O renascimento do materialismo dialéctico no coração do antagonismo entre revolução e contra-revolução no séc. XXI*
A História do tempo presente vai obrigar os Homens, e antes de mais a vanguarda efectiva do movimento popular, da investigação científica e da criação cultural, a regressar à dialéctica materialista.
O renascimento do materialismo dialéctico, elemento estratégico de uma hegemonia progressista em gestação
É salutar que o país de Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal tenha a iniciativa de se reapropriar da filosofia marxista de forma progressista. Tendo a minha comunicação, um pouco generalista, que caber em 20 minutos, resolvi esta contradição redigindo um texto, que passarei a ler, e dando-lhe um tom claramente assertórico. Neste momento, estou a acabar um tratado sobre o materialismo dialéctico que, assim espero, oferecerá aos auditores ansiosos por provas, os elementos demonstrativos que a brevidade do tempo desta comunicação não me permite fornecer. Para contextualizar o meu discurso, gostaria de colocar a minha intervenção sob os auspícios do filósofo Georges Politzer. Este herói da resistência comunista francesa declarou, pouco tempo antes de ser fuzilado pelos nazis que «a independência intelectual, o espírito crítico, não consiste em ceder à reacção mas a NÃO lhe ceder».
Gostaria, para começar, de restituir, em traços largos, as aventuras e desventuras do materialismo dialéctico
Podemos constatar que, grosso modo, o materialismo dialéctico, totalmente ignorado pelas universidades no início do século, conheceu um reforço a nível mundial nos anos que se seguiram à Revolução de Outubro, na época das Frentes Populares antifascistas e nos anos que se seguiram à II Guerra Mundial, graças ao papel universalmente reconhecido, do exército vermelho no esmagamento da Wehrmacht e à construcção do primeiro bloco socialista da História. Simultaneamente, um tal protagonismo foi acompanhado de uma vulgarização e de uma dogmatização que, quando o «culto da personalidade» foi denunciado na URSS, se traduziu numa tendência inversa, a de denegrir tudo o que havia sido até então adorado, o revisionismo ideológico ganhando face ao dogmatismo do período jdanovista. Nos anos 60, os marxistas emanciparam-se das formas dogmáticas mas o marxismo, por assim dizer, «babelizou-se» em França, com, por exemplo, as intensas lutas entre os seguidores de Garaudy, Althusser e Lucien Sève, sendo que o último evoluiu de uma posição de guardião inventivo da ortodoxia para uma posição de crescente exteriorização em relação à palavra «marxismo», que de resto já não assume, o que deve ser compreendido pela sua rejeição da forma-partido saída da Terceira Internacional. Hoje em dia, se alguns filósofos franceses ainda se referem ao marxismo, raramente o fazem para se referir ao materialismo dialéctico e aos seus conceitos mais marcantes, tal como a dialéctica da natureza ou a categoria do reflexo. Isto para não falar do aspecto político : Alain Badiou chega mesmo a rejeitar, tal como Sève, a forma-partido, e também, explicitamente, a forma leninista do comunismo e do marxismo. Isto para não falar dos teóricos da «Actuel Marx » que comungam na rejeição de tudo o que possa, de perto ou de longe, evocar a produção teórica ligada ao marxismo-leninismo em geral e particularmente os escritos do bloco socialista.
Arriscamo-nos assim a uma ruptura na herança, que é, do nosso ponto de vista, tão mais nociva quanto e a História do tempo presente vai, na nossa opinião, obrigar os Homens, e antes de mais a vanguarda efectiva do movimento popular, da investigação científica e da criação cultural, a regressar à dialéctica materialista.
E se a herança se rompe, não apenas a herança dos aspectos dogmáticos, mas de tudo o que houve de grandioso e luminoso, teremos de tudo reinventar, inclusivamente os erros pois, como todos sabem, os que esquecem a sua História estão condenados a repeti-la, de forma ainda pior.
É por isso que gostaria de sublinhar vivamente o quão necessário é um retorno ao coração da filosofia marxista, a esse materialismo dialéctico que Engels não inventou, cuja tradição remonta a Heraclito de Éfeso, mas que os fundadores do marxismo pensaram e articularam conscientemente, ligando-o ao materialismo histórico, à dialéctica hegeliana repensada de forma materialista, à crítica da economia capitalista e ao movimento geral das ciências da natureza. O coração desse materialismo dialéctico, que pretendemos desenvolver, é a tese segundo a qual, para citar Lénine, «a dialéctica é o estudo da contradição na essência das coisas », as dialécticas conceptuais não sendo, em última análise, mais do que a reapropriação, por mais construída e mediatizada que seja, destas contradições materiais.
Gostaria de mostrar qual a actualidade deste ponto de vista materialista dialéctico em diversos domínios.
Comecemos por mostrar a utilidade do método materialista dialéctico no campo das lutas ideológicas
Todos os militantes do movimento popular, todos os sindicalistas, necessitam da dialéctica materialista para, como diria Kant, «se orientar no pensamento». Viso aqui nomeadamente a luta contra a «novilíngua», da qual produzi uma crítica desde 1995 no meu livro «Mundialização capitalista e projecto comunista».
Um pouco por todo o lado, os ideólogos neo-liberais apresentam-nos como uma evidência o facto do grande patronato ser partidário de «reformas» e da «modernidade», enquanto que o movimento popular seria o advogado temeroso e passadista dos «arcaísmos». Já na época da perestroika de Gorbatchev, que o povo russo baptizou depois «catastroika», o ideólogo-mor Yakovlev denunciava como «conservadores» aqueles que queriam salvar e transformar as relações de produção socialistas na URSS ; inversamente, apresentava aqueles que queriam restaurar a propriedade capitalista como «renovadores» e «progressistas». A este idealismo formalista, que se limita voluntariamente à questão « a favor ou contra a mudança ?», independentemente do seu conteúdo de classe, os militantes e os intelectuais realmente revolucionários respondiam então, segundo um ponto de vista materialista e de classe : mudança para quem, para que classe ? Democracia e pluralismo para que classe ? É pondo assim o conteúdo de classe materialista em primeiro plano que podemos evitar o mais grave erro que se pode cometer politicamente e que consiste em confundir a direita e a esquerda, a revolução e a contra-revolução, a renovação do socialismo com a vitória mundial do capitalismo actualmente re-globalizado sobre as ruínas do sistema socialista, cujos defeitos burocráticos foram conservados e agravados pela anexação capitalista sofrida pelos países de leste, enquanto que as aquisições sociais fundamentais para as massas e para a co-relação de forças a nível mundial foram varridos pela expropriação capitalista das massas populares.
Um ponto de vista dialéctico é igualmente necessário para não cair no cesto contra-revolucionário. Seria efectivamente catastrófico para um intelectual progressista ou para um militante operário situar-se apenas em termos de «a favor ou contra a mudança». É evidente que, para salvar o socialismo, era TAMBÉM necessário alterá-lo profundamente, devolvendo o poder, roubado pela nomenklatura, aos trabalhadores. Da mesma forma, hoje em dia, nos nossos países, a escolha não é entre imobilismo e reforma. Tal como os inimigos dos povos sabem, à maneira do «Leopardo» de Lucchino Visconti, «mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma», a defesa do socialismo não pode ser bem-sucedida sem um compromisso comunista para a transformação do socialismo existente. É necessário então ultrapassar o «ou…ou», característico do modo metafísico de pensar, para opor, não as abstracções ocas que são «o» conservadorismo e «o» modernismo, mas antes, por um lado, o conservadorismo social das classes dominantes assente sobre as suas contra-reformas, e por outro, o dinamismo dos militantes populares que se apoia na defesa das conquistas populares para melhor revolucionar as relações capitalistas de exploração. Mas para isso é necessário pensar dialecticamente sem opor abstractamente «a» mudança à conservação.
II – Prossigamos esta reflexão materialista dialéctica reflectindo sobre questões mais directamente políticas
A) E, antes de mais, pensemos as relações dialécticas entre patriotismo e internacionalismo no contexto da mundialização neo-liberal e da «construção europeia» capitalista
Ao chegar a Lisboa, vi que o PCP tinha afixado nas paredes este slogan, tão dialéctico, «por uma política patriótica e popular». Bom, em França, esta dialéctica que leva a associar, e não a opor, o patriotismo e o progressismo, nem sempre é evidente à esquerda e será inútil dizer-vos o quanto esta oposição da bandeira vermelha à bandeira nacional, que suportamos há décadas, e que põe frente a frente, de forma desastrosa, uma esquerda ultra-europeísta e uma direita ultra-nacionalista, é útil à extrema-direita que recupera tranquilamente, para a desviar e sujar, a bandeira tricolor da França. Na verdade, não há de uma lado «o» patriotismo e de outro «o» internacionalismo. Esta oposição metafísica e sem conteúdo de classe obriga-nos a escolher entre, de um lado, o nacionalismo xenófobo dos sectores abertamente fascistas e, do outro, o internacionalismo da finança e das suas criaturas, os Barroso, Lagarde, Strauss-Kahn e companhia, e isto num momento em que a Europa de Barroso se apoia precisamente na extrema-direita para canalizar o descontentamento popular com a U.E. e o seu funesto euro, não contra a classe capitalista, mas contra os trabalhadores imigrantes e as minorias religiosas. Na verdade, a análise concreta da mundialização capitalista e da funesta «construção europeia» neoliberal leva-nos a constatar que, de um ponto de vista materialista-dialéctico, as coisas opõem-se objectivamente numa linha de classe, mesmo se há poucos que se apercebam disso : objectivamente, materialmente, há de um lado o euro-cosmopolitismo neoliberal aliado à reacção nacionalista, ambos convergindo na ideia de uma Europa branca e do choque das civilizações, enquanto, do outro lado, como nos ensinaram a revolução chinesa, cubana, vietnamita, angolana, etc., há o patriotismo republicano aliado ao internacionalismo proletário. Assim, há, por um lado, que dialectizar patriotismo e internacionalismo e, por outro, que os materializar, dando-lhes um conteúdo de classe determinado.
B) Uma aproximação materialista-dialéctica da ecologia
No campo da ecologia, a ideologia dominante quer forçar os progressistas a escolher entre natureza e técnica. Ora, o próprio materialismo histórico tem a sua origem numa dialéctica da natureza e da História cujo objectivo é fundar o materialismo histórico, demonstrando que, como escreveram Marx e Engels, «os homens começam a distinguir-se dos animais a partir do momento em que começam a produzir os seus meios de subsistência, evolução que surge como consequência da sua organização corporal. » Para simplificar, é na sequência de uma evolução anatómica natural que o homo sapiens começa a romper com a ordem natural, produzindo objectos artificiais que, transmitindo-se de geração em geração, se tornaram a base da cultura. Por meio do trabalho humano, a cultura é portanto a filha des-naturalizada…da natureza. Mas o que se passa na nossa época senão que a produção humana, tendo atingido um determinado grau de desenvolvimento (e desviada dos seus verdadeiros propósitos pela corrida capitalista ao super-lucro), se vê obrigada a ocupar-se artificialmente da reprodução dos seus meios naturais de subsistência : tal é o significado altamente cultural e técnico da ecologia, que nada tem a ver com um qualquer decrescimento ou retorno a um estado natural. Para além disso, para que a humanidade se possa encarregar das condições da sua existência natural e gerir a sua relação à terra, ao ar, à água e à energia, é necessário ultrapassar o que ainda há nela de selvagem : este «guerra de todos contra todos» que o capitalismo re-mundializado exacerba, bem como a construção europeia ultra-liberal. Para que o Homem saia da pré-História, para que ele se torne capaz de cultivar a natureza como natureza, para que ele reconcilie Gaia e Prometeu, é necessário que os Homens ultrapassem a pré-História que está neles, e que, para isso, se submetam colectivamente à razão, que parem de se submeter à «livre concorrência» do liberalismo oligárquico e que, inversamente, planifiquem e organizem as suas relações com os outros e com os recursos naturais ; ora isto é impossível fora de uma sociedade sem classes, de uma mundialização comunista no verdadeiro sentido da palavra. Não há portanto qualquer necessidade de «reconciliar» o comunismo com a ecologia, a negação da negação através da qual a cultura se desnaturaliza para cultivar a natureza fazendo um só corpo com o projecto comunista.
Dialéctica do exterminismo e do anti-exterminismo
Em 1984, em plena crise dos euromísseis, avancei com a ideia iconoclasta de que o exterminismo é o estádio supremo do imperialismo. Pretendia então dizer que, objectivamente, a manutenção do capitalismo torna-se tendencialmente incompatível com a sobrevivência da humanidade enquanto humanidade e que, subjectivamente, o capitalismo se torna capaz, para se manter, de arriscar das mais variadas formas a sobrevivência da espécie. Lembremo-nos que na época, a reacção alemã ao receber os Pershings apontados à URSS, era «liber tot, als rot», antes mortos que vermelhos. Na mesma época, o pseudo-filósofo francês André Glucksmann ousava escrever, em «A força da vertigem» : «prefiro morrer, juntamento com o meu filho, do que imaginá-lo arrastado para uma qualquer Sibéria planetária». Pois bem, para grande vergonha do marxismo oficial, a maioria dos marxistas esconderam o enorme perigo que a cruzada anti-soviética de Reagan e do imperialismo norte-americano fazia correr à Humanidade. Alguns explicavam-nos que, de Moscovo a Paris, a «guerra nuclear já não funcionava», que, na nossa época, a teoria de Engels e Lénine sobre a guerra estava ultrapassada pois, como diziam Gromyko ou Pierre Juquin, «a guerra de extermínio não tem significado político, pois destrói ambos os beligerantes.» Manifestamente, os nossos marxistas nunca leram Kant, que fazia da conjuração da guerra de extermínio o imperativo categórico de toda a política internacional. Não compreendendo a natureza exterminadora do capitalismo contemporâneo, esta « reacção em toda a linha » de acordo com as palavras de Lenine, múltiplos pensadores revisionistas não compreenderam o significado do Gorbatchevismo, esse exterminismo invertido e interiorizado, cuja palavra de ordem central, baptizada de «novo pensamento político», declarava que, na nossa época «devemos preferir os valores universais da humanidade aos interesses de classe do proletariado». Ou seja, que devemos recuperar o slogan exterminista de Reagan para o inverter e declarar «antes não vermelhos que mortos», frase que esteve no cerne da política de Gorbatchev. Desta forma, a recusa da dialéctica materialista no que toca à guerra e à paz, a recusa precipitada da célebre frase de Clausewitz segundo a qual «a guerra é a continuação da política por outros meios» não permitiu a compreensão da relação entre o exterminismo capitalista, política de cruzada nuclear contra a URSS, e a contra-revolução na URSS. Na mesma época, o marxista Fidel Castro respondia a Gorbatchev : «há a democracia dos ricos e a democracia dos pobres». E Fidel terminava todos os seus discursos às massas, nos anos 80/90, pela fórmula «socialismo ou morte», um slogan que devemos compreender não apenas na sua dimensão heroica, mas também na sua dimensão objectivamente anti-exterminista : dada a natureza intrinsecamente mortífera do capitalismo contemporâneo, não podemos evitar o declínio, a desumanização, mesmo a exterminação da humanidade, sem sair do capitalismo. Conceber dialecticamente, na sua continuidade e no seu conteúdo de classe, as relações entre a política imperialista e as cruzadas exterministas de Reagan, teria permitido compreender a continuidade política objectiva entre o exterminismo capitalista e a contra-revolução soviética, o social-pacifismo de Gorbatchev que prolongava e interiorizava a política imperialista no próprio interior do sistema, a implosão final da URSS podendo assim ser compreendida como resultado de uma luta de classes e não, como o fizeram tantos observadores superficiais, como a simples decomposição do «modelo» bolchevique. Castro compreendeu o essencial desta dialéctica da contra-revolução e do exterminismo, e assim, não somente resistiu à morte do colosso soviético des-marxizado, mas desenhou implicitamente o significado do comunismo do século XXI : a de um anti-exterminismo consequente que, longe de opor os «valores universais» à luta de classes, mostra respectivamente o alcance universal, pacifista, ecológico e científico de um comunismo de nova geração e mostra também que não há apenas um universalismo, que a universalidade fétida do capital financeiro, disfarçada de «humanitarismo» e de «direito de ingerência» é o absoluto oposto de um universalismo concreto, que associe o interesse de classe mundial do proletariado à defesa de todas as nações e de todas as línguas, da diversidade cultural mundial.
III – Terminaria esta intervenção com um apelo ao necessário ressurgimento da dialéctica da natureza
A) Estamos na véspera de uma revolução científica na física e na cosmologia. Com o impacto dos novos meios teóricos e experimentais de investigação do macrocosmo e do microcosmo, as ciências físicas tendem a fundir-se : com efeito, para conhecer a estrutura das partículas, é necessário estudar o início do universo actual e, inversamente, para compreender os destinos do universo, é preciso estudar a natureza e a interacção das forças fundamentais na escala infinitesimal. Esta revolução é igualmente necessária para que a humanidade possa, no futuro, dominar o seu devir energético, inclusivamente se seguir a via de uma sociedade pós-capitalista. Ora esta revolução científica não embate apenas em obstáculos técnicos que podem ser progressivamente ultrapassados, mas também em obstáculos epistemológicos de natureza filosófica.
Vemos repetidamente as revistas científicas, e diversos investigadores, opor a matéria à energia, a substância ao campo, o real ao possível, a realidade objectiva à acção experimental sobre as partículas – Kant diria a «coisa em si» ao «fenómeno» – a historicidade do devir à ideia das leis racionais do universo. Tais aporias, que abrem permanentemente caminho ao criacionismo, não podem ser superadas sem uma renovação da dialéctica da natureza, que é a única a permitir compreender que a matéria não se «evaporou», como se acreditava no início do século, mas que, pelo contrário, a tese de Engels segundo a qual «não há matéria sem movimento nem movimento sem matéria» se enriquece e se aprofunda.
Esta dialéctica objectiva, que tem também uma dimensão ontológica, como o mostrou o físico e filósofo marxista Eftichios Bitsakis, deve ser constantemente associada à teoria materialista do conhecimento tal como Marx a desenvolveu na sua «Introdução à crítica da economia política» : Marx explica que não devemos escolher entre uma concepção passiva, empirista, do «reflexo», e uma forma idealista construtivista, pois em ciência, o conhecimento resulta de uma «reprodução do concreto pela via do pensamento». Nas investigações cosmológicas do alemão Martin Bojowald, na geometria não comutativa de um Alain Conne, no trabalho sobre a cosmologia de um Jean- Paul Lumient, nasce talvez uma nova figura da cientificidade : esta não irá mais opor, mas pelo contrário unirá de um modo inédito, nem especulativo, nem estritamente científico, a ciência e a filosofia materialista, sendo a questão a de compreender o que o físico G. Cohen-Tannoudji designa, de maneira assaz dialéctica como «matéria-espaço-tempo».
A dialéctica que aqui mais interessa é a da forma e da matéria. Já no início do século XX Lénine compreendera que a crise da física que então surgia provinha em grande parte de bloqueios metafísicos do pensamento científico. Confundindo a matéria com as formas sob as quais a antiga física mecanicista a conhecia, muitos pensadores como Ernst Mach, Ostwald ou Poincaré deduziam que «a matéria desaparece» porque, por exemplo, a massa deixa de ser o atributo universal sob o qual se pode surpreender os micro-objectos. Lénine pelo contrário mostrava que é preciso posicionar-se a igual distância do dogmatismo, que associa a ideia de realidade material às formas sob as quais se conhece a natureza ordinariamente, e do revisionismo, que nega a permanência e a objectividade da realidade material, sob pretexto que as formas do nosso conhecimento evoluem. Pelo contrário, há-que partir da unidade contraditória da forma e da matéria e compreender dialecticamente, e não mecanicamente, o velho preceito materialista de Lavoisier segundo o qual «nada de cria, nada se perde, tudo se transforma». O campo, o vazio quântico, a antimatéria, não são o outro radical do mundo material, mas formas paradoxais da existência: num certo sentido, a materialidade do ser está concentrada no prefixo «trans» do verbo «transformar».
b) Esta dialéctica da forma e da matéria é igualmente indispensável no domínio das ciências económicas e políticas
Da mesma forma que as revistas científicas repetem que a «matéria desaparece», é também repetido que «a classe operária desaparece», que «a luta de classes é um arcaísmo», que o neoliberalismo substitui o capitalismo monopolista de Estado, em suma, que a «modernidade» é inacessível às categorias de análise marxistas. E se, na realidade, como procurei mostrar num opúsculo filosófico acerca da economia política, o proletariado mudar de forma enquanto se alarga ao sector dos serviços ? E se, na realidade, o neoliberalismo e a sua PSEUDO-«concorrência livre» não forem senão o avatar do capitalismo monopolista de Estado em vias de globalização e de euro-continentalização ? E se, globalmente, no domínio político, os conceitos políticos centrais do leninismo, e nomeadamente a teoria marxista do Estado e do partido de vanguarda, esperassem uma reformulação que não fosse nem abandono revisionista nem repetição dogmática ? E se os marxistas, em vez de lamentarem a pretensa «falha» do pretenso «modelo» soviético, tivessem por tarefa pensar o leninismo no nosso tempo, um novo desafio leninista, único capaz de enfrentar claramente o enorme desafio que o capitalismo exterminista lança a toda a Humanidade ? E se, paradoxalmente, uma das tarefas centrais dos marxistas actuais não fosse lamentar-se infinitamente sobre a derrota do leninismo, mas estudar de modo preciso, como deve ser feito aquando da derrota de um exército, as lições políticas da contra-revolução ? Tentámos, pela nossa parte, fazer esta leitura revolucionária da contra-revolução num opúsculo intitulado «O Estado e a contra-revolução » .
Conclusão. Tenho consciência de que disse demasiado e demasiado pouco, ao sobrevoar cada tema, mas tomei conscientemente esse risco, porque penso que estamos na véspera de um renascimento global do materialismo dialéctico. Termino afirmando uma convicção que nasce da dialéctica do optimismo e do pessimismo tão querida de Gramsci : face às contradições que a nossa época acumula, época de passagem do capitalismo ao comunismo, no momento mesmo em que, monstruosamente, a primeira experiência socialista da história deu lugar à re-mundialização da exploração mais selvagem, o mundo do trabalho, a humanidade progressista, os investigadores que querem pensar o sentido do seu trabalho, e mesmo simplesmente o individuo que compreende que nenhuma actividade individual tem sentido se a sua nação, a sua classe social, a humanidade inteira correrem para o abismo da desumanização, terão cada vez mais de se reapropriar do materialismo dialéctico. É a isso que chamo «sabedoria da revolução», dessa revolução na sabedoria, um ideal chamado a reencontrar o sentido cívico inicial que lhe dava Tales e Sólon, perdendo o seu carácter apolítico burguês. O renascimento da filosofia marxista é indispensável para conceber um segundo Renascimento da humanidade numa época em que esta é obrigada a escolher entre a luta e a derrota, entre o socialismo de segunda geração e a barbárie definitiva, em suma, entre os dois «fins da história», o «final feliz», através da revolução e o mau final, o declínio e a exterminação. E para isso é necessário que os marxistas, ultrapassando aquilo a que Domenico Losurdo chama «a autofobia comunista», assumam de modo crítico a sua orgulhosa re-filiação no campo do materialismo dialéctico.
Obrigado.
Comunicação apresentada no Congresso « Marx em Maio »