Gilmar Mauro: ‘Lula não fez reforma agrária, mas somente política de assentamentos’
O mês de abril se encerra e com ele mais uma edição da Jornada Nacional de Luta pela Reforma Agrária organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em entrevista ao Correio da Cidadania, Gilmar Mauro, dirigente nacional do movimento, analisa mais essa jornada, que reivindica o cumprimento das antiqüíssimas promessas de promoção de reforma agrária e apoio aos assentamentos.
No entanto, Gilmar ressalta que não é mais possível manter as reivindicações por distribuição de terras dentro dos parâmetros antigos, uma vez que o agronegócio e seus grandes grupos econômicos estão no controle de todo o processo produtivo, não se limitando somente à propriedade da terra.
Tal constatação nos leva à crucial questão de rediscutirmos que tipo de produção e alimentação queremos para a humanidade, hoje às voltas com a forte presença dos agrotóxicos e a destruição ambiental proporcionada por tal modelo. Além disso, destaca que o movimento ainda não discute o pleito presidencial exatamente para evitar que a jornada seja tratada como eleitoreira, quando na verdade se baseia em toda uma ‘amarelada’ pauta de necessidades e exigências.
A entrevista completa com Gilmar Mauro pode ser conferida a seguir.
Correio da Cidadania: Os críticos mais à direita levantam insistentemente contra a reforma agrária o argumento de que a conclusão da urbanização a tornou desnecessária, uma vez que teria impulsionado o mercado interno. Ademais, a diversificação do mundo rural, incrementando a oferta de alimentos de forma a suprir a demanda, teria deixado sem sentido a idéia de uma reforma agrária, vez que não se poderia imaginar o futuro de um país como o Brasil sem a agricultura de grande escala, atraindo as massas urbanas novamente para o campo. O que você responderia a estes críticos?
Gilmar Mauro: Em primeiro lugar, toda a lógica da produção agrícola no Brasil e no mundo responde única e exclusivamente à lógica do grande capital, ou seja, do lucro.
As empresas investem na agricultura como mais um espaço de valorização do capital, por isso que hoje toda a produção – terra, comercialização, indústria, patente, tecnologia etc. – é controlada apenas por alguns grupos econômicos. Causando, conseqüentemente, impactos gravíssimos ao tipo de alimentos que a humanidade consome (à custa de hormônios e antibióticos, já que a lógica do capital é tentar diminuir os custos para ganhar mais dinheiro). Em suma, não há qualquer preocupação com o tipo de alimentação que a humanidade terá.
Isso sem falar no impacto ambiental, com a monocultura e a utilização em grande escala de agrotóxicos contaminando os rios, lagos, lençóis freáticos e também o ar. Peguemos um exemplo brasileiro: há informações de que estamos com 175 milhões de cabeças de boi no Brasil, quase uma por pessoa. Na medida em que ocorre a crise energética e se investe bastante em cana e etanol, cidades como São Paulo viram um mar de cana e toda a pecuária se estende para o Centro-Oeste e Norte do país. O Centro- Oeste é nascedouro de vários mundos, portanto, isso causa impacto ambiental gravíssimo. E a destruição da mata da Amazônia também terá um impacto que dificilmente conseguiremos reverter.
CC: Qual é, portanto, em sua opinião, o significado da reforma agrária hoje no Brasil? De outro modo, existe uma questão agrária no Brasil de hoje?
GM: A lógica anteriormente destacada destrói a natureza, o meio ambiente e assim por diante. E uma reforma agrária na atualidade não pode ser pensada a partir da visão dos anos 60, ao estilo distributivo-produtivista.
É por isso que a reforma agrária hoje tem de dar resposta a que tipo de alimentação a humanidade quer consumir, se quer consumir produtos com agrotóxicos ou optar por uma alimentação mais saudável; terá de responder também a que tipo de uso queremos dar ao solo e aos recursos naturais, incluindo subsolo e toda a biodiversidade; e, por fim, que tipo de paradigmas tecnológicos queremos para o futuro.
Portanto, uma reforma agrária é atualíssima para o modelo agrícola do Brasil e do mundo.
CC: O governo Lula fez avançar de alguma forma a questão agrária no Brasil? Que comparação você faria entre o seu governo e o governo anterior do PSDB?
GM: Primeiramente, não existe Plano Nacional de Reforma Agrária. Só existe uma política de assentamentos. Isso vem sendo aplicado desde o governo Sarney até hoje; uma política de assentamentos focalizada em algumas desapropriações aqui e acolá, sem alterar a estrutura fundiária.
Portanto, continuamos com a mesma concentração da propriedade no país e avançamos muito pouco no período. Evidentemente, houve conquistas importantes da classe trabalhadora, mas não podemos chamar isso de reforma agrária.
CC: Vários líderes do movimento já avaliaram que, em função da impossibilidade de se proceder a uma reforma capitalista clássica – ao estilo daquelas que foram perpetradas na maioria dos países capitalistas avançados, para as quais o pacto com a burguesia industrial foi fundamental –, e também a uma reforma socialista – o que somente se sucederia em uma conjuntura revolucionária -, o que se busca hoje é uma reforma popular. Você poderia especificar melhor essa questão, no sentido de definir qual é o modelo de reforma agrária a ser perseguido na atual conjuntura histórica?
GM: Esse ponto da reforma agrária popular é um processo em construção e elaboração. Mas a idéia em si é neste sentido, pois a correlação de forças impede uma reforma agrária socialista, ao mesmo tempo em que a reforma agrária clássica estaria superada.
Dessa forma, é um período intermediário de construção de organicidade, de acúmulo de forças do movimento social. A idéia de uma reforma popular vem no sentido de executá-la por conta própria, sem deixar, evidentemente, de questionar o Estado, fazer demandas e pressioná-lo a cumprir sua parte. Mas construindo por conta própria experiências de produção agro-ecológica, de educação, novas formas de organização dos assentamentos em termos de participação política e organização do poder popular nos locais onde se constroem os assentamentos.
Portanto, é uma reforma agrária de resistência neste ponto histórico em que não há possibilidade de avançarmos numa perspectiva socializante planejada, seja dos recursos naturais, meios de produção ou a terra.
CC: Em entrevista concedida há alguns meses ao Portal Uol de Notícias, João Pedro Stédile declarou que o latifúndio se modernizou, associando-se a grandes grupos de multinacionais e adotando o agronegócio, tornando insuficientes as ocupações como forma de luta. Afinal, enfrentar um grande fazendeiro é bem diferente do que enfrentar o entrelaçamento entre grandes grupos econômicos. Qual é, portanto, a seu ver, a importância das ocupações atualmente? São uma forma de chamar a atenção?
GM: As ocupações não são uma invenção nossa, mas construções que a classe desenvolveu ao longo da história. Mesmo que o MST decidisse acabar com as ocupações, não é por decreto que elas cessarão. Enquanto existirem demandas por terra, por reforma agrária, haverá várias formas de luta, entre elas as ocupações. E as ocupações continuam sendo um instrumento fundamental na luta pela reforma agrária, como provou a última jornada nacional do MST.
É evidente que elas não são suficientes para alterar a correlação de forças em favor da reforma agrária. É preciso desenvolver lutas em conjunto com outros setores da classe trabalhadora. O projeto teria de vir acompanhado, como disse no início, das respostas sobre o uso que queremos dar ao solo, às terras, aos recursos naturais, que tipo de alimentação vamos produzir.
Os sem terra, sozinhos, não têm forças para alterar esse cenário atual. Portanto, devemos construir novas formas de luta. Porém, elas não se inventam em gabinetes, trata-se de um processo que a classe vai construindo, experimentando no seu cotidiano, tentando conjugar duas coisas: as lutas pelas necessidades imediatas e pelas mudanças estruturais que se pretendem fazer no Brasil.
As ocupações continuarão sempre e quando houver grupos interessados na reforma agrária e enquanto este país não a fizer.
CC: Essas ocupações não têm, de todo modo, deixado de produzir os resultados esperados?
GM: Acho que elas produzem, sim, resultados. Evidentemente, as situações são tratadas pelos meios de comunicação, pelo Estado, como uma afronta ao Estado de Direito etc. Claro que se trata de propaganda ideológica, pois, se garantissem o que está na Constituição, possivelmente teríamos avançado muito mais na realização da reforma agrária. O que temos é Estado de Direito para alguns e Estado de Miséria e dificuldades para a maioria da população.
Mas isso não me preocupa. No dia em que o Estadão, a Globo, estiverem falando bem de nossas lutas, é porque elas estariam redondamente equivocadas. A direita sempre vai falar mal de nós, inclusive das ocupações. Sinal de que elas continuam dando certo e mexendo na ferida histórica do problema da terra no Brasil.
CC: É a partir deste espectro que temos que, sem dúvida, enxergar as acusações tão insistentemente veiculadas pela grande mídia sobre a violência do MST. Imagina, no entanto, que as ocupações estejam mais intrinsecamente associadas a estas acusações, indispondo, de alguma forma, o movimento com a opinião pública?
GM: Sempre fizeram isso. Os setores dominantes fazem o mesmo desde Canudos.
A tentativa foi sempre criar o estigma para depois justificar o processo coercitivo de repressão. Qual a novidade dos tempos que vivemos? Aumentaram as duas coisas, coerção e conceito. A idéia do conceito se transmite via meios de comunicação e outros aparelhos ideológicos privados, tentando estigmatizar e criminalizar o movimento social, assim como fazem com a pobreza, no intuito de justificar ações coercitivas por parte do Estado.
Penso que continuarão a fazer isso. Não devemos arredar o pé de nossas táticas e a ocupação continua sendo instrumento fundamental de luta. Claro que sozinha não resolve, mas a classe jamais abandonará tal instrumento como forma de luta para alcançar nossos objetivos.
CC: Há, de qualquer forma, um consenso de que fazer uma reforma agrária hoje não implica mais somente em ocupar terra, mas em agir na denúncia do atual modelo econômico. O que se tem agregado, e ainda se pretende agregar, às formas mais antigas de luta, de modo a formar um entendimento efetivo sobre a atual situação agrária e, conseqüentemente, agir sobre ela?
GM: Eu até comparo metaforicamente a reforma agrária com uma boa feijoada. Para fazer uma boa feijoada, é necessário um monte de ingredientes, mas sem feijão não tem feijoada.
Na reforma agrária, é a mesma coisa. Tem de se trabalhar a idéia de um novo modelo agrícola, voltado à agro-ecologia, além de se ter educação, cultura, espaços de lazer. Os assentamentos e suas comunidades precisam reproduzir a vida em todos os seus aspectos, não apenas como espaço de produção econômica.
No entanto, sem desapropriação de terra, não tem reforma agrária. É preciso continuar desapropriando terra, mas, evidentemente, precisa ser iniciado um novo ciclo de produção e consumo de alimentos, um novo modelo. Que respeite o meio ambiente, atenda às necessidades alimentícias da humanidade e, ao mesmo tempo, ofereça espaço para o pleno desenvolvimento da educação, da saúde e outras condições de sociabilidade, diferentes das estabelecidas pelo mercado.
CC: Que avaliação você faz do atual ‘abril vermelho’, com as manifestações do movimento por todo o país?
GM: Acho que foi um momento bastante interessante das lutas, principalmente porque nos acusaram de fazer luta com dinheiro público etc.
Na verdade, o MST já passou por duas CPMI e agora enfrenta mais uma. Não há nenhum convênio com o MST, sendo que algumas entidades próximas foram cortadas dos convênios. E mesmo assim tivemos uma grande jornada de lutas, com muitas ocupações Brasil afora, em clara demonstração de que nosso movimento não se guia pela quantidade de recursos e verbas públicas liberadas ou não.
Aliás, a falta do Estado na saúde, na educação e na assistência técnica obrigam alguns setores a fazer projetos que situam aquilo que historicamente é tarefa do Estado.
Portanto, essa jornada demonstrou que o MST vai continuar se organizando e lutando, e que a única maneira de acabar com o movimento é fazer a reforma agrária. De outro jeito, não acabam com o movimento, pois, em determinados momentos, a luta pode diminuir, mas, sem resolvê-la na essência, sempre retornará, e com mais força. É uma grande quantidade de água represada e nunca vai ser possível contê-la completamente.
Qualquer sociólogo medíocre sabe que, se não for resolvido o problema na essência, as lutas sempre vão aparecer com força, numa demonstração de que a reforma agrária continua atualíssima e como uma questão das mais modernas.
Além disso, quando falei antes da questão da utilização dos solos, da água, da terra, também me referi à questão das cidades. O processo de urbanização que vivemos traz impactos sociais e ambientais muito graves.
Portanto, repensar a utilização do solo é voltar a repensar a agricultura como espaço de produção e preservação ambiental.
CC: O MST é muitas vezes acusado de ser um partido político, possuindo uma ideologia no que se refere às mudanças esperadas em nosso país. O que você pensa disso?
GM: Não se pode separar a luta reivindicatória, social, da luta política. Se o mundo é uma totalidade contraditória em movimento, não há como separar as coisas. A luta social é parte da luta política e a politização da luta social é fundamental até mesmo para criar o atendimento às necessidades imediatas.
No entanto, não somos um partido nos moldes clássicos. O MST jamais vai se transformar num partido. É um movimento social com essa característica, de aspecto e reivindicações populares, com a participação de crianças, idosos, jovens, adultos etc., mas também com o aspecto de luta econômica, de construção das cooperativas, de respostas econômicas à produção. E também de aspecto político, com formação ideológica. Tem escola de formação política, jornal, revista.
O movimento é mais um instrumento da classe trabalhadora, defendendo sua particularidade, que é a reforma agrária, mas entendendo que, para a realização desta, é preciso toda uma operação na estrutura do sistema. E isso só virá no dia em que as classes trabalhadoras reunirem instrumentos que aglutinem a luta e alterem o Estado burguês, que é deste estado de coisas que presenciamos.
O MST é só mais um parceiro nesta tarefa política de todo o conjunto da classe trabalhadora.
CC: Como o movimento vai se posicionar nestas eleições?
GM: É um tema pouco discutido ainda. Possivelmente, faremos um debate interno mais profundo no segundo semestre, até para fugir um pouco desse rótulo burguês, que colocou a jornada como algo eleitoreiro. Na verdade, não é nada eleitoreira, pois temos uma pauta concreta e, por essa razão, não queremos debater a questão eleitoral agora.
Ainda há um capítulo a ser resolvido com os governos federal e estaduais, que é essa pauta amarelada que não foi atendida.
No segundo semestre, como todo cidadão, participaremos do processo eleitoral. Mas não temos uma posição clara de defesa a alguma figura candidata à presidência.
No entanto, é evidente que a orientação genérica para a nossa militância é votar naquele candidato que esteja compromissado com uma reforma agrária profunda e radical.
CC: Sabendo-se da evidente polarização do atual cenário eleitoral entre PT e PSDB, a vitória de Dilma ou de Serra não impactaria de forma diferenciada no movimento?
GM: Eu acho que ainda é cedo para ter a definição de que só esses dois vão disputar. Vão sair vários candidatos, figuras interessantes e de histórico político importante.
Na medida em que estabelecemos que a disputa será entre Serra e Dilma, ignoramos todo o processo anterior. Só depois que se definir o segundo turno teremos de fazer o balanço do que é melhor para o movimento social, o que faremos no momento certo.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.