Por um aplicativo dos entregadores!
Foto: Gabriela Moncau
Os entregadores de aplicativo precisam de um aplicativo dos entregadores!
NCF – militante da UJC
Faz quase uma semana que os entregadores foram às ruas do interior de São Paulo, não para entregar o hambúrguer gourmet de algum metido a investidor, mas sim para executar exemplarmente uma verdadeira greve que se alastra e inspira entregadores Brasil afora (os sindicatos pelegos das direções petistas e pcdobistas poderiam aprender algo com estes trabalhadores… mas este é um assunto para outro dia…).
O que querem os grevistas? Viver. Como? Com dignidade. Dignidade esta negada a eles através de práticas de exploração sem limites pelas empresas como Ifood, Rappi e dezenas de outras empresas e aplicativos nascidos na onda da assim chamada “Nova Economia” (do inglês Gig Economy, literalmente “Economia dos Bicos”), que de “nova” não tem nada.
Os entregadores das cidades de Jundiaí, Paulínia, São José dos Campos, Niterói, São Gonçalo e muitas outras se organizam e demandam o aumento da taxa mínima de 5 para 10 reais, o fim das exclusões injustas e o fim da “dupla entrega” (entrega de duas ou mais encomendas simultaneamente pela remuneração de apenas uma). Além disso, querem melhores condições de trabalho em geral e o fim da exploração pelo Ifood.
Para o pavor de quem suplica em negar toda a rica história da tradição marxista e clama que “Marx está ultrapassado por seus escritos datarem mais de 150 anos”, tenho uma má notícia: a uberização das relações de trabalho nada mais é do que a implantação do “salário por peça” no atual estágio do desenvolvimento do capitalismo que chamamos de neoliberalismo. Isso mesmo, a forma de relação social praticada por empresas como Uber e Loggi foi descrita por Marx há mais de 150 anos em seu livro “O Capital”, em especial no capítulo intitulado “O salário por peça”:
“Na realidade, o salário por peça não expressa diretamente nenhuma relação de valor. Não se trata de medir o valor da peça pelo tempo de trabalho nela incorporado, mas, ao contrário, de medir o trabalho gasto pelo trabalhador pelo número de peças por ele produzido. No salário por tempo, o trabalho se mede por sua duração imediata; no salário por peça, pela quantidade de produtos em que o trabalho se condensa durante um tempo determinado.” – O Capital volume I, página 761
Trocando-se “peça” por “entrega” temos a mais pura verdade sobre essa “nova” modalidade de trabalho no capitalismo. A remuneração do entregador não é definida pelo quanto de tempo ele gastou trabalhando, mas sim pelo número de entregas que realizou. A diferença óbvia entre o período que Marx escreveu sobre o tema e a nossa realidade contemporânea é o nível de desenvolvimento tecnológico que permitiu a existência de plataformas digitais cuja alocação do trabalhador é feita instantaneamente e sob demanda. Todavia, isso não muda a essência dessa relação de trabalho: a forma salário por peça (entrega).
Marx continua:
“Observemos mais de perto, agora, as peculiaridades que caracterizam o salário por peça. A qualidade do trabalho é controlada, aqui, pelo próprio produto, que tem de possuir uma qualidade média para que se pague integralmente o preço de cada peça. Sob esse aspecto, o salário por peça se torna a fonte mais fértil de descontos salariais e de fraudes capitalistas.” – O Capital volume I, página 761
Este trecho reflete uma das principais mazelas enfrentadas pelos trabalhadores de aplicativos. Voltando ao exemplo do primeiro parágrafo: se durante a entrega, o lanche acaba por virar dentro da mochila do entregador (algo que é quase impossível de impedir na maioria dos casos de trânsito), seu salário é descontado. Furou um pneu e não entregou? Seu salário é descontado. Havia trânsito, demorou e a comida esfriou? Seu salário é descontado. O metido a investidor te achou grosseiro por você não ter sorrido? Seu salário é descontado. Tudo isso demonstra o injusto requisito de qualidade imposto aos entregadores que, muitas vezes, não conseguem cumprir. Até Kant estaria chateado. Pois, pelo visto, ninguém respeita seu princípio de “dever implica poder”.
Marx ainda explica a existência dos “operadores logísticos”, empresas que contratam entregadores e prestam serviço ao ifood em contrapartida do modelo em que os entregadores são diretamente empregados pelo Ifood:
“O salário por peça facilita, por um lado, a interposição de parasitas entre o capitalista e o assalariado, o subarrendamento do trabalho (subletting of labour). O ganho dos intermediários advém exclusivamente da diferença entre o preço do trabalho pago pelo capitalista e a parte desse preço que eles deixam chegar efetivamente ao trabalhador” – O Capital volume I, página 762
Os “operadores logísticos” não passam de parasitas explorando ainda mais os entregadores e dando ao Ifood mais uma “defesa jurídica”, para afirmar que os entregadores não são seus funcionários, no máximo são funcionários dos “operadores logísticos”.
As empresas de aplicativo, com toda essa relação de exploração sem direitos, ao não pagar um salário digno por uma jornada de trabalho razoável, ainda se aproveitam dos interesses dos próprios trabalhadores de não quererem viver na miséria e de fazer o possível para ter um pouco mais:
“Dado o salário por peça, é natural que o interesse pessoal do trabalhador seja o de empregar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista a elevação do grau normal de intensidade. É igualmente do interesse pessoal do trabalhador prolongar a jornada de trabalho, pois assim aumenta seu salário diário ou semanal. Com isso, ocorre a reação já descrita no caso do salário por tempo, abstraindo do fato de que o prolongamento da jornada de trabalho, mesmo mantendo-se constante a taxa do salário por peça, implica, por si mesmo, uma redução no preço do trabalho.” – O Capital volume I, página 762-763
Ou seja, pela própria vontade individual de cada trabalhador de não ser paupérrimo, pela própria vontade de viver uma vida melhor e verdadeiramente digna, este trabalhador se sujeita a jornadas cada vez mais prolongadas e intensidades de trabalho cada vez mais agudas. É justamente esse mecanismo que explica a razão de os entregadores se sujeitarem a, por exemplo, pilotar perigosamente sua motocicleta para tentar aumentar o número de entregas por dia de trabalho. Eles o fazem não por ganância, não por imprudência, não por não valorizarem suas vidas (muito pelo contrário), mas pela necessidade. O perigo que existe na profissão é imposto a eles por uma necessidade econômica, e, na realidade, eles não têm escolha. Pois se eles decidem por não correr o risco da direção perigosa, eles correm o risco do desconto salarial pela demora na entrega e correm o risco de a remuneração ser diminuída pelo “baixo” rendimento. O risco de ficar sem o sustento necessário é pior que o risco imposto à sua integridade física. Logo, isso não passa de uma falsa escolha, pois a única opção é trabalhar cada vez mais intensamente por cada vez mais tempo.
Mas afinal, como podemos sair desse buraco? Primeiramente, gostaria de pontuar que a luta dos entregadores é na verdade uma instância da luta de classes multipartida entre os capitalistas que são os donos dos meios de produção (os donos do Uber, do Ifood, etc…), os trabalhadores do setor de tecnologia que criaram e mantêm a infraestrutura tecnológica, os trabalhadores do setor de entregas sujeitos a imensos níveis de exploração pela forma “salário por peça” e os restaurantes, cuja grande maioria são empresas familiares que mal conseguem se sustentar com as taxas cobradas e cupons de descontos abusivos.
Que fique bem claro: aqui não existe exploração entre os trabalhadores de tecnologia e os trabalhadores de entregas. Na verdade ambos são explorados pelo capitalista. Acontece que a profissão dos trabalhadores de tecnologia tem salários bem mais altos, que podem dar a ilusão de que não são explorados. ATENÇÃO, LIBERAL DE PLANTÃO: isto não é verdade. Na forma atual, os entregadores são os mais explorados pelo já explicado “salário por peça”, enquanto os trabalhadores de tecnologia são os menos explorados pelo tradicional e conhecido “salário por tempo”. Mas existem movimentos progressivos dentro do setor de tecnologia para igualar essa situação e tornar os trabalhadores de tecnologia sujeitos à exploração do salário por peça também.
Na realidade, o que emerge dessa observação é que a luta dos entregadores está umbilicalmente ligada à luta dos trabalhadores de tecnologia. Não serão os entregadores sozinhos que terão a capacidade de superar sua exploração. Tão somente, não serão os trabalhadores de tecnologia sozinhos que vão conseguir se emancipar. Apenas através da solidariedade de classes entre os trabalhadores de tecnologia e os trabalhadores de entregas será possível que um novo horizonte de superação se torne viável.
Estou falando aqui da criação de um aplicativo dos entregadores. Uma forma de construção coletiva que exige tanto entregadores como trabalhadores de tecnologia. Imagine: e se o Ifood fosse “nosso”? E se tivéssemos o “Quebrada Entregas”? E se o lucro do Ifood pudesse ser despendido no aumento da remuneração dos entregadores, na criação de cozinhas comunitárias espalhadas pela cidade para que os entregadores possam se alimentar durante o expediente de trabalho, banheiros, centro de lazer para tirar o estresse do trânsito, e o mais importante de tudo: imagina se os entregadores pudessem decidir sobre tudo isso de forma coletiva e administrar seu próprio aplicativo, que possibilitaria isso tudo?
A construção de um aplicativo como esse exigiria bastante organização e muito empenho de muitos trabalhadores, mas é plenamente possível. 16 trabalhadores de tecnologia despendendo 5 horas de trabalho por semana por 2 anos conseguiriam construir um aplicativo até superior ao Ifood. Além disso, a coordenação desses trabalhadores de tecnologia com os entregadores e restaurantes é fundamental para compreender como o app poderia ser diferente para facilitar a vida de todos.
Mas você pode se perguntar: como os restaurantes entrariam nessa? Para isso tenho duas respostas. Os restaurantes são também extremamente explorados pelo Ifood. A grande maioria dos restaurantes são negócios familiares (como a lojinha de mercado na esquina de casa) que não lucram muito e o lucro desses estabelecimentos serve primordialmente para o sustento familiar. O Ifood chega a cobrar uma taxa de 30% da receita desses restaurantes,inviabilizando completamente e precarizando o rendimento familiar desses pequenos estabelecimentos. Ou seja, se a plataforma dos entregadores cobrar uma taxa menor que a do Ifood, nenhum restaurante ficaria de fora. Além disso, a segunda resposta é que nada impede os entregadores de construírem cozinhas para fomentar seu próprio aplicativo.
Sem dúvidas tal empreitada exigiria muita organização e a inclusão de diversos grupos diferentes. Pessoalmente, acredito que a criação de uma Liga dos Entregadores com âmbito nacional cujo objetivo seja a emancipação dos entregadores seja o caminho necessário para que as reivindicações dos entregadores sejam efetivamente atendidas.
O primeiro grande objetivo dessa Liga seria a organização dos trabalhadores entregadores e de tecnologia e negócios familiares para a construção de um aplicativo dos entregadores. Para isso, a Liga exigiria uma disciplina partidária se utilizando de técnicas de organização leninistas como o centralismo-democrático, entre outros mecanismos de disciplina partidária para efetivamente atingir seus objetivos. A Liga também cumpriria um papel fundamental de formação e construção da consciência de classe dos entregadores, fazendo ainda mais entregadores se agregarem na luta contra a exploração dos aplicativos de entrega.
Contudo, queria terminar dizendo que o Aplicativo dos Entregadores não deveria e nem pode ser um fim em si mesmo. Não podemos perder a compreensão de que essas empresas de aplicativos são fruto do capitalismo e que o capitalismo explora todos os trabalhadores, independentemente do setor. Além disso, é primordial compreender que mesmo se atingíssemos o objetivo de criar um aplicativo dos entregadores, não estaríamos ainda livres, pois seríamos apenas um aplicativo ainda inserido num contexto capitalista de exploração que poderia ser facilmente destruído pelos capitalistas pelos meios mais sujos e injustos que existem. Então por isso, a Liga dos Entregadores deveria ser também uma organização comunista. Ou seja, que o objetivo final desta Liga dos Entregadores Comunistas seja o fim da exploração de todo o trabalho: a revolução brasileira como primeiro passo na construção do socialismo.
Então, entregadores, eu os convido a adicionar essa pauta às suas reivindicações. Está na hora de termos um aplicativo só nosso, um aplicativo onde quem manda são os próprios entregadores! Trabalhadores de aplicativos de todo o Brasil, uni-vos!