O dia em que Frantz Fanon encontrou um “marxista puro”
BLOG DA BOITEMPO
Por Jones Manoel
À sua maneira de ‘fazer’ filosofia consiste em despender tesouros de inteligência e sutileza para nada mais que ruminar na filosofia. Quanto a mim, trato a filosofia de outro modo, pratico-a, como queria Marx, de acordo com o que ela é. É isto o que julgo ser ‘materialista dialético’.”
LÊNIN, CARTA A GORKI, 7,
FEV. 1908
Eu já fui católico por cinco anos. Naquela época, tinha bastante costume de conversar com o padre da minha igreja sobre teologia. Ele me explicava que existe o “Mundo de Deus” e o “Mundo dos Homens”: no primeiro, a alma humana alcança sua plenitude e sua função de fruição eterna no paraíso longe do pecado; no segundo, a alma humana se corrompe a partir das práticas do corpo – sempre tendente ao pecado, à luxuria, à gula, à cobiça, à violência etc. A função do verdadeiro cristão na Terra seria, portanto, se esforçar ao máximo para agir como se estivesse no “Mundo de Deus”, negando na cotidianidade o “Mundo dos Homens” para, assim, conseguir de verdade entrar no reino de Deus.
Contudo, já com 18 anos debatendo com o meu amigo padre, logo percebi uma contradição lógica (será ontológica?) na argumentação dele: se o “Mundo de Deus” é a negação por essência do “Mundo dos Homens”, se é impossível para o homem, em vida, ser santo, já que o homem é constituído pelo pecado, como é possível se comportar na terra como alguém que está no “Mundo de Deus”? Nesse caso, em termos filosóficos, temos um “vir a ser” que nunca será; um “vir a ser” que não consegue ter materialidade prática, gerando um dualismo estrutural eterno: a ideia e a prática nunca se encontram.
O meu simpático padre nunca conseguiu me explicar como resolver essa contradição. E eu deixei de ser católico… O tempo passou e depois eu me tornei comunista. Desde que comecei a ter contato com o marxismo, antes de entrar na universidade, tive a sorte de ser introduzido nessa tradição teórico-política por revolucionários ligados à prática política: Rosa Luxemburgo, Trótski, Lênin, Florestan Fernandes (o Florestan do pós-golpe de 1964), entre outros. Esse marxismo que aprendi estava baseado na famosa “tese onze” de Karl Marx: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”.
O que esta frase significa em seu sentido pleno? Repare, nenhuma corrente teórica está situada em um lugar não-político. Weberianismo, positivismo, estruturalismo, fenomenologia, pós-estruturalismo e afins cumprem uma função na luta de classes. Como lembra o velho Lênin, uma das formas da luta de classes é a luta teórica (cabe lembrar que Lênin diz isso no livro Que Fazer? onde está a famosa frase “sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”; como se sabe, esse livro é dedicado a pensar, fundamentalmente, a organização política…). Porém, essas e outras correntes teóricas ocupam um lugar político a posteriori, enquanto elemento global da produção de conhecimento, cultura e teoria, como um fato dado.
Um weberiano, por exemplo, pode ser alguém compromissado na sua prática com a luta dos trabalhadores. Um positivista pode ser alguém que dedica sua vida – e morre em nome disso – à luta dos povos originários e indígenas. Ser estruturalista, weberiano, positivista e afins não significa, no nível imediato, ser comprometido com tal ou qual classe social em conflito na sociedade burguesa – ainda que uma análise histórico-universal das tendências de produção teórica coloque, corretamente, essas correntes como formas de consciência burguesa.
Já um marxista é – ou deveria ser – alguém comprometido com a classe trabalhadora e todos os oprimidos. Note, quando alguém se apresenta como marxista nós automaticamente imaginamos o que? Que o sujeito é um socialista, comunista etc. Isso ocorre porque o marxismo tem um compromisso de classe aberto, constitutivo, fundante. Esse compromisso fundante com os explorados e oprimidos tem como um dos seus fundamentos a negação da separação entre teoria e prática – a negação da ciência como uma contemplação apartada da prática social e política.
Ser marxista significa tomar a opção teórica e política de estar ao lado dos trabalhadores e trabalhadoras e construir suas análises a partir do materialismo histórico-dialético e de toda tradição marxista, sempre condicionando os temas de pesquisa e sua forma de exposição aos problemas reais enfrentados pela classe explorada no seu processo de constituição como sujeito revolucionário. Marxismo é teoria orientada pela prática política revolucionária e prática revolucionária orientada pela teoria.
O materialismo dialético da filosofia marxista possui duas particularidades mais evidentes. A primeira é o seu caráter de classe: ela afirma abertamente que o materialismo dialético serve ao proletariado; a outra é o seu caráter prático: sublinha o fato de a teoria depender da prática, de a teoria basear-se na prática e, por sua vez, servir à prática. A verdade de um conhecimento ou de uma teoria é determinada não por uma apreciação subjetiva, mas sim pelos resultados da prática social objetiva. O critério da verdade não pode ser outro senão a prática social (Mao Tse-Tung, Sobre a contradição e sobre a prática, São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 15)
Nesse sentido, o marxismo sem prática constitui uma contradição em termos. É um não marxismo; no máximo, o uso de algumas categorias e conclusões do materialismo-histórico dentro de outra abordagem teórico-filosófica. Note: aqui não há qualquer concepção redutora de prática. Atuar na prática não significa, necessariamente, estar em um chão de fábrica, em uma ocupação urbana ou na rua fazendo panfletagem e conversando com os trabalhadores ao final da sua jornada de trabalho – embora eu recomende tudo isso para quem se considera marxista, especialmente os intelectuais de origem pequeno-burguesa.
Prática significa uma atuação política que, a partir de diversos meios e da infinidade de possibilidades existentes, contribua com as lutas, organização, resistência, dilemas e formação teórico-cultural da classe trabalhadora. Significa, no caso do intelectual, uma produção voltada na forma de exposição e no conteúdo para os interesses dos trabalhadores – interesse histórico-universal, como classe revolucionária, e interesses imediatos, enquanto classe em si. Então, por exemplo, se sou um intelectual marxista, e minha maior preocupação é publicar em revistas lidas apenas pelos meus pares, livros visitados apenas pelos meus pares, debatendo as conclusões das minhas pesquisas apenas com meus pares nos muros da universidade, fazendo do marxismo não uma arma política potencial, mas uma teoria social como qualquer outra com categorias filomarxistas, eu estou desligado da prática.
O mínimo que se espera de um intelectual marxista é ajudar a divulgar o marxismo no meio dos seus pares (um marxismo que clame pela prática política) e que tenha a postura de intelectual público, que busca romper com o isolamento social típico da universidade brasileira – um marxismo popularizado. E repito: o mínimo. Todavia, que efeito prático se tem em debater um suposto marxismo puro, não contaminado pela prática, não deformado por todos, inclusive Engels?
Veja, em 2013 conheci uma tendência muito estranha no marxismo brasileiro. Eles defendem que todos os sindicatos, partidos, movimentos populares e afins seriam não revolucionários, “praticistas”, longe do verdadeiro marxismo. Todos esses movimentos e organizações seriam ainda “politicistas”. Ou seja, não compreenderiam a ontonegatividade da politicidade e ignoram que a verdadeira prática revolucionária não passaria pela política e pela disputa do Estado ou pela construção de um Estado proletário, um poder popular, etc., mas sim pela destruição do capital. Passei a pesquisar mais um pouco tentando responder à pergunta natural que então surge: afinal, onde esses “marxistas” atuam construindo os verdadeiros sindicatos, partidos e movimentos populares?
A resposta é a seguinte: não existem. A negação não é seguida de uma afirmação. Não existem os verdadeiros instrumentos de luta dos trabalhadores, não contaminados pelas concepções ontonegativas da politicidade ou da política. Bem mais do que debater a validade desse conceito, chamo atenção para como ele é desprovido de qualquer materialidade prática: será que não tem porque seus defensores ainda não construíram os instrumentos de emancipação baseados nele ou porque efetivamente não pode ter?
Pesquisando um pouco mais, descobri que, para esses senhores – ou melhor, para alguns deles – todas as experiências socialistas e de libertação nacional (inclusas as atuais, como Cuba), seus líderes, partidos, teóricos e militantes teriam deformado o marxismo. Essa deformação do marxismo, inclusive, teria começado com Engels, que seria positivista e nunca teria compreendido bem a dialética de Marx. Aliás, para muitos desses senhores, nunca sequer existiram experiências socialistas. Tudo não passou de capitalismo de Estado ou qualquer noção assemelhada – o porquê de milhões de pessoas terem achado que estavam construindo o socialismo é, realmente, um mistério.
Como provam isso? Citando trechos de textos de Marx e fazendo uma comparação direta, não mediada, entre o escrito e uma certa apreensão do real. Então, por exemplo, Marx disse em tal ou qual texto que o socialismo é os trabalhadores gerirem a produção sem Estado; se em alguma experiência socialista existe um Estado para se defender de coisas mundanas, tipo a OTAN, isso não é socialismo. O significado em si e para si está no texto – o fato de, na época de Marx, não ter existido nada parecido com a OTAN, armamento atômico ou uma potência imperialista com bases militares espalhados em todo mundo é um mero detalhe; não é algo que faz repensar a teoria à luz do real… (Ah, ainda faço notar como a apreensão do texto é estranha, já que Marx formulou claramente sobre a necessidade da ditadura do proletariado durante a transição socialista).
É assim que os partidos não servem. Os movimentos populares não servem. Os sindicatos não servem. A história do movimento comunista e seus líderes não serve. O melhor é fazer um “retorno a Marx” buscando uma hermenêutica não contaminada pela… história. Uma espécie de Marx puro, anterior ao leninismo, stalinismo, maoísmo, castrismo, gramscianismo, luxemburguismo, etc.
Esse tipo de visão do marxismo, no geral, permite três autores: Lukács, Chasin e Mészáros. Junte a isso uma espécie de fixação em debates do que chamamos de marxologia: a melhor tradução de Marx, o verdadeiro significado de alienação e estranhamento, o verdadeiro conceito de classe, o verdadeiro conceito de capital, o verdadeiro conceito de trabalho, e assim segue. (Essa busca do verdadeiro conceito dá-se sempre na obra de Marx, dando pouca importância ao real). Não que precisão teórica e rigor conceitual não sejam importantes – eles são, e muito, especialmente em tempos “pós-modernos”. Porém, vejamos : por qual motivo esse rigor é aplicado primordialmente numa exegese obcecadamente pura da obra de Marx?
Agora podemos chegar no ponto interessante deste escrito: isso não é marxismo, isso é teoricismo. O teoricismo é um desvio político e filosófico que compreende que a teoria é um fim em si mesmo e que a qualidade ou pureza da produção teórica é um processo imanente, buscado na própria construção teórica, fazendo da teoria algo que só a posteriori pode intervir na realidade. Como se, por exemplo, o caráter revolucionário de uma teoria fosse um componente intrínseco e não o resultado fático de encontro: “mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas”, diria Marx (Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 12).
Isso significa que a teoria nunca será um algo em si. É puro desvio teórico achar que primeiro se difunde uma concepção de mundo marxista precisa, pura, revolucionária e depois, só depois, uma ação política coerente. E trata-se de um desvio teórico com consequências políticas graves. Por exemplo, é inútil tentar debater com os adeptos dessa versão pura do marxismo os problemas de organização, geração de finanças, agitação e propaganda, comunicação, segurança, trabalho de base e afins. Pouco ou nada tem a dizer sobre isso. Aparentemente, uma compreensão correta, pura, do marxismo irá resolver como em um passe de mágica todas essas questões.
Esse tipo de “marxismo” teoricista existe desde o começo do marxismo. Não é novidade. E enquanto existirem camadas sociais pequeno-burguesas com espaços institucionais com uma dinâmica de produção teórica insulada das demandas políticas em um clima sociopolítico mais ou menos democrático burguês , ele vai continuar existindo. Esse tipo de coisa produz, inclusive, algumas contribuições utópicas ao marxismo. Alguns desses “marxistas” brasileiros eu leio – e de fato aprendo bastante com eles. Mas não se trata de nada mais do que isso: contribuições tópicas. O marxismo na mão desses senhores nunca será uma força material que encontra as massas.
Isso muito me lembra os debates que Frantz Fanon teve em vida. Um livro em especial, o clássico Os condenados da terra, é um exemplo de como um revolucionário marxista (sim, Fanon era marxista!) enfrenta os adversários da práxis de cada época histórica. Acompanhe.
Fanon mostra como os intelectuais africanos, na onda dos processos de descolonização, buscaram destruir a historiografia colonizante do imperialismo valorizando os modos de vida, cultura e civilização pré-coloniais. Fanon descreve a importância desse momento da luta colonial: o combate aos mitos do colonizador, a descoberta das tradições históricas do povo, a defesa da cultura nacional e continental, a exaltação do negro, a construção de novas identidades nacionais etc. Fanon traça um panorama de toda essa construção teórico-política, seus condicionantes e contradições para, mesmo reconhecendo sua importância, colocar um questionamento fundamental:
“O homem da cultura colonizado não deve se preocupar em escolher o nível do seu combate, o setor que decide travar o combate nacional. Combater pela cultura nacional, é primeiro combater pela libertação da nação, matriz material a partir da qual a cultura se torna possível” (Frantz Fanon, Os condenados da terra, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015, p. 267 – grifos nossos).
Fanon, neste trecho, destaca que a produção de uma cultura africana não é um fim em si mesmo – nenhuma construção teórica deve o ser –, mas está subordinada à tarefa primordial que é a libertação nacional, o fundamento real, material, da cultura nacional. Em seguida, destaca que a cultura nacional “em países subdesenvolvidos” deve se situar no próprio centro da “luta de libertação nacional que esses países travam”; depois disso, passa a ironizar os “homens da cultura negro-africana” que “multiplicam congressos” e que não percebem que sua atividade se “reduziu a confrontar peças ou a comparar sarcófagos” (Os condenados da terra, p. 268).
Seria Fanon um anti-intelectualista? Não. Sua tarefa central é mostrar a todo momento que não existe florescimento cultural – e acrescentamos: teórico – sem “contribuir concretamente [leia-se: politicamente] para a existência dessa cultura, isto é, a para libertação do continente” (idem, p. 270). O capítulo de Os condenados da terra dedicado à cultura nacional é um verdadeiro manifesto em defesa da práxis: “pensamos que a luta organizada e consciente empreendida por um povo colonizado para restabelecer a soberania da nação constitui a manifestação mais plenamente cultural que exista” (p. 280).
O que é essa libertação nacional para Fanon? Um processo objetivo de emancipação política, econômica e cultural – mas cultural em um sentido preciso, não como retórica autocentrada. Não se trata de construir uma “Argélia argelina”, negando, em abstrato, a “Argélia francesa” do colonizador: a questão é entre Argélia independente ou Argélia colonial, “todo o resto é literatura [no sentido de palavrório] ou tentativa de traição”. Na construção dessa emancipação, não interessa ao nosso revolucionário um debate bizantino se a revolução na Argélia será socialista ou democrático burguesa, um debate em si descolado das tarefas concretas da luta de libertação nacional.
Fanon era socialista, dizia claramente que o socialismo “nos permitirá ir mais longe, mais harmoniosamente” e que o capitalismo “enquanto modo de vida” não permite “realizar nossa tarefa nacional e universal”, mas esses debates na sua forma escolástica podem perder de vista o fundamento material da emancipação: o país subdesenvolvido no seu processo de libertação política, precisará de “capitais, técnicos, engenheiros, mecânicos”, “modificar as condições de trabalho” (p. 120). Em suma, evitar que a vitória sobre o colonialismo se torne a entrada no neocolonialismo, que a emancipação política se torne anexação econômica, mantendo a mesma divisão internacional do trabalho de antes.
Um marxista “puro” poderia, neste momento, afirmar que Fanon não seria marxista, já que ele, aparentemente, não coloca no centro de sua análise a contradição capital/trabalho e não está falando de autogestão dos produtores associais e, muito menos, do fim da propriedade privada. Fanon, como todo bom marxista, defendia uma política antiburguesa e que a Frente Nacional de Libertação Nacional (FNL) não deixasse a direção do processo revolucionário cair nas mãos da burguesia:
“É por isso que precisamos saber que a unidade africana só pode fazer-se sob o impulso e sob a direção dos povos, isto é, desprezando os interesses da burguesia […]. Nos países subdesenvolvidos, a burguesia não deve encontrar condições para sua existência e para seu desenvolvimento. Em outras palavras, o esforço conjugado das massas enquadradas num partido e dos intelectuais altamente conscientes e armados de princípios revolucionários deve barrar o caminho para essa burguesia inútil e nociva” (Os condenados da terra, p. 192 e p. 203).A questão para o revolucionário é que o direcionamento estratégico, revolucionário, antiburguês, não pode ser uma afirmação bizantina de princípios, mas deve se materializar numa dimensão prático-efetiva em cada momento da luta revolucionária. É necessário vencer militarmente o colonizador, construir um Estado nacional, organizar as massas – especialmente os camponeses, a classe revolucionária por excelência, na visão de Fanon –, construir uma infraestrutura nacional, desenvolver as forças produtivas, mudar a divisão social e internacional do trabalho, garantir às massas uma real politização, conhecer e usar as riquezas do país etc.
Fanon não está preocupado se construir um Estado nacional é uma contradição com certa visão da teoria marxista que diz que os revolucionários são contra o Estado ou que o Estado é um ser ontonegativo. Ele também não está preocupado se está sendo fiel ou não a Marx quando coloca a tarefa de construir uma verdadeira economia nacional, rompendo com a estrutura de relações de produção imposta pelo colonizador. Fanon é um marxista que, com o método de Marx, fazia análises concretas de situações concretas, identificando em cada momento da luta qual a tarefa política que se coloca, sem perder de vista a estratégia geral de construção do socialismo.
“Essa política é nacional, revolucionária, social. Essa nova realidade que o colonizado vai agora conhecer só existe pela ação. É a luta que, ao fazer explodir a antiga realidade colonial, revela facetas desconhecidas, faz surgirem significações novas e põe o dado nas contradições camufladas por essa realidade. O povo que luta, o povo que, graças à luta, dispõe dessa nova realidade e a conhece, avança, libertado do colonialismo, prevenindo antecipadamente contra todas as tentativas de mistificação, contra todos os hinos à nação […] Sem essa luta, sem esse conhecimento na práxis, só há carnaval e fanfarras” (Os condenados da terra, p. 171 – grifos nossos).
Essa defesa enfática da práxis explica porque, em Os condenados da terra, Fanon fala tanto de organização política, partidos, espontaneidade, líderes, formação, politização, diferenças de atuação política no seio das mais diversas classes, e por aí vai. Não era o interesse do nosso revolucionário apenas elaborar um tratado sobre o que é a colonização. E repare: não há problema em si em um marxista realizar um estudo como esse. Contudo, como já disse, para um marxista, toda reflexão teórica deve conter um clamor pela ação. É na ação que a teoria se faz práxis. É na ação que a teoria pode encontrar as massas. É só no encontro das massas que a teoria com potencialidade revolucionária se torna efetivamente revolucionária.
O marxismo puro, aquele que busca um desenvolvimento lógico-imanente das categorias, que faz dos textos de Marx uma espécie de Bíblia sagrada portadora da verdade pronta do mundo, aquele que em toda e qualquer conjuntura tenta se explicar a partir de um desenvolvimento categorial em altíssimo nível de abstração – esse “marxismo puro” é o exato contrário de Fanon – e de Lênin, Mao, Fidel, Che, Rosa, Gramsci, Mariátegui, Trótski, Stálin, Prestes, Ana Montenegro, Celia Sánchez, Vânia Bambirra…
Há aqui uma escolha muito clara. O “marxismo” como uma seita intelectual, incapaz de uma práxis revolucionante, mediada com as necessidades imediatas da classe trabalhadora, capaz apenas de fraseologia contra o capital para os iniciados; ou o marxismo como um guia de ação para a transformação da realidade, uma teoria que, apreendendo o estágio concreto da luta de classes, deve se propagandear e, ao mesmo tempo, aprender com classe trabalhadora na sua luta pelo poder político para iniciar a reorganização socialista da sociedade? Eu escolho a práxis, como Fanon o fazia.
Ou, como diria outro grande revolucionário africano, o saudoso Samora Machel:
“[…] Compreenderam que não é preciso ser doutor, que não é preciso ter grandes conhecimentos teóricos. […] Compreenderam que o membro do Partido é o camponês, o carpinteiro, o mineiro, o motorista, o datilógrafo, o funcionário, o professor, o estudante, o enfermeiro, o trabalhador que ama e respeita a sua profissão, que se engaja na batalha da produção, que não explora nem participa do processo de exploração, que reconhece que o homem é o agente transformador da natureza e da sociedade. […] O sucesso da Campanha Nacional de Estruturação do Partido, a vitória alcançada pelo nosso Povo neste processo materializaram-se em todos os pontos do nosso País. […] O nosso Partido cresceu impetuosamente, criou condições para poder desempenhar mais completamente a sua função de força dirigente do Estado e da Sociedade.”
Ilustração: Frantz Fanon em Accra (Gana), em 1958 (Foto: African American Intellectual History Society).
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Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular, passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
O dia em que Frantz Fanon encontrou um “marxista puro” – ensaio contra o teoricismo