Rafael Braga: o preso político da política de segurança

imagemHenrique Oliveira*

Primeiramente, libertem Rafael Braga! O martírio e perseguição da justiça criminal brasileira contra Rafael Braga, a única pessoa que foi presa e condenada em meio as manifestações de junho de 2013, só que sem participar delas, já dura 4 anos.

No dia 20 de Abril foi publicada a sentença da nova condenação de Rafael Braga, a 11 anos de prisão por tráfico e associação ao tráfico de drogas. E para entendermos essa série de prisões e condenações, é preciso que compreendamos como os diferentes contextos, a repressão aos protestos de 2013 e a política de segurança baseada no combate ao tráfico de drogas, o criminalizaram e encarceraram.

Rafael Braga, um homem negro que se tornou Black Bloc por ser Black!

Em junho de 2013 o Brasil viveu uma série de protestos e manifestações que sacudiram o país, o maior movimento de massa que o governo petista enfrentava desde a sua eleição em 2003. E esses protestos ficaram marcados pelo surgimento de uma tática de resistência e autodefesa à repressão do Estado chamada Black Bloc, que surgiu na Europa na década de 80. Os Blacks Blocs utilizam como forma de resistência a ação direta, que consiste em uma violência simbólica através de depredação e utilização de coquetéis molotov contra instituições financeiras, como bancos, sede de empresas multinacionais, instituições públicas que representam o poder do Estado, assembleias legislativas municipais e estaduais.

Os Blacks Blocs se tornaram então o alvo principal da política de segurança nos protestos que aconteceram em Junho de 2013 e contra a Copa do Mundo em 2014, foram denominados pela imprensa como vândalos e até terroristas, e prender membros dessa tática se tornou prioridade das polícias brasileiras. E foi em meio à repressão aos Blacks Blocs que Rafael Braga, um jovem negro, pobre e catador de material reciclável foi preso no dia 20 de Junho de 2013, no centro do Rio de Janeiro, quando foi abordado por dois Policiais Civis enquanto saía do local onde dormia, e onde guardava latas e garrafas que ele catava nas ruas da cidade.

Rafael Braga foi apreendido enquanto carregava consigo duas garrafas de produtos de limpeza, uma de Pinho Sol e outra de Água Sanitária, e mesmo sem participar dos protestos acabou sendo levado para 5ª Delegacia.

Sob a alegação de que os produtos seriam utilizados para a produção de um coquetel molotov, foi enquadrado Inciso III do artigo 16 do Estatuto do Desarmamento (Lei 10826/03) que proíbe o porte, o uso e a fabricação de artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, com pena de 3 a 6 anos e multa.

E diferente dos vários manifestantes presos em Junho de 2013, na sua maioria brancos e de classe média, Rafael Braga que não tinha vínculo nenhum com os protestos e nem com organizações políticas, ficou preso até o julgamento, durante 5 meses, e foi condenado a 5 anos.

E mesmo com o laudo do Esquadrão Antibomba da Polícia Civil atestando que os materiais recolhidos com Rafael Braga tivessem a mínima aptidão e ínfima possibilidade para funcionarem como agentes para a produção de um coquetel molotov, o mesmo foi transformado em um Black Block, só que na real ele foi condenado por ser mais Black do que um Bloc.

E a prova que Rafael Braga é perseguido e torturado pelo regime de exceção que vigora para a população negra e pobre desde a nossa formação social tendo com marco a escravidão, foi o fato ocorrido em 2014, quando o mesmo estava em regime semi aberto e trabalhava durante o dia num escritório de advocacia, e foi mandado para a solitária por 10 dias porque pousou para uma foto em frente ao muro do presídio, em que tinha uma pichação criticando o Estado dizendo: “Você olha da esquerda para a direita, e o Estado te esmaga de cima para baixo”.

A foto foi publicada na página do facebook do Instituto de Defensores dos Direitos Humanos, sem a ciência de Rafael Braga, além de que, não existiam provas que ele foi a pessoa que realizou a pichação, mas mesmo assim foi punido por “desvio de conduta”.

Tráfico de drogas, um instrumento para a criminalização de jovens negros e pobres

Na manhã do dia 12 de Janeiro de 2016, Rafael Braga foi preso por Policiais da Unidade de Policia Pacificadora na Vila Cruzeiro por tráfico de drogas e associação ao tráfico, quando ia da sua casa para a padaria ao ser abordado pelos PM’s.

Rafael Braga que estava de tornozeleira eletrônica foi abordado por Policiais e levado até um beco, onde foi agredido e ameaçado, os policiais queriam que ele dissesse informações referentes ao tráfico de drogas no local.

Uma testemunha relatou que Rafael Braga não carregava nada em suas mãos e que foi abordado de forma violenta. Só chegando na 22ª Delegacia que Rafael ficou sabendo que estava sendo preso por tráfico de drogas, ao ser implantado um flagrante forjado de 0,6 gramas de Maconha, 9,6 gramas de Cocaína e um rojão. O que serviu para construir junto ao estereótipo de Rafael, um jovem negro, pobre, em uma favela, utilizando uma tornozeleira eletrônica, o tipo ideal de traficante para o sistema penal.

Na última audiência de instrução e julgamento que aconteceu em Junho de 2016, Rafael falou no interrogatório que os policiais tentaram fazer com que ele cheirasse Cocaína dentro da viatura.

E nessa mesma audiência o Policial Militar, Pablo Vinícius Cabral, entrou em contradição no seu depoimento. Na versão anterior ele tinha dito que os Policiais faziam um patrulhamento de rotina na comunidade, quando foram informados por moradores que existia uma pessoa vendendo drogas numa localidade chamada “Sem Terra” onde encontraram Rafael.

E na audiência ele afirmou que os PM’s faziam uma operação na manhã do dia 12 de Janeiro, porque engenheiros estavam fazendo um trabalho de metragem no local, quando receberam a denúncia de um morador, e logo após foram averiguar a informação, ele e os colegas encontraram um grupo de pessoas e que todos acabaram correndo só ficando Rafael Braga.

No dia 20 de Abril, o portal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro publicou a sentença de condenação a Rafael Braga. E ao analisarmos a sentença proferida pelo juiz Ricardo Coronha Pinheiro, é possível identificarmos a importância dada a questão do ambiente social. Na sentença o juiz reforça como apreensão de Rafael Braga aconteceu em uma região dominada pelo tráfico de drogas, e mais especificamente pelo grupo, Comando Vermelho, junto com a alegação dos policiais que aquele local era utilizado para o comércio das drogas e com constante ocorrência de troca de tiros entre policiais e traficantes.

Na sentença o crime de tráfico de drogas cometido por Rafael se caracteriza pela forma em que as drogas estavam armazenadas, segundo o juiz, o seu fracionamento, sua divisão em pequenas quantidades e embaladas, demonstram que elas estavam sendo realmente prontas para o comércio e consumo.

A associação ao tráfico se configurou pelo fato de o juiz acatar a narrativa policial que Rafael Braga estava acompanhado por um grupo de indivíduos que correram, só restando ele, além do fato das drogas estarem em um pacote plástico, contendo as inscrições “CV – RL”, o que aponta para um vínculo associativo estável ao grupo que controla na região o tráfico de drogas.

Essa linha de conclusão tomada pelo juiz é muito frágil, por que se for assim, qualquer pessoa que for presa portando drogas com etiqueta de qualquer grupo do varejo de droga, em determinado local, poderá ser enquadrada por associação ao tráfico?

No livro “Indignos de vida – A forma jurídica da política de extermínio de inimigos da cidade no Rio de Janeiro”[i], Orlando Zaccone demonstra a importância do ambiente social, para a promoção dos arquivamentos dos autos de resistência registrados pela Polícia, realizados pelos Promotores com o objetivo de produzir a legítima defesa. A construção do inimigo na figura do traficante, a partir do local identificado como de operação de varejo de drogas, em que acontece troca de tiros com policiais, junto a apreensão de armas e drogas, são suficientes para o pedido de arquivamento.

Outro elemento que podemos destacar na sentença, é que as únicas testemunhas de acusação contra Rafael Braga foram os Policiais Militares que o prenderam. Apenas se basear no depoimento dos agentes do Estado não é elemento suficiente para a condenação de um acusado, o que viola o processo penal, pois as testemunhas devem ser pessoas desinteressadas no mérito do julgamento, o que não diz respeito aos interesses dos PM’s, que se pautam sempre na tentativa de criminalização das pessoas que são por eles apreendidas.

A prisão e condenação de Rafael Braga não é um fato isolado, faz parte da sistemática jurídica onde 74% das pessoas presas por tráfico tem como única testemunha apenas o Policial.

Segundo o juiz, os Policiais Militares pelo fato de não conhecerem Rafael Braga, não teriam o interesse pessoal de acusa-lo falsamente de tráfico de drogas, como se bastasse apenas uma possível relação anterior entre Policiais e os acusados, para que se criasse a disposição dos policiais em querer empurrar um flagrante de drogas. O que mostra o afastamento total do Poder Judiciário da dinâmica da atividade policial nas ruas, inclusive das suas fraudes processuais, crimes e ilegalidades.

A única testemunha de defesa, que viu Rafael Braga ser levado pelos policiais sem ter nada em suas mãos, teve seu discurso deslegitimado pelo juiz, pelo fato dela ser amiga e vizinha da família de Rafael Braga, o que na visão do juiz tinha como única intenção o inocentar. Então, os Policiais Militares por não conhecerem Rafael Braga tinham mais legitimidade, do que a sua vizinha que o conhecia, essa foi a racionalidade e a lógica do juiz.

O juiz Ricardo Coronha já tinha negado em fevereiro o pedido da defesa de Rafael Braga para obter acesso ao registro do GPS da tornozeleira eletrônica que ele utilizava e também das câmeras da viatura, o que para a defesa configurou na violação do direito de ampla defesa e ao contraditório.

E ao ignorar o depoimento de Rafael Braga e da defesa, de que os Policiais colocaram as drogas para o criminalizar, o magistrado deixou de levar em conta uma prática policial, que é a utilização dos kit flagrantes, que são usados quando os Policiais tem o objetivo de ameaçar, conseguir uma confissão ou extorquir. O kit flagrante é parte de uma prática perversa, que se ancora no racismo estrutural e na criminalização da pobreza, em que um Policial que tem seu discurso legitimado pelo poder judiciário, consegue produzir provas para criminalizar, encarcerar e matar jovens negros e pobres, com base na política criminal de drogas.

A condenação de Rafael Braga coloca para o Movimento Negro e militantes anti racistas, a necessidade de se combater o proibicionismo e a política de guerra às drogas, que na verdade é uma política de guerra às pessoas, como forma de enfrentamento ao genocídio do povo negro, que se expressa na violência produzida seja pelo Estado, ou pela própria dinâmica do mercado ilegal com altíssimas taxas de homicídios, e pelo encarceramento em massa.

Enquanto Rafael foi condenado com um flagrante forjado com 0,6 gramas de Maconha e 9,6 gramas de Cocaína, os Perrellas sequer foram investigados pelo helicóptero com 455kg de Cocaína em pasta base e que ainda foi devolvido pela Justiça Federal.

E como bem argumentou a militante afro-americana, Deborah Small, que luta contra a proibição das drogas, o racismo e o encarceramento em massa nos EUA, a política de guerra às drogas é um mecanismo de manutenção da hierarquia racial, que facilita a criminalização das pessoas pobres e negras, além de abrir a possibilidade de lucro com a sua exploração através do complexo industrial–penal.

A política criminal de drogas se baseia na utilização do Direito Penal para defender um bem jurídico definido como a saúde pública. Mas na real o crime de tráfico de drogas não pode existir enquanto tal, pois não existe nem o bem jurídico, e nem uma violação à terceiros, não existindo uma vítima, pois quando se consome uma determinada a substância, o único atingido é o próprio usuário. O direito penal na política de drogas aparece de forma paternalista, visando proteger a pessoa dela mesma.

Veja-se que a saúde pública como objetividade jurídica a ser resguardada pelo art 28, da lei Antidrogas, é digna de críticas, pois o “público” não possui um corpo real, não sendo possível que a tal bem jurídico exista, no sentido estrito da palavra, não se admita a fundamentação de uma proibição penal em um bem jurídico fictício [ii](Gérson Rosa & Gisele de Carvalho, pg 236)

Se a categoria preso político é aplicada aos indivíduos que são presos por serem oposição a um determinado governo, principalmente nos regimes autoritários, Rafael Braga é o legítimo preso político do dito regime democrático brasileiro, que carrega consigo elementos comuns da maioria dos presos brasileiros, um homem negro e pobre!

Henrique Oliveira é graduado em História e mestrando em História Social pela UFBA e militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira/Bahia.


[i] D ELIA FILHO, Zaccone, Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Revan,2015.

[ii] Fraturas do Sistema penal/ organizado por Gustavo Noronha de Ávila, Porto Alegre, Sulina,2013.

Foto: Jorge Ferreira/Mídia NINJA

Rafael Braga: o preso político da política de segurança