no nível internacional.

A tentação do grande capital em terceirizar a produção ou investir em projetos Greenfield no Sul é considerável. Nos países ali localizados, a diferença em níveis salariais não é apenas um fator de um contra dois, mas muitas vezes de um contra dez ou até quinze. [2] Em 2010, da força de trabalho mundial de três bilhões de pessoas, aproximadamente 942 milhões foram classificadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como “trabalhadores pobres” (cerca de um em três trabalhadores no mundo vivem por menos de $2 ao dia). [3]

De acordo com o economista do Banco Mundial, Branko Milanović (ver Gráfico 2), em 1870 a desigualdade global entre cidadãos do mundo era consideravelmente menor do que é hoje. Mais impressionante ainda é como que, de predominantemente orientada por classe (isto é, na concepção não-marxista de Milanović, a parcela da receita nacional), a desigualdade passou a ser orientada quase inteiramente pela localização, esse fator apenas contribuindo para quase 80% da desigualdade global. Assim, escreve ele, “é muito mais importante, no sentido global, se você tem sorte de nascer em um país rico do que se a classe à qual você pertence em um país rico é alta, média ou baixa.” [4] A coisa não dita é que a geografia da desigualdade é produto das políticas econômicas, legais, militares, além das estruturas políticas colonialistas e neocolonialistas de outrora. Esses fatores históricos formam a base para a luta de classes que determina aquilo a que Marx se referia como o aspecto “histórico e moral” dos níveis salariais.

O baixo nível dos salários no Sul cria não apenas uma taxa global de lucro maior que se poderia obter caso assim não o fosse, como também afeta o preço de bens produzidos no Sul. Na economia dominante, a formação de preços de mercado para um computador pessoal através da cadeia de produção poderia ser descrita como uma “curva sorridente” para “valor” (sic) adicionado (ver Gráfico 3). [5] “Valor adicionado” – que na teoria dominante é simplesmente o equivalente à nova receita adicionada medida em termos convencionais de preço – é elevado na primeira parte da cadeia, em pesquisa e desenvolvimento, design, e gestão financeira volumosamente financiados, situados no Norte, enquanto a curva decresce no meio, com baixa remuneração durante a construção do produto físico. O valor adicionado/preço cresce novamente ao fim da curva com gestão de marca, marketing, e vendas ocorrendo no Norte global, apesar de os salários para trabalhadores de varejo estarem entre os menores nesses países.

Na lógica da “curva sorridente”, a maior parte do valor do produto é adicionada no Norte, enquanto o trabalho no Sul, que fabrica os bens, contribui apenas com uma porção mínima disso. Seguindo esse raciocínio, corporações multinacionais realizam um serviço público ao reduzir o preço de bens de consumo. Em verdade, no entanto, os preços de mercado baixos desses bens oculta o fato de que trabalhadores têm de viver em condições miseráveis devido à baixa remuneração e condições de trabalho extenuantes na parte Sul das cadeias de produção.

Em termos marxistas, em contraste, o valor é a soma do trabalho socialmente necessário direto e indireto que foi gasto na produção de uma mercadoria (na forma de trabalho atualmente realizado ou “trabalho vivo” e capital ou “trabalho morto,” respectivamente). Embora que, como veremos, o preço de uma mercadoria regularmente diverge de seu valor, ele é, em última análise, determinado pelo valor. Assim, se alguém desenhasse a curva seguindo o conceito marxista de valor adicionado, em uma cadeia de produção de computadores, ela assumiria uma forma um tanto oposta à curva sorridente – um certo “sorrisinho triste” (ver Gráfico 3). Mas se há uma correlação entre valor no sentido marxista e o preço de mercado, como acontece essa transformação de um sorrisinho triste do valor em uma curva sorridente feliz do preço de mercado?

A Transformação Valor-Preço

Independentemente das diferenças entre teorias econômicas, ambas tendem a concordar que o preço da produção de uma mercadoria é igual ao preço dos insumos materiais mais a remuneração daqueles a que são concedidas reivindicações na parte do valor de dita produção. Esta segunda parte subdivide-se na parte pertinente a salários e na parte pertinente às demais reivindicações: lucro, renda, juros, etc.

Mas qual é a variável independente da economia que determina preços? Na economia neoclássica, o determinante último é “o mercado,” isto é, as necessidades e preferências subjetivas do consumidor. Essas necessidades e preferências determinam os preços dos bens finalizados e esses, em contrapartida, determinam custos salariais e margens de lucro. Portanto, preços servem ao propósito de medir demandas no mercado e ascender através do comércio entre partes concorrentes.

Em contraste, a teoria de valor marxista coloca a determinação de preços no lado da economia que diz respeito à produção. O custo de produção, ou preço de custo, é a pedra basilar na transição de valor a preço de mercado. O preço de custo de um produto consiste dos custos de capital “constante” (matérias-primas, maquinaria, inventário, etc) e capital “variável” (ou seja, salários). Juntamente ao preço de custo, o preço de mercado deve cobrir ao menos a taxa média de lucro. Isso se deve ao fato de mercadorias necessitarem produção e reprodução contínuas, e que se capitalistas não recuperam os custos de produção mais algum lucro quando vendem, a (re)produção pára. Portanto, na economia marxista, o preço de mercado reflete os custos de reprodução.

Como mensuramos o custo de produção, isto é, os insumos necessários à produção de uma mercadoria? Não podemos utilizar preço em geral para medir insumos, já que preços são o que estamos tentando explicar em primeiro lugar. Todos os preços de mercado em uma economia capitalista são em última instância ligados à extensão do consumo de mão de obra. Seu preço – o salário – é determinado não apenas pelos custos de reprodução (seus próprios custos de produção: alimento, moradia, educação, e assim por diante), mas também pela luta política – luta de classes – refletindo relações de poder entre classes e grupos na sociedade. Assim, enquanto oferta e demanda podem dar uns toques finais, o fator básico ao preço de mercado é o custo de produção, e com isso o preço da força de trabalho.

Para Marx, os preços de mercadorias convencionais são determinados pelo seu valor. Ao competir com suas rivais pela participação nos lucros, as empresas devem reduzir o tempo de trabalho requerido para produzir mercadorias introduzindo novas tecnologias. Concorrência dentro de um setor leva à formação de preços padrão para commodities padrão, enquanto a competição entre setores industriais resulta na apropriação de uma taxa média de lucro por produtores comuns dentro de cada setor. Acrescentados ao custo de produção, essa taxa média de lucro gera os preços de produção como valores de mercado “modificados.” [6]

O preço de produção de um commodity específico, porém, não é o mesmo que o seu valor, ainda que o preço agregado de todas mercadorias seja o mesmo que o valor agregado. Trabalhadores de diferentes firmas que recebem as mesmas médias salariais e trabalham as mesmas horas por dia criam as mesmas somas de mais-valia, isto é, a diferença entre o tempo que o trabalhador passa reproduzindo sua própria força de trabalho e o total de tempo em que ele é empregado. Assim, pode-se esperar que empresas que usam mais mão de obra intensiva gerem taxas maiores de mais-valia e, portanto, comandem as maiores taxas de lucro. A movimentação de capital entre firmas e setores industriais, e as alterações resultantes nas oferta e demanda, no entanto, garante que níveis de preço ultimamente se acomodem no ponto em que a taxa de lucro é a mesma em todas as indústrias.

Enquanto capital é retirado de indústrias com taxas de lucro baixas e investido nas com taxas maiores, a produção (oferta) nas primeiras declina e os preços crescem acima das reais somas de valor com mais-valia que essa indústria particular gera, e também inversamente. Então capitais com diferentes composições orgânicas (a proporção entre capital constante e variável) acabam por vender mercadorias a preços medianos e a mais-valia é distribuída mais ou menos uniformemente por todos os ramos de produção conforme o total de capital – constante e variável – avançado. [7] Uma taxa média de lucro é formada pela busca contínua de capitais concorrentes por lucros maiores e a fuga de capitais de e para os setores industriais que produzem commodities em alta ou baixa demanda. No geral, a venda de uma mercadoria por menos que seu valor corresponde à venda de outra mercadoria por mais que seu valor.

É através da transformação em preços de mercado que valor e mais-valia são distribuídos entre capitalista dentre e entre setores. A distribuição desigual de valor ocorre em função de composições mais ou menos orgânicas e de valor do capital, renda extraída por monopólio e monopsônio, produtividade relativa, e a tendência à equalização das margens de lucro. Isso ocorre entre capital e mão de obra através dos ganhos das respectivas partes – lucros e salários – resultantes das relações de classe prevalentes. Crucialmente, isso também ocorre entre nações por causa de diferenças entre o preço de mercado nacional da força de trabalho (o salário) e o preço de mercado desse bens que a mão de obra consome (o pacote salarial).

A Estrutura Global

Hoje, os preços de produção são determinados em uma escala global na medida que o capital possui a habilidade de circular transnacionalmente com fim de garantir o maior lucro possível por seus investimentos. A mobilidade do capital para além de fronteiras nacionais e a tendência a uma equalização da taxa de lucro, apesar de taxas de exploração massivamente divergentes (a proporção entre o tempo de trabalho necessário à produção de capacidade laboral e o trabalho concreto gasto), é a pré-condição para a formação de preços globais de produção. Como o economista marxista Henryk Grossman notou:

Na prática, a formação de preços no mercado mundial é governado pelos mesmos princípios que se aplicam sob um capitalismo conceitualmente isolado. Esse último, de qualquer forma, é meramente um modelo teórico; o mercado mundial, enquanto uma unidade de economias nacionais específicas, é algo real e concreto. Hoje os preços das matérias-primas e produtos finalizados mais importantes são determinados internacionalmente, no mercado mundial. Não somos mais confrontados por um nível nacional de preços mas por um nível determinado no mercado mundial. [8]

O acúmulo de capital ocorre em uma escala mundial ao ponto de não existirem impedimentos legais ou políticos aos livres comércio e investimento. À medida que as relações capitalistas de produção avançam, o valor gerado pelo trabalho no nível mundial está ligado à “média” mundial de desenvolvimento das forças produtivas. De acordo com Nicholas:

Para Marx, assim que um bem se torna integral à reprodução de um sistema econômico baseado na troca, o trabalho gasto na sua produção se torna parte do trabalho necessário para a reprodução de todo o sistema e qualitativamente equivalente a todas outras formas de trabalho utilizadas na produção de todos outros bens que sejam similarmente integrais à reprodução do sistema econômico. [9]

Isso diz respeito tanto a economias nacionais como internacionais. No entanto, o preço da força de trabalho – o salário – se difere enormemente no nível global entre Norte e Sul.

Em um mundo onde preços de mercado de bens tendem a ser globais enquanto o preço de mercado da capacidade laboral varia em função da luta de classes – tanto histórica quanto contemporânea – o resultado é a redistribuição de valor, de países com baixo preço de mercado da capacidade laboral para países com preço de mercado maior dessa capacidade. Portanto, o imperialismo deve ser explicado no contexto de transformação de valor em preço. Sugerir que isso muda o conceito de exploração da esfera de produção para a da circulação, no entanto, é falso.

É o trabalho humano que cria valor e a oferta de trabalho que cria mais-valia. Porém, (mais-valia) valor não é uma propriedade física que o trabalho acrescenta aos bens como uma molécula incorporada e armazenada no produto. Na verdade, o valor e a transformação do valor em preço de mercado é resultado das relações sociais entre trabalho e capital e entre diferentes capitais. É a transformação de valor em preço de mercado que garante a continuidade do processo de acumulação em uma escala expandida. Este circuito expandido de capital envolve a transformação de valor e mais-valia em lucro, e a transferência de valor do Sul ao Norte conforme os preços baixos pagos por bens produzidos no Sul pelo Norte. A exploração não ocorre, portanto, em um setor particular de produção ou economia nacional; é o resultado do processo de acumulação capitalista global total.

Podemos agora deixar essas considerações teóricas e seguir a um exemplo mais específico dessa dinâmica, nominalmente, a produção globalizada do onipresente Apple iPad.

O Miolo da Maçã

Baseado em pesquisa detalhada feita por Kraemer, Linden e Dedrich [10] sobre as linhas de produção da Apple, Donald A. Clelland analisou o tamanho e transferência de valor no sistema mundial através do mecanismo de preço de mercado. [11]

O iPad é produzido pela Apple, uma companhia situada nos EUA. Entre meados de 2010 e de 2011, a Apple vendeu pouco mais de 100 milhões de iPads. É a instância exemplar de uma empresa “sem fábricas” – sem fabricação. A Apple desenvolve, projeta, patenteia e vende computadores e equipamentos de comunicação enquanto terceiriza o verdadeiro processo de fabricação dos bens que vende. Todos iPads são montados na China. A Apple integrou 748 fornecedores de materiais e componentes na sua cadeia de produção, 82% deles situados na Ásia – 351 dos quais se encontram na China. [12]

A cada etapa na cadeia de produção, existem entradas de materiais às quais são adicionados salários, gerenciamento, custos fixos, e lucros. O preço monetizado total destes fatores, em todas as etapas da cadeia, se iguala ao preço de venda. Isso é o que Cleveland chama de “valor brilhante” em uma cadeia de commodities. [13]

O preço de mercado de um iPad em 2010-2011 era $499, com o preço de fábrica estipulado em $275. Do preço de fábrica, apenas cerca de $33 destinavam-se aos custos de produção no Sul global, enquanto bons $150 da margem de lucro bruta da Apple foram destinados ao design de ponta, marketing, e salários administrativos, assim como pesquisa e desenvolvimento e custos operacionais mantidos principalmente no Norte global. [14] A distribuição desse “valor” em salário e lucros é bem representada pela “curva sorridente.”

No entanto, a economia mundial capitalista assume a forma de um iceberg. A parte mais estudada – o “valor brilhante” acima da superfície – é apoiada por uma imensa estrutura subjacente, fora de vista. Ao contrário do iceberg, a economia mundial é um sistema dinâmico baseado em fluxos de valor da parte debaixo à de cima – do Sul ao Norte. Esses fluxos incluem drenos que assumem duas formas: fluxos monetizados de valor brilhante visíveis e fluxos ocultos que carregam “valor escuro” gerado por um número incalculado de mão de obra barata e reprodução do trabalho pelo setor informal – não assalariado – e externalidades ecológicas não pagas. O termo “valor escuro” é inspirado no reconhecimento científico de que matéria e energia compõem apenas 5% do universo como o conhecemos, e “matéria escura” e “energia escura” compõem o restante. Assim como energia escura não contabilizada dirige a expansão do universo, o “valor escuro” é o trabalho ocultado e precarizado que dirige a expansão do sistema mundial capitalista. [15]

Se o iPad passasse a ser fabricado nos Estados Unidos, o custo salarial de produção não seria de $45 mas sim $442. E se dermos um passo adiante na estrutura de produção do iPad, até os subcomponentes e entrada de matérias-primas, aprendemos que a maioria desses insumos materiais são também produzidos no Sul com um custo-salário aproximado de $35 por iPad. Se essa produção se desse também nos Estados Unidos, o custo salarial seria de aproximadamente $210.

Os trabalhadores (do Sul) na linha de produção dos iPads da Apple não recebem menos porque sua produtividade é menor que a dos trabalhadores do Norte. Na verdade, eles são provavelmente mais produtivos. Os fornecedores da Apple são líderes mundiais na aplicação de tecnologia de ponta. Seu pessoal administrativo dirige trabalhadores utilizando métodos tayloristas e semanas de trabalho mais longas que não são toleradas legalmente no Norte. Fornecedores organizam cronogramas que intensificam a produtividade de seus trabalhadores, com turnos diários de 12 horas e intensa supervisão sendo rotineiros. Semanas de trabalho ultrapassam 60 horas porque trabalhadores são obrigados a cumprir tempo extra, excedendo regulamentações legais. [16] Então não é surpreendente que em 2011 quando Steve Jobs, então CEO da Apple, foi questionado pelo Presidente Obama em um jantar na Casa Branca sobre “O que seria necessário para trazer a produção da Apple de volta para casa?” e respondeu: “Estes empregos não vão voltar.” [17]

No momento em que uma mercadoria passou por numerosas etapas de uma cadeia global e chegou à porta do consumidor, ela incorporou não apenas os insumos da força de trabalho mal remunerada como também as quantidades imensas de trabalho precarizado e não remunerado, além dos insumos ecológicos. Capitalistas drenam excedentes ocultos de atividades caseiras e do setor informal. Uma longa cadeia de valor escuro de produtores de alimentos e atividades informais é necessária para gerar a capacidade produtiva e a sobrevivência de cada proletário remunerado. Esse fluxo de valor escuro diminui os custos de reprodução do trabalho periférico e, assim, o nível de salário que os capitalistas pagam. Esses setores domésticos e informais não estão fora do capitalismo, são de fato componentes intrínsecos das cadeias globais de commodities.

Degradação ecológica, poluição, e esgotamento dos recursos naturais compõem toda uma gama de externalidades pelas quais fornecedores da Apple extraem valor escuro. Cada iPad utiliza 33 quilos de minerais (alguns dos quais são raros e limitados em oferta), 79 galões de água, e energia movida a combustíveis fósseis suficiente para gerar quase 30 quilos de dióxido de carbono. No fim das contas, a produção de um iPad gera 105 kg de gases de efeito estufa. [18] Todos esses fardos ecológicos são colocados nos ombros de China e outros países asiáticos, enquanto o produto é consumido no Norte global. Degradação ecológica é uma externalidade que está embutida no iPad como valor escuro. Observando apenas os custos de poluição, Clelland estima que a Apple dribla o custo de $190 por unidade que teria que pagar nos EUA por externalidades ecológicas. [19] O capitalismo é dependente de, e dirigido por, todas essas formas de valor escuro. Esses fatores nunca aparecem na contagem dos custos de produção; são “presentes” invisíveis para os capitalistas e para os compradores.

Marx acreditava que o valor da força de trabalho declinaria com a produtividade elevada da mão de obra, e onde isso não ocorresse, a queda tendencial da taxa geral de lucro assim ocasionada deveria se intensificar. Sob o imperialismo e o sistema global de opressão nacional agora estabelecido, no entanto, o capital monopolista é capaz de garantir custos baixos pelos bens de consumo dos trabalhadores produzidos por mão de obra superexplorada no Sul. Junto ao paralelo barateamento do capital constante através de importação de materiais intermediários e matérias-primas de baixo custo, a venda de bens de consumo a preços baixos para trabalhadores (super assalariados) dos países imperialistas barateia o valor da mão de obra, assim aumentando o nível de “mais-valia” produzida localmente. Assim, trabalhadores do Norte podem parecer mais produtivos em termos dos lucros que eles geram. Em termos de “produtividade,” no entanto, a principal forma de medir “produtividade” não é “valor adicionado” por hora de trabalho – isso depende dos preços de venda inflados por monopólio, preços de transferência, trocas desiguais, e intervenção estatal, militar, e policial para reprimir custos de trabalho no exterior – mas por custos de mão de obra horários relativos ao lucro gerado em nível global.

Ao contrário do que creem muitos ativistas trabalhistas metropolitanos, assim, não são apenas capitalistas ao Norte que se beneficiam materialmente da superexploração de mão de obra mal remunerada no Sul. “No caso do iPad, a maior parte do valor escuro extraído é realizado, não como lucro corporativo, mas como excedente do consumidor na forma de bens mais baratos. Consequentemente, o cidadão central se torna um beneficiário inconsciente desse sistema exploratório quando ele(a) utiliza o correspondente uma hora de seu salário para comprar um produto que incorpora muitas mais horas mal remuneradas, quando remuneradas, e muitos outros materiais subvalorizados e insumos ecológicos.” [20]

A Perspectiva Política

A perspectiva política estabelecida pela análise presente é que o potencial para mudança revolucionária no século 21 surge do Sul. Ali centenas de milhões de novos proletários industriais concentrados em fábricas sob severas condições de trabalho estão recebendo salários incrivelmente baixos, a privatização de terras no atacado está destituindo milhões de fazendeiros pobres de terra e renda (eles são então obrigados a buscar trabalhos extremamente árduos pela mais mísera remuneração), e a diferença de condições de vida que existem entre Norte e Sul estão a olhos vistos, graças à exposição da mídia e à globalização das informações. [21]

Esta contradição deve eventualmente manifestar-se em movimentos anti-capitalistas no caminho do socialismo (e além). No Sul global residem essas classes com ambos o interesse objetivo e a capacidade de resistir ao neoliberalismo global. Similar à onda de movimentos de libertação nacional anti-coloniais que irromperam pelo Terceiro Mundo de 1945 a 1975, prevemos a possibilidade de uma nova onda de movimentos anti-capitalistas nos anos por vir.

Devido à posição central do novo proletariado do Sul, sua força na economia global é muito maior do que era quando estava sob a onda de movimentos de libertação que varreram o mundo nos anos 1960 e 1970. No entanto, a realização política dessa força não é dada. As forças subjetivas não estão presentes no Sul ou no Norte. Portanto, a tarefa da esquerda global é enorme. Nos anos 1970, milhões lutaram e morreram pelo socialismo. Aqueles que lutam pelo comunismo hoje são poucos, se compararmos. Socialismo não é exatamente uma “marca” forte. A divisão do globo em Sul e Norte se reflete em uma divisão da classe trabalhadora global, para que uma parte dessa receba benefícios econômicos e políticos bastante consideráveis que auxiliem na estabilidade de sua aliança com o status quo imperialista. Essa aliança é, claramente, impulsionada pela aceitação dos consumidores para com a propaganda estatal e de grandes monopólios de mídia. É um dos problemas mais profundos a serem enfrentados pelos socialistas da atualidade, globalmente.

Para encarar esses problemas devemos primeiramente assumir uma perspectiva global na luta no interesse de a igualar à globalização do capital. Apenas a partir dessa perspectiva global poderemos elaborar táticas e estratégias locais efetivas. Tentar encontrar soluções lucrativas para a crise presente por meio de protecionismo nacional (seja ele social-democrático, “verde,” ou fascista) não é apenas anti-solidário, é também uma estratégia de perdedores – uma corrida inevitável ao fundo do poço.

Torkil Lauesen é um ativista e escritor anti-imperialista desde o final dos anos 1960. Suas publicações em inglês incluem “It’s All About Politics”, bem como uma entrevista – ambos podem ser encontrados em Turning Money into Rebellion, editado por Gabriel Kuhn (PM Press, 2014). Zak Cope é autor de “Divided World Divided Class: Global Political Economy and the Stratification of Labor under Capitalism” (Montreal, Canadá: Kersplebedeb, 2012 e 2015) e co-editor, junto a Immanuel Ness, da Palgrave Encyclopedia of Imperialism and Anti-Imperialism.

Ricardo Almeida Campos é historiador.

Referências:

[1] Organização de Desenvolvimento Industrial das Nações Unidas (UNIDO), “Table 8.4. Developing and Developed Countries’ Share of Global Manufacturing Value Added by Industry Sector, Selected Years, 1995–2009 (percent),” Industrial Development Report 2011 (New York: ONU, 2011), http://unido.org, 146; ver também “Table 8.7. Share of Manufacturing Employment for Developing and Developed Countries, by Industry Sector, Selected Periods Over 1993–2008 (percent),” 151.
[2] Zak Cope, Divided World Divided Class: Global Political Economy and the Stratification of Labor under Capitalism, segunda edição (Montréal, Quebec: Kersplebedeb, 2015), 378–82.
[3] Benjamin Selwyn, “Twenty-First-Century International Political Economy: A Class-Relational Perspective,” European Journal of International Relations (December 3, 2014): 1–25, http://academia.edu.
[4] Branko Milanović, The Haves and Have-Nots: A Brief and Idiosyncratic History of Global Inequality (New York: Basic Books, 2011), 113.
[5] A curva sorridente foi proposta por Stan Shih, fundador da Acer, em 1992.De acordo com a observação de Shih, na indústria de computadores pessoais, os dois fins da cadeia de valor comandam as maiores quantidades de valor adicional ao produto que o meio dela. Se esse fenômeno é apresentado em um gráfico com um eixo-Y como valor adicionado e um eixo-X como cadeia valor (estágio de produção), a curva resultante esboça um sorriso.
[6] Howard Nicholas, Marx’s Theory of Price and Its Modern Rivals (New York: Palgrave Macmillan, 2011), 30, 39–40.
[7] Marx se refere diversas vezes à composição técnica do capital, o valor, ou preço, composição de capital, e a composição orgânica do capital. Ele escreve: “Chamo de composição de valor, na medida em que [grifo nosso] é determinado por sua composição técnica e espelha as mudanças dessa última, a composição orgânica do capital.” Como escreveu Paul Zarembka, no entanto, o qualificador é significativo já que o valor da força de trabalho (capital variável) “pode mudar sem qualquer alteração na composição técnica em circunstâncias nas quais os próprios trabalhadores podem receber mais ou menos, enquanto produzem a mesma tecnologia.” Ver Paul Zarembka, “Materialized Composition of Capital and its Stability in the United States: Findings Stimulated by Paitaridis and Tsoulfidis (2012),” Review of Radical Political Economics 47, no. 1 (2015): 106–11. Para Marx, enquanto o capital (trabalho morto) se acumula e é cada vez mais empregado em relação ao trabalho vivo, cresce a composição orgânica do capital e a taxa de lucro tende a cair.
[8]Henryk Grossman, The Law of Accumulation and Breakdown of the Capitalist System (London: Pluto Press, 1992; originalmente 1929), 170.
[9]Howard Nicholas, “Marx’s Theory of International Price and Money; An Interpretation,” em Immanuel Ness e Zak Cope, eds., Palgrave Encyclopaedia of Imperialism and Anti-Imperialism (New York: Palgrave Macmillan, 2015).
[10]Kenneth L. Kraemer, Greg Linden, e Jason Dedrick, “Capturing Value in the Global Networks: Apple’s iPad and Phone,” Universidade da Califórnia, jul. 2011, http://pcic.merage.uci.edu.
[11]Donald A. Clelland, “The Core of the Apple: Dark Value and Degrees of Monopoly in the Commodity Chains,” Journal of World-Systems Research 20, no. 1 (2014): 82–111.
[12]Ibid, 83.
[13]Ibid, 86.
[14]Ibid, 88, com números extraídos de análise de dados feita por Kenneth Kraemer, Greg Linden, e Jason Dedrick, em “Capturing Value in Global Networks,” Centro Industrial de Computação Pessoal, Universidade da Califórnia – Irvine, 2011, http://pcic.merage.uci.edu.
[15]Clelland, “The Core of the Apple,” 85.
[16]Ibid, 97.
[17]Ibid, 98.
[18]Ibid, 102.
[19]Ibid, 103.
[20]Ibid, 105.
[21]Em discussão acerca das descobertas no Relatório Global dos Salários 2014/2015 pela Organização Internacional do Trabalho, Patrick Belser nota: “o aumento salarial em economias desenvolvidas se mantém em quase zero, e salários globais estão crescendo cerca 2%. Se você tira a China da equação, o aumento salarial global é basicamente cortado pela metade.” Ver Patrick Belser, “Fiscal Redistribution: Yes, but Inequality Starts in the Labor Market: Findings from the ILO Global Wage Report 2014/2015,” Global Labor Column, 2014, http://column.global-labor-university.org. Com esta taxa de crescimento, podemos generosamente assumir que níveis salariais no Sul global vão alcançar os mesmos níveis do Norte global, onde eles são em média dez vezes maiores, em cerca de 500 anos.