Plínio… presente!
Sob uma chuva fina e um frio ameno, o corpo do copanheiro Plínio de Arruda Sampaio encontrou a terra que tanto defendeu. Seus companheiros cantaram a Internacional para que a música o acompanhasse enquanto gritávamos seu nome para que ficasse para sempre conosco.
Por um momento o mundo congelou como em uma foto em branco e preto. Os rostos de seus companheiros de luta, inevitavelmente tristes, estavam calmos. Aquele que partia tinha uma estranha capacidade de aglutinar, virtude que se destaca em tempos de fragmentação e serialidade. Sua família, seus amigos, seus colegas de partido, seus companheiros de luta. Querido pelos seus, respeitado por seus adversários. São poucos aqueles que podemos descrever desta forma.
Nas palavras de Valdemar Rossi, um de seus mais antigos amigos, Plínio era um semeador e talvez isso o descreva de forma mais cabal. Já em 1962 quando foi eleito deputado pelo PDC e participou da Comissão de Política Agrícola do Congresso, elaborando o plano de reforma Agrária que comporia as Reformas de Base do presidente Goulart. Quando trabalhou para a FAO em exílio no Chile depois de cassado, quando apresentou a ideia de núcleos de base ao recém criado Partido dos Trabalhadores ao qual viria a aderir e ajudar a construir, Plínio estava semeando.
No entanto, o que semeava de melhor eram ideias. Militante cristão, partilhava seu pão e seu vinho, vivificando sonhos de emancipação e solidariedade. Cativava com sua forma simples, seu humor, sua convicção profunda, suas dúvidas criativas, sementes das respostas que abriam caminhos novos, novos frutos, novas sementes.
Contava-nos uma história de quando estava em um avião com Lula e lhe disse que, talvez, o maior legado de uma campanha era plantar a ideia do socialismo. Como todo agricultor sabe, nem toda semente vinga. O que nos leva a outra característica de nosso companheiro: a persistência.
São raros aqueles que persistem tanto e por tanto tempo. Plínio nasceu na elite, com família tradicional, nome grande, propriedade. Jovem talhado para a política tradicional das classes dominantes, advogado, subchefe da Casa Civil do governo de Carvalho Pinto em São Paulo no final dos anos 50, e deputado com a benção da Igreja Católica que a esta época queria salvar os pobres da ameaça comunista.
Sua trajetória é algo singular. Primeiro, sai do PDC para uma versão radical da democracia cristã no Chile. Em seu retorno do exílio tenta formar um Partido Social Democrático Popular junto com Francisco Weffort, Almino Afonso, Fernando Henrique e outros, para depois participar da construção do PT. Para seu espanto, como ele mesmo gostava de dizer, ele, um moderado, vai ficando à esquerda no PT que pegava o caminho da conciliação. Por fim, rompe com o PT e participa da construção do PSOL.
Plínio era surpreendente, mas sua trajetória desenha uma clara e coerente linha de princípios que o acompanhou por toda a vida e se expressa ao final como um militante cristão e socialista. Uma coisa fica clara: enquanto a maioria tende a se acomodar e assumir posições mais moderadas, nosso amigo originalmente moderado ia cada vez mais para a esquerda.
Uma vez, na campanha ao governo do Estado de São Paulo em 2006 quando o acompanhei como seu vice (e não era nada fácil acompanhar seu ritmo e vitalidade), Plínio nos convidou à sua casa para um jantar que receberia o então candidato humanista à presidência do Chile, Tomás Hirsch. Fui eu e o Didi do PSTU, assim um pouco deslocados. Em determinado momento, nos chamam para nos acercarmos do chileno e Plínio lhe pergunta diretamente: “queria entender uma coisa desse humanismo que você propõe, como fica a questão da violência?” Didi e eu nos entreolhamos como que dizendo “vai sobrar para nós”. Logo em seguida arremata: “porque sou cristão, comigo é na espada!”
São poucos nossos prazeres nesta vida, são raras as chances de vitória contra esta elite política asquerosa, poderosa e arrogante. Vendo as pessoas que acompanhavam Plínio em seu último adeus, principalmente as pessoas simples, trabalhadores, jovens e velhos, companheiros, camaradas, me veio uma súbita sensação de regozijo… Plínio nos escolheu, ele é nosso, dos fodidos, dos proletários, dos camponeses, dos pobres, ele poderia ter escolhido ser um deles com tudo que isso lhe renderia de poder e prestígio, e decidiu ser mais um dos nossos. Comer nosso pão, beber de nosso sofrimento, nos abraçar em nossas derrotas, sorver o sal de nossas lágrimas.
Plínio é nosso. Morram de inveja. Não é pouco. Pequenas são nossas diferenças e discordâncias colocadas diante desta perspectiva. O generoso coração de nossa classe lhe recebeu com um abraço fraterno e terá nosso reconhecimento eterno.
Seu corpo agora foi semeado. O céu cinza chora calmo e nós seguimos por nossos diferentes caminhos. Atrás de uma árvore posso ouvir Brecht dizer, como disse uma vez sobre Rosa, em um sussurro: “aqui jaz Plínio… enterrai vossas desavenças!”
Vai aqui, deste amigo ateu, o poema que fiz para meus irmãos da pastoral metropolitana de São Paulo, não como uma forma de despedida, mas como um convite a todos que continuam esta caminhada. Companheiro Plínio de Arruda Sampaio… presente. Agora… e sempre!
Transcendências
(para os camaradas e irmãos da PO metropolitana de São Paulo)
Na massa universal
da matéria de nossos corpos
seja luz etérea de estrelas,
carne mineral de planetas,
ou fogo, ou água
ou planta, ou bicho
não vejo alma além daquela
que no movimento
se apresenta a vida.
Aprendi que a religião
é o sol em torno do qual
gira o ser humano
antes de ver em si mesmo
o sol de sua existência.
Ordem do tempo
inimiga do novo
dona da culpa
ópio do povo
organização racional da tristeza
carrasco do meu desejo
árbitro dos castigos aplicados por nós
contra nós mesmos.
Assim, feuerbachianamente,
me tornei ateu.
Mas, quando os vejo…
com seu amor aos pobres,
com seu compromisso com a vida
na teia indissolúvel da solidariedade…
Quando os vejo
subindo as “sierras” de nossa América
com seus terços e fuzis
com sua fé e bravura…
Quando os vejo
na madrugadas fabris
nas estradas acampados
repartindo o pouco pão…
Quando os vejo
reinventando a comunhão
renascendo a cada dia
fazendo da morte ressurreição…
Quando nos abraçamos
sobre nossa bandeira vermelha
chorando lágrimas de raiva,
alegria ou emoção…
Da inexistência de minha alma
chego a desejar
que esta vida se supere em outra
para abraçar mais uma vez
os nossos mortos.
E no calor vivo de nossas batalhas
onde construímos a cada dia
a aurora contra a noite que persiste
consigo ver, nitidamente,
entre a sombra e o escuro,
o rosto sereno de um deus
que não existe.
(Mauro Iasi)
***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.