As ocupações urbanas e o Poder Popular

imagemSOBRE O PAPEL DAS OCUPAÇÕES URBANAS NA CONSTRUÇÃO DO PODER POPULAR

Por Matheus Sena [*]

Neste dia 03 de junho, a Vila Irmã Dulce completou 23 anos de existência. A vila que partiu de uma ocupação urbana, iniciada no final do último século, comemora o início de um dos tantos processos históricos de luta por moradia na zona sul de Teresina, a capital piauiense. Hoje, com muita resistência e, certamente, muitos conflitos a serem superados, a Vila Irmã Dulce é uma das maiores comunidades da América latina.

As ocupações urbanas têm sido, historicamente, uma importante demonstração de mecanismos do Poder Popular. Trabalhadores se unem perante uma das principais contradições da vida capitalista: a escassez de moradia. Uma vez unidos, os “sem teto”, organizados em associações ou mesmo cooperativas populares, resistem coletivamente e de maneira contínua à investida classista. Trata-se de uma resposta popular e organizada, que viabiliza e constrói concretamente as condições materiais de enfrentamento dessa escassez, ainda que, na prática, tudo isso seja contrariado pelos instrumentos de poder da classe dominante.

Esses mecanismos do Poder Popular já existem em toda parte da cidade. Eles operam paralelamente ao poder estatal, não só em Teresina, como em qualquer cidade metropolitana ou mesmo nas periferias do mundo, sob a ordem do capital. São trabalhadores e trabalhadoras que lutam diariamente, no plano concreto, por uma vida digna, ou seja, pelo acesso à escola, alimentação, saneamento básico, lazer, transporte e trabalho – direitos supostamente garantidos pelo Estado, mas que não se traduzem na vida material dessas pessoas; e contra a própria escassez de moradia.

“O que hoje se entende por escassez de moradia é o peculiar agravamento das más condições de moradia dos trabalhadores em razão da repentina afluência da população às metrópoles; é o aumento colossal dos preços do aluguel; é a aglomeração ainda maior de moradores nas casas particulares; e, para alguns, é a total impossibilidade de encontrar alojamento” [1].

Sobre o caso da Vila Irmã Dulce, dezenas de trabalhadores “sem teto” se organizaram contra a prefeitura, de caráter neoliberal, que seguia as diretrizes do então presidente do país, Fernando Henrique Cardoso, a polícia, ou seja, o braço truculento do Estado, os aparelhos jurídicos e os proprietários das terras urbanas ociosas, munidos pela propriedade privada. Esse conjunto que, diga-se de passagem, pode ilustrar, particularmente, o que Marx e Engels chamam de superestrutura: um plano abstrato onde as formas de consciência da classe dominante são conformadas de acordo com o modo de produção da vida material. Voltaremos a este assunto adiante.

“O déficit habitacional no Estado do Piauí é de 153.527 moradias, de acordo com o estudo encomendado pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC). Os dados divulgados recentemente têm como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua/IBGE) no ano de 2019” [2]. Por outro lado, segundo o Censo 2010, “existem 121.186 domicílios vagos” [3]. Dados como esses foram amplamente divulgados por parte da esquerda, em disputas eleitorais por prefeituras municipais. Candidatos como Pedro Laurentino [4] e Guilherme Boulos [5] são exemplos recentes.

Por falar em institucionalidade, historicamente a luta pela moradia via “eleitoral” pouco contribuiu, de forma concreta, para a resolução desse déficit. Ao contrário, os números continuam expressivos e indicam um aumento irrefreável em todas as cidades brasileiras. O Estatuto da Cidade – proposto pela Lei Federal nº 10.257, de 10 de junho de 2001 – evidentemente está longe de ser justificado, caindo por terra qualquer esperança nas instituições democráticas (burguesas), por parte da população desabitada. Ainda que programas nacionais como o “Minha Casa, Minha Vida”, com todos os seus problemas (podemos comentar em outra ocasião), tenham contribuído com a “tímida” redução de danos dessa “injustiça” e mereçam a nossa atenção, a escassez ainda parece estar longe de ser superada.

Engels, em seu atualíssimo “Sobre a questão da moradia”, já nos chamava atenção para essa mazela social, justificando-a através do modo produção, que, seguindo a sua própria lógica, trava um conflito entre forças produtivas e relações de produção. Trata-se de um conflito que se universaliza no modo de produção capitalista e que, desde o seu surgimento, incentiva a propriedade privada, restringindo a propriedade a poucos indivíduos (os burgueses); por outro lado, condena os trabalhadores (maioria esmagadora) a uma proletarização, que não os permite nem mesmo proverem às suas necessidades básicas.

“Essa escassez de moradia não é peculiar da época atual; ela não é nem mesmo um dos sofrimentos peculiares do proletariado moderno em comparação com todas as classes oprimidas anteriores; pelo contrário, ela atingiu todas as classes oprimidas de todos os tempos de modo bastante homogêneo. Para pôr um fim a essa escassez de moradia só existe um meio: eliminar totalmente a espoliação e a opressão da classe trabalhadora pela classe dominante” [6].

Falamos da zona sul de Teresina. Na zona norte, a comunidade “Boa Esperança” – também originária de uma ocupação urbana –, considerada pelos próprios moradores um território indígena e quilombola, tem lutado diariamente contra as ofensivas da classe dominante. Ano passado (2020), o PCB-PI ajudou a denunciar uma ação truculenta da polícia sobre um morador da comunidade que teve seu terreno invadido, sob a justificativa de reintegração de posse. Conta-se que, além disso, há problemas como: falta de saneamento, emprego, alimentação, ameaça de despejo, etc., os quais se materializam diariamente, frente à resistência dos moradores corajosos.

Sobre a superestrutura, Marx, em seu “Prefácio para a Crítica da Economia Política”, aponta:

“[…] na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas da consciência social.” [7]

Como sugere o alemão crítico da economia política, o desenvolvimento desenfreado da produção capitalista se alastra pelo mundo em países centrais e periféricos, consolidando uma superestrutura de natureza ideológica (política e jurídica) que, apoiada em seu conjunto das relações de produção, é capaz de negar, concretamente, as lutas por moradia – incentivadas pelo crescimento urbano do desenvolvimento industrial do próprio capitalismo. Vale lembrar que esse desenvolvimento se realiza de forma desigual nesses países, gerando uma dependência (subordinação) econômica entre eles.

Engels, se utilizando da mesma alegoria marxiana, complementa:

“De acordo com a concepção materialista da história, o elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida real. […] As condições econômicas são a infra-estrutura, a base, mas vários outros vetores da superestrutura (formas políticas da luta de classes e seus resultados, a saber, constituições estabelecidas pela classe vitoriosa após a batalha, etc., formas jurídicas e mesmo os reflexos destas lutas nas cabeças dos participantes, como teorias políticas, jurídicas ou filosóficas, concepções religiosas e seus posteriores desenvolvimentos em sistemas de dogmas) também exercitam sua influência no curso das lutas históricas e, em muitos casos, preponderam na determinação de sua forma.” [8]

É inegável que, diante de tal modo de produção, alternativas políticas institucionais são injustificáveis, uma vez que, hegemonicamente, a classe dominante é soberana nesse aspecto. No entanto, as massas parecem ter encontrado um ponto de partida na própria realidade, onde essa contradição entre capital e moradia é exposta e combatida, ainda que de forma espontânea e sem a plenitude do Poder Popular. Esse poder parte de casos particulares, mas só é efetivado mediante a construção de um partido político centralizado, que promova a sua universalização, bem como a ruptura da dinâmica produtiva antiga.

Tal poder, dizemos, em sua plenitude, é a classe trabalhadora enfim soberana na sua própria produção, organizada em blocos, cooperativas, conselhos, associações, movimentos, etc., associada a um partido centralizado capaz de mediar politicamente esse poder, com um arcabouço teórico-prático, e portanto, histórico, das lutas desses trabalhadores e trabalhadoras e que tenha em seu horizonte o socialismo, no rumo da emancipação humana.

“O que está em causa é, pois, o estabelecimento do Poder Popular que afirma a nossa independência e personalidade e liquida a exploração, o que implica a destruição do Poder dos exploradores que a fomenta”. [9]

[*] Secretário de Finanças da UJC-PI, militante do PCB-PI e graduando em História pela UESPI

Referências:

[1] https://www.marxists.org/portugues/marx/1873/habita/cap01.htm

[2] https://cidadeverde.com/noticias/338458/deficit-habitacional-no-piaui-chega-a-mais-de-153-mil-moradias-diz-estudo

[3] https://cidadeverde.com/noticias/69512/piaui-tem-121-mil-casas-vazias-e-124-mil-familias-sem-habitacao#:~:text=No%20Piau%C3%AD%2C%20segundo%20o%20Censo,vagos%2C%2020.349%20est%C3%A3o%20em%20Teresina.

[4] Candidato em 2020 pela UP-PI à prefeitura de Teresina, PI.

[5] Candidato em 2020 pelo PSOL-SP à prefeitura de São Paulo, SP.

[6] https://www.marxists.org/portugues/marx/1873/habita/cap01.htm

[7] https://www.marxists.org/portugues/marx/1859/01/prefacio.htm

[8] https://www.marxists.org/portugues/marx/1890/09/22-1.htm

[9] https://www.marxists.org/portugues/machel/1974/mes/poder.htm

Foto: O DIA, Teresina, p.6, 04 jun. 1998.