Lançamento do livro O Velho Graça
Dentro das comemorações dos 120 anos do escritor Graciliano Ramos, que se completam no dia 27 de outubro próximo, a Boitempo Editorial está relançando, com novo projeto gráfico e caderno inédito de fotos, o livro O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos, de Dênis de Moraes. Publicado há 20 anos por ocasião do centenário de nascimento do romancista, o livro reconstitui a sua extraordinária trajetória pessoal, literária, intelectual e política. Graciliano foi militante histórico do Partido Comunista Brasileiro, ao qual se filiou em 1945, a convite do então secretário-geral, Luiz Carlos Prestes. A nova edição incluiu o prefácio original de Carlos Nelson Coutinho e vem acrescida de textos inéditos de dois especialistas na obra de Graciliano, os professores Alfredo Bosi, da USP, e Wander Melo Miranda, da UFMG.
O livro de Dênis de Moraes foi aclamado pela crítica e pela intelectualidade, tendo merecido resenhas assinadas, entre outros por Antonio Callado, Otto Lara Resende, Wilson Martins, Moacir Werneck de Castro, Fábio Lucas, Affonso Romano de Sant’Anna, Joel Silveira, Antonio Carlos Villaça, Muniz Sodré e Heráclio Sales. O velho Graça refaz a trajetória luminosa e sofrida de Graciliano com rigoroso e amplo trabalho de pesquisa, que resultou em texto ao mesmo tempo leve e erudito. Tendo como objeto de estudo um escritor aferrado ao seu tempo, Moraes desenha o pano de fundo de cinco décadas de grande efervescência política e de transformações aceleradas no processo modernizador do Brasil.
A garimpagem em arquivos públicos e privados de Rio de Janeiro, São Paulo e Alagoas, assim como as dezenas de testemunhos de amigos, parentes, artistas, intelectuais e companheiros de geração enriqueceram sobremaneira o trabalho. “Com argúcia de historiador e sensibilidade literária”, como sublinha Wander Melo Miranda, Dênis de Moraes traça a interligação entre as várias personas de Graciliano Ramos: o menino traumatizado pelas surras na infância; o jovem autodidata que lia Balzac, Zola e Marx em francês; o mítico comerciante da loja Sincera; o revolucionário prefeito de Palmeira dos Índios; o zeloso diretor da Imprensa Oficial e da Instrução Pública de Alagoas; o preso político no inferno da Ilha Grande; o escritor sufocado por apuros financeiros; o estilista da palavra na redação do Correio da Manhã; o fiel militante comunista que soube preservar a sua autonomia intelectual e literária, não se curvando às imposições do realismo socialista (a dogmática política cultural que o stalinismo impunha aos partidos comunistas aliados).
Sem cair na armadilha do biografismo, Dênis de Moraes recompõe a emergência dessa complexa figura, reconstituindo no percurso dialético de seus diversos momentos alguns dilemas fundamentais de nossa formação histórica. “Temos um Graciliano sem retoques: duro, mas apaixonado; frio e áspero na superfície da fala e do gesto, mas ardente e sempre humano na fonte da vida pessoal”, ressalta Alfredo Bosi, que também encontrou na biografia “o cruzamento de itinerários do homem capaz de refletir, como num jogo de espelhos, a somatória de vivências acumuladas: “a paixão pela palavra nele precedeu e acompanhou a opção política que, por sua vez, transcendeu (mas jamais renegou) a adesão partidária”.
Para Dênis de Moraes, remontar o quebra-cabeça de Graciliano assemelhou-se ao ofício de artesão, já que os fragmentos do passado precisavam ser pacientemente reunidos e dispostos com a máxima coerência possível. A necessidade de correlacionar peripécias, valores e sentimentos foi inspirada, segundo o autor, em uma passagem do prólogo de Memórias do cárcere. O escritor consciente, assinala Graciliano, não deve esquivar-se dos zigue-zagues e tumultos próprios de uma existência. “Tratei de averiguar convicções, dúvidas, anseios, vicissitudes e triunfos que definiram a jornada de Graciliano, a fim de estabelecer conexões com a esfera ficcional engendrada por ele. Nas tensões entre o homem, a atmosfera social e a criação literária recolhi pistas que me levassem às motivações familiares, afetivas, estéticas, ideológicas e políticas presentes em sua intervenção na realidade concreta”, completa Moraes. O resultado é uma história de projeções e influências, de paradoxos e contrastes, mas, sobretudo, de coerência na busca incessante do que é essencial à vida e à condição humana na passagem pela Terra.
Entre os acréscimos introduzidos na nova edição, Dênis de Moraes destaca especialmente dois. O primeiro diz respeito ao único encontro havido entre Graciliano e Getúlio Vargas, nos primeiros anos do Estado Novo. Relata o autor: “O Rio de Janeiro era uma cidade bem mais tranquila e segura, as pessoas tinham o hábito de sair após o jantar para dar uma volta pelas redondezas; não havia televisão a retê-las dentro de casa. De vez em quando, Vargas fazia isso no quarteirão do Palácio do Catete, sozinho, sem seguranças. Graciliano morava numa pensão da Rua Correa Dutra, a poucas quadras do Palácio, e também costumava caminhar por ali. Numa noite, os dois quase se esbarraram. Vargas reconheceu o escritor e o cumprimentou de passagem: “Boa noite.” Graciliano, que também notara a aproximação do presidente, passou por ele sem retribuir a saudação. O silêncio revelava a mágoa que Graciliano não escondia pelo governo de Vargas, que o prendera, sem processo ou culpa formada, durante dez meses e dez dias, entre 1935 e 1936, juntamente com intelectuais e políticos que se opunham à escalada repressiva que desembocaria na ditadura do Estado Novo.” Outro acréscimo relevante foi a carta que Graciliano chegou a redigir e jamais enviou ao então presidente Getúlio Vargas, em 1938. Um desabafo sobre as dificuldades enfrentadas durante e depois do período da prisão (entre 3 de março de 1936 e 10 de janeiro de 1937). A carta, de uma lauda, era respeitosa, ainda que com algumas ironias, como, por exemplo, ao qualificar Vargas como “meu colega de profissão”, numa alusão ao ingresso do ditador na Academia Brasileira de Letras com apenas um livro de discursos.
Sobre o autor de O velho Graça:
Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), sediado em Buenos Aires, Argentina. Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do CNPq e da FAPERJ. Foi contemplado pelo Ministério da Cultura de Cuba e pelo Instituto Cubano do Livro com o Premio Internacional de Ensayo Pensar a Contracorriente, em 2010. É autor e organizador de mais de vinte livros, dos quais oito foram editados no exterior (Argentina, Espanha, Cuba e México). Além de O velho Graça, publicou duas biografias de intelectuais e artistas de esquerda: Vianinha, cúmplice da paixão: uma biografia de Oduvaldo Vianna Filho (Rio de Janeiro, Record, 2000; São Paulo, Expressão Popular, no prelo) e O rebelde do traço: a vida de Henfil (Rio de Janeiro, José Olympio, 1996). Ainda, com Francisco Viana, Prestes: lutas e autocríticas (Petrópolis, Vozes, 1982; Rio de Janeiro, Mauad, 1998), obra baseada no único depoimento concedido pelo líder comunista Luiz Carlos Prestes sobre sua trajetória.