O Manifesto Comunista e a Mulher Trabalhadora

imagemPerspectivas para a emancipação das mulheres

Bruna Santana da Silva
Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro – Bahia

“ Se a libertação da mulher
é impensável sem o comunismo,
então o comunismo é impensável
sem a libertação da mulher”
Inessa Armand

Muito se questiona sobre as contribuições de Karl Marx quanto aos mais diversos dilemas da nossa sociedade atual. Indagações acerca da validade dos seus escritos são dispostas cotidianamente, em especial no que tange aos instrumentos capitalistas de opressão vigentes, como o racismo, o machismo, a lgbtfobia, a xenofobia, dentre outros. Marx, apesar de suas limitações, frutos de seu tempo e sua sociedade, deixou escritos que foram cruciais para a construção de movimentos em prol da emancipação das trabalhadoras e trabalhadores no mundo, levando em conta a questão de gênero, raça/etnia.

Nesse sentido, este pequeno artigo tem por objetivo refletir sobre a atualidade e a importância do Manifesto do Partido Comunista, escrito por Karl Marx e Friedrich Engels, para o debate em torno das relações de opressão de gênero, a fim de uma real contribuição à luta feminista classista.

O papel do Manifesto Comunista

Escrito por Marx e Engels, o Manifesto do Partido Comunista, surge um pouco antes da revolução de fevereiro de 1848, ano este marcado como crucial para compreender a história do mundo ocidental. Originalmente, o Manifesto Comunista fora publicado como um pequeno livreto com o objetivo de dialogar diretamente com os trabalhadores e trabalhadoras explorados pelo sistema capitalista, que vinha endurecendo as condições objetivas de vida das famílias operárias, que estavam quase que por completas inseridas no interior das fábricas.

O Manifesto discorre em suas linhas a proposta de um enfrentamento constante dos trabalhadores contra a classe dominante, alertando que “de tempos em tempos os trabalhadores vencem, mas apenas provisoriamente. O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores”.

O pequeno panfleto de pouco mais de vinte páginas apresenta em sua parte inicial uma síntese histórica quanto ao papel revolucionário da burguesia na construção de um novo mundo, e são assinaladas ainda pelos autores as contradições da ordem social constituída pelo protagonismo burguês e a necessidade da sua superação, a partir das novas lutas de classe que nela nascem.

O papel revolucionário alcançado pela burguesia se destaca pela simplificação dos antagonismos de classe, apresentando para a classe oprimida novas condições de opressão e exploração, transformando as relações familiares em meras relações de dinheiro. Essas relações de dinheiro, segundo Marx em sua obra O Capital, com o desenvolvimento da maquinaria inglesa na grande indústria, empurraram mulheres e crianças para o chão da fábrica, como mecanismo de sobrevivência de suas famílias, dadas as condições de exploração dos trabalhadores.

[…] num meio de aumentar o número de assalariados, submetendo o comando imediato do capital todos os membros da família dos trabalhadores, sem distinção de sexo nem idade. O trabalho forçado para o capitalista usurpou não somente o lugar de recreação infantil, mas também o do trabalho livre no âmbito doméstico, dentro dos limites decentes e para a própria família.

No Manifesto, Marx e Engels respondem às falaciosas e acusações imputadas aos comunistas; quanto ao caráter das famílias, somente a família burguesa existe de fato. Para Marx, o trabalhador se torna um mercador de escravos, no qual vende a esposa e os filhos pela tentativa de sua sobrevivência. A família se estabelece assim como fonte de opressão das mulheres, imputando a elas o papel de reprodutoras da força de trabalho para o capitalismo.

Considerando essa missão, a mulher, aos olhos do burguês, segundo Marx e Engels, é vista como mero instrumento de produção, sendo responsável pela garantia da passagem da herança do burguês para seus herdeiros, e a mulher da classe trabalhadora assume a função de fornecer ao sistema a força de trabalho necessária para a sua manutenção. Para nossos autores, com a supressão das atuais relações de produção, a posição da mulher enquanto instrumento de produção também precisa ser eliminada.

Para compreender melhor a opressão feminina, é preciso entender os mecanismos de opressão que transformaram a mulher em proletária do proletário.

Breve histórico sobre opressão feminina

Foi no interior da formação das sociedades de classes em que se deu a opressão da mulher pelo homem, dada a necessidade de dominação do homem.

Antes da organização da sociedade com separação em classes, as sociedades primitivas tinham sua organização com base em bandos e pequenas tribos, nas quais era necessário retirar da natureza os alimentos essenciais para a sobrevivência, através de grupos coletores, responsáveis pela caça e coleta. No interior da vida desses grupos, se desenvolveu um novo modo de tirar da natureza o necessário à vida: o trabalho.

Através do desenvolvimento do trabalho, a sobrevivência das primeiras comunidades foi garantida, com o desenvolvimento de conhecimentos da natureza que as cercavam e assim, um melhoramento das condições das futuras gerações. Sérgio Lessa, no livro Abaixo a família monogâmica!, dialogando com a obra de Marx e Engels, destaca esse processo chamado de afastamento das barreiras naturais, no qual:

A produção vai se tornando cada vez mais eficiente, aumenta a produção de alimentos, o bando pode se tornar um pouco maior e uma primitiva distribuição de tarefas vai surgindo – os humanos estão conhecendo um desenvolvimento social, isto é, uma evolução que não é fundada pelo desenvolvimento biológico. Os eventos da natureza jogarão um papel cada vez menor na nossa história: a humanidade está em marcha, mesmo que se trate, ainda, de seus primeiros passos.

As tribos primitivas se organizavam coletivamente para o bem comum. Em tais tribos, havia divisão das tarefas, que de forma alguma significava uma hierarquia entre indivíduos daquele grupo. Divisão do trabalho levava em conta as questões biológicas, naturais e sociais, como idade, força, sexo.

A vida das mulheres era protegida no que tange à divisão das tarefas, levando em conta que eram as mulheres as responsáveis pela continuidade do bando. Cuidar dos filhos não era uma função exclusivamente feminina, muito menos somente da mãe. Todos os membros da tribo eram responsáveis pela educação das crianças. As relações sexuais e afetivas se estabeleciam de maneira consensuais e livres, ou seja, havia um casal, porém tanto homens quanto mulheres podiam ter relações com os outros membros da tribo.

Com o crescimento das tribos, ocorreram dois fatos que contribuíram para que a mulher se tornasse submissa. O primeiro deles é que, com tal crescimento, os genes se entrelaçavam, tornando dificultosa a relação entre os membros de uma mesma tribo. Por esse motivo, implantaram-se as famílias sindiásmicas, que consiste em uma relação unilateral onde a fidelidade da mulher era necessária, enquanto a infidelidade do homem era permitida.

A evolução da família nos tempos pré-históricos, portanto, consiste numa redução constante do círculo em cujo seio prevalece a comunidade conjugal entre os sexos, círculo que originariamente abarcava a tribo inteira. A exclusão progressiva, primeiro dos parentes próximos, depois dos parentes distantes e, por fim até das pessoas vinculadas apenas por aliança, torna impossível na prática qualquer matrimônio por grupos; como último capítulo, não fica senão o casal, unido por vínculos ainda frágeis – essa molécula com cuja dissociação acaba o matrimônio em geral.

Outro fator que contribuiu para a submissão da mulher foi a divisão do trabalho, em manual e intelectual, no interior das tribos. A fundação da sociedade de classes se dá a partir do surgimento da exploração do trabalho. Os indivíduos responsáveis pelo trabalho intelectual foram dominando os responsáveis pelo trabalho manual, escravizando-os. Na sociedade primitiva, a transformação da natureza foi transformando a própria natureza social dos homens.

Com o passar do tempo, a transformação da natureza foi transformando a própria natureza social dos homens (Marx, 1983:149), até que, há aproximadamente 10 mil anos, o trabalho passou por uma transformação qualitativa (no dizer de Lukács, conheceu um salto ontológico). Descobriu-se a semente e, com ela, a agricultura e a pecuária. Pela primeira vez os indivíduos que trabalham produzem mais do que necessitam para sobreviver. A capacidade de trabalho das pessoas se desenvolveu a tal ponto que elas não mais precisam trabalhar todo o tempo. Está, agora, “sobrando” capacidade de trabalho: isto é o trabalho excedente.

Com o desenvolvimento do trabalho excedente, o modo de produção primitivo é transformado. Se, nas sociedades primitivas, o tempo gasto com a vigilância e o controle dos trabalhadores resultava em menos do que o indivíduo produziria diretamente, agora a atividade de controle e vigilância necessárias para realizar a exploração das pessoas resulta em uma riqueza maior do que aquela que seria obtida diretamente pelo trabalho do indivíduo.

A exploração do homem pelo homem possibilitou o desenvolvimento mais acelerado das forças produtivas. Por causa disso, uma sociedade de classes, ao entrar em contato com uma sociedade primitiva, igualitária, a tendência é a primeira conquistar e destruir a segunda, fazendo das ruínas da sociedade igualitária fonte de lucro para a classe dominante (pensemos na conquista dos “bárbaros” pelos romanos).

A combinação entre trabalho excedente e a carência na produção, segundo Lessa, tornou possível e necessária historicamente a exploração do homem pelo homem; nesse momento a sociedade com classes desenvolve suas forças produtivas de maneira mais rápida.

A família monogâmica será uma necessidade dentro das sociedades com classes. Segundo Mirla Cisne,

A família, portanto, é uma importante chave para o entendimento histórico da exploração e da opressão sobre as mulheres. Por isso, comecemos por entender o significado histórico e etimológico da família. De acordo com Danda Prado (1985, p. 51), o termo família, encontra sua origem no latim: Famulus, que significa: “conjunto de servos e dependentes de um chefe ou senhor”. Dentre tais dependentes que compunham a família livres e escravos.

Com isso, torna-se fundamental a fidelidade da mulher, que era tida como objeto reprodutor, pois era necessário que o gene do pai, e não mais o da mãe, se sobressaísse para que as riquezas produzidas se mantivessem no interior das famílias. Se, antes, todos trabalhavam para que as riquezas produzidas fossem da tribo para a tribo, agora os esforços eram que as riquezas fossem do interior da família para o interior da família. Dá-se então a origem da família, nos moldes que atualmente vivenciamos, base do Estado.

Outra função da família seria perpetuar essa divisão desigual de uma geração a outra, por meio da herança. Daí, também a necessidade da heteronormatividade, como já sublinhamos no item anterior. Outra vantagem que o sistema familiar oferecera para a classe dominante foi ter permitido “a forma mais barata possível para a reprodução de novas gerações de massas trabalhadoras” (WATERS, 1979, p.86; tradução nossa). Barateamento proporcionado, fundamentalmente, pela divisão sexual do trabalho, na qual a mulher é responsabilizada por meio de um trabalho não remunerado pela satisfação das necessidades dos membros da família. Por isso, “este sistema serve perfeitamente para maximizar a acumulação privada de riqueza social, e para perpetuar a opressão da mulher”

No antigo lar comunista primitivo, a mulher fazia parte da produção social. Com a individualização monogâmica, a mulher perdeu tal participação e só recupera quando proletarizada. A família individual moderna baseia-se na escravidão doméstica. As mulheres, relegadas ao âmbito doméstico, se tornam escravas como parte da propriedade dos homens.

A paternidade ou maternidade, ser filho ou filha fazem parte, agora, de um limitado círculo de relações sociais, restrito ao vínculo familiar fundado pela propriedade privada do indivíduo masculino. Excluídas da participação na vida social, com sua existência reduzida ao estreito horizonte do lar patriarcal, as mulheres vão se convertendo no feminino que predominou ao longo de milênios: pessoas dependentes, débeis, frágeis, ignorantes, bonitas para os homens aos quais devem servir, dóceis, compreensivas. Enfim, pessoas moldadas para a vida submissa e subalterna que lhes cabe na sociedade de classes.

A fim de sustentar a família, a ideologia da classe dominante obriga homens e mulheres a aderir a papéis sexuais rigidamente demarcados – incluindo o ideal da dona de casa para as mulheres, subordinadas ao homem provedor da família – independentemente de quão pouco esses ideais realmente refletem a vida real das pessoas da classe trabalhadora.

A grande maioria das mulheres tem composto uma parte da força de trabalho, mas esses ideais da família pressupõem que as mulheres são mais adequados às responsabilidades domésticas dentro da família. O papel de cuidadora das mulheres dentro da família reduz o seu status para cidadã de segunda classe na sociedade como um todo, porque se presume que a sua principal responsabilidade – e maior contribuição – seria a manutenção das necessidades de suas famílias.

Emancipação das mulheres como uma necessidade

Não de hoje, diversos escritos se preocupam com as condições para o fim da opressão contra as mulheres dentro da sociedade capitalista, entendendo a sua necessidade como passo para o fim da exploração de toda a classe trabalhadora, e dos seus grilhões que oprimem e matam todos os dias.

De acordo com a feminista socialista Alexandra Kollontai, a classe operária necessitava do novo tipo de mulher: não submissa à escravidão, mas sim em posição de combate contra a servidão. As mulheres devem ser companheiras nas causas coletivas, comuns a todo o proletariado. Kollontai aponta a importância de se construir uma nova moral sexual totalmente distinta das anteriores, não servindo apenas ao interesse privado, às aspirações de acumulação de riqueza próprias ao ideário burguês, mas servindo aos interesses coletivistas dos trabalhadores, via formas mais saudáveis de relações sexuais que dispensem o matrimônio legal em sua premissa de posse absoluta sobre outrem, indissolúvel, e da noção absurda da desigualdade entre os sexos, sendo a mulher apenas um mero reflexo do interesse machista, da soberania masculina; formas novas que também excluem a prostituição do rol das relações sexuais, sob a bandeira de “assegurar à humanidade uma descendência sã, normalmente desenvolvida: contribuir para a seleção natural no interesse da espécie” e, ainda, “[…] contribuir para o desenvolvimento da psicologia humana, enriquecê-la com sentimentos de solidariedade, de companheirismo, de coletividade”

A mulher, na Sociedade Comunista, não dependerá de seu marido, seus robustos braços serão o que proporcionará a ela seu sustento. Se acabará com a incerteza sobre a sorte dos filhos. O Estado Comunista assumirá todas essas responsabilidades. O matrimônio ficará purificado de todos seus elementos materiais, de todos os cálculos de dinheiros que constituem a repugnante mancha da vida familiar de nosso tempo. O matrimônio se transformará de agora em diante na união sublime de duas almas que se amam, que se professem fé mútua. Uma união desse tipo promete a todo operário, a toda operária, a mais completa felicidade, o máximo de satisfação que pode caber a criaturas consciente de si mesmas e da vida que a rodeia.

Em o Manifesto do Partido Comunista, ao tratar das comunidades de mulheres, Marx e Engels destacam, como especificado acima, a necessidade de eliminação da posição da mulher enquanto instrumento de produção, sendo essa uma das pautas na luta contra a sociedade burguesa, que aprisiona as mulheres, e de forma mais agressiva, as mulheres trabalhadoras, vítimas duas vezes das mazelas da sociedade capitalista.

De acordo com Samora Machel, em seu discurso para as mulheres moçambicanas no dia internacional da mulher trabalhadora, emancipar as mulheres nunca será uma caridade, ao contrário, é uma estratégia para atingir as razões da exploração. A libertação da mulher é uma necessidade fundamental da Revolução, uma garantia da sua continuidade, uma condição de seu triunfo. A Revolução tem por objetivo essencial a destruição do sistema de exploração, a construção de uma nova sociedade libertadora das potencialidades do ser humano e que o reconcilia com o trabalho, com a natureza. É dentro deste contexto que surge a questão da emancipação da mulher.

Se mais de metade do povo explorado e oprimido é constituído por mulheres, como deixá-las à margem da luta? A Revolução para ser feita necessita de mobilizar todos os explorados e oprimidos, por consequência as mulheres também. A Revolução para triunfar tem que liquidar a totalidade do sistema de exploração e opressão, libertar todos os explorados e oprimidos, por isso tem que liquidar a exploração e opressão da mulher, é obrigada a libertar a mulher.

A emancipação da mulher envolve dimensões profundas da condição de se tornar humano, ou melhor, envolve a construção do ser social. Abolir a propriedade privada e transformar a economia doméstica socializada são premissas indispensáveis para a emancipação, no entanto, ainda não são o suficiente. A total transformação da cultura e dos valores são também indispensáveis. Transformar hábitos fortemente enraizados não é fácil e nem rápido.

Como ressalta Saffioti, a socialização dos meios de produção e uma legislação não discriminatória são fundamentais para a elevação social da mulher, mas, são insuficientes para levá-la à emancipação, pois, “é preciso que a sociedade se empenhe na eliminação de uma mentalidade habituada a promover a inferiorização de fato da mulher. Esta complexa tarefa não é trabalho de uma geração, mas de várias e, em parte, resulta da homogeneização do grau de desenvolvimento econômico e sócio-cultural […] (1979, p. 83).

É necessário compreender que a luta das mulheres, a luta feminista pela emancipação das mulheres é uma questão que deve ser interesse de toda a humanidade, de toda a classe trabalhadora que pretende ser emancipada. Marx, em Sobre o suicídio, se baseia em casos de suicídios na França após a Revolução Francesa para apresentar, mais uma vez, uma crítica real da sociedade burguesa, que aprisiona as mulheres em suas relações de propriedade, e uma crítica aos limites das revoluções burguesas.

Descobri que, sem uma reforma total da ordem social de nosso tempo, todas as tentativas de mudança seriam inúteis. […] A revolução não derrubou todas as tiranias; os males que se reprovavam nos poderes despóticos subsistem nas famílias; nelas eles provocam crises analógicas àquelas das revoluções.

Os escritos de Marx e Engels, em especial o objeto deste pequeno artigo, o Manifesto, a cada leitura se fazem atuais e necessários em tempos de acirramento das lutas e retirada de direitos, medidas que afetam com ainda mais austeridade mulheres, negros e lgbt’s, indígenas da nossa classe trabalhadora. A luta pela construção de uma nova moral e uma nova sociedade são uma tarefa contínua. Por isso cabe o trabalho constante da formação e o diálogo, nos ambientes de trabalho, estudo e moradia, para a estruturação da plena emancipação da nossa classe trabalhadora.