‘Nós não queremos um novo Pinheirinho’

Em SP, uma das maiores ocupações do país resiste sob a iminência de uma reintegração de posse. Moradores temem uma reedição do massacre promovido pela PM no Pinheirinho

Por: Iuri Salles e Thiago Gabriel
Fotos: Murilo Salazar

Com 1 milhão de m2 e próximo ao centro da cidade, o terreno pertence à massa falida da empresa Equipamentos Soma. A área ficou abandonada por quase 20 anos, até que, em 2012, centenas de famílias organizaram a ocupação, com o apoio do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Hoje já são mais de 2.500 famílias e aproximadamente 10 mil pessoas que vivem na ocupação. Um verdadeiro bairro, que conta com comércios, casas de alvenaria, abastecimento improvisado de luz e água e, até mesmo, uma biblioteca. Uma das maiores ocupações do país (foto acima).

Os proprietários do terreno pedem a reintegração de posse e alegam que os recursos obtidos com a venda do espaço serão utilizados para pagar dívidas trabalhistas aos antigos funcionários da Equipamentos Soma. Os moradores argumentam que o terreno ficou inutilizado durante muitos

A ocupação do Soma está amparada pelo MTST e conta com apoio jurídico e político do movimento, que promete mobilizações em âmbito nacional caso a reintegração de posse se confirme.

Foi o que aconteceu em janeiro deste ano, quando a comunidade recebeu a notificação de que o terreno seria reintegrado. A solução encontrada foi resistir e divulgar que as famílias não sairiam do local. Os ocupantes chegaram até a organizar um grupo de combate, armado com escudos de tambores, capacetes, paus e pedras, com o intuito de resistir a ação policial de despejo.

O anúncio dos moradores colocou a discussão sobre a reintegração do Soma na mídia, e outras instâncias judiciais foram acionadas. Três dias antes do despejo, uma decisão provisória concedida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, suspendeu a ação de reintegração. A suspensão foi justificada por Lewandowski sob a alegação de que a reintegração “poderá catalisar conflitos latentes, ensejando violações aos diretos fundamentais daqueles que serão atingidos por ela”, além da falta de estrutura para a retirada dos ocupantes.

Ainda assim, os moradores sabem que a felicidade que veio com a decisão está longe de ser o fim da guerra por moradia. A possibilidade de reintegração atrapalha a vida das famílias e o desenvolvimento de atividades na ocupação.

Rose é cabeleireira e mora na Vila Soma desde 2012, quando a ocupação se iniciou. “A gente vive de esperança. Porque passamos momentos difíceis, outros de alívio. Mas tem sempre aquela preocupação, vai uma reintegração, vem outra. Só vamos ter paz quando resolver essa questão.”

A situação fica mais complicada pela inexistência de qualquer plano de remanejamento das famílias. A Prefeitura de Sumaré ofereceu um caminhão para os moradores, porém, a maioria não teria para onde ir com as suas coisas. “Quando você tem pra onde ir você corre, né? E quando você não tem?”, indaga Rose.

ESPECULAÇÃO

Uma das lideranças da ocupação, o professor Ricardo, explica que a prefeita da cidade, Cristina Carrara (PSDB), realiza uma campanha de criminalização do Soma e dificulta a viabilidade de outras soluções de moradia para as famílias.

Ricardo conta que, desde o início da ocupação, as lideranças vêm negociando junto ao poder público alternativas de moradia às famílias do Soma. Moradores já haviam se reunido com representantes da Prefeitura e dos governos do estado e federal, que designaram uma nova área para a realocação dos ocupantes. O projeto conta com o apoio de duas entidades devidamente cadastradas na Caixa Econômica Federal e prevê a construção de 1400 apartamentos, o que ainda é insuficiente para atender todas as famílias. As moradias seriam feitas pelo programa Minha Casa Minha Vida.

Mesmo com o terreno escolhido e aprovado por técnicos e diferentes instâncias do poder público,  a prefeita de Sumaré nega-se a assinar o documento que viabiliza a área para a construção de moradias populares. “É difícil saber o que passa na cabeça dela, mas o que nós moradores vemos e sentimos é que ela tem um preconceito com as famílias daqui. É uma área próxima ao centro da cidade e com muita especulação imobiliária, então a elite com certeza não quer nos ver aqui”, lamenta Ricardo.

Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Sumaré não se posicionou sobre qual alternativa oferece as famílias, nem sobre a construção de habitações populares. A equipe da Vaidapé também procurou a prefeita Cristina Carrara. Depois de diversos contatos com ela e a superintendência de habitação da cidade, nenhuma resposta foi encaminhada.

PRECONCEITO

Se a luta por moradia já representa uma batalha a ser travada todos os dias com o poder público, os moradores tem de enfrentar ainda o preconceito de muitos moradores de Sumaré, reforçado pelo discurso da prefeita. As famílias relatam que vagas em creches e hospitais são mais difíceis para os moradores do Soma.

A diferenciação ocorre também na hora de arrumar emprego na cidade, como aconteceu com Karine: “A mulher me perguntou tudo, pegou meus dados tudo certinho, quando eu disse que morava no Soma, ela respondeu que ia me ligar e nunca mais ligou”, conta.

A diretora de uma escola próxima à ocupação chegou a pedir para as crianças do Soma levarem dois calçados para o colégio. A justificativa apresentada foi de que a escola não era obrigada a limpar o barro espalhado pelas crianças da ocupação, já que o terreno é de terra batida.

Edinho, que também vive no terreno e ajudou a organizar a resistência contra a reintegração, indaga: “As crianças aqui mal tem um sapato, vai pra escola de chinelo. Tem criança que parou de estudar porque os colegas escutam e ficam falando, xingando que é do Soma, que é pé de barro. Umas dez crianças acabaram desistindo do ano por causa disso”.

Além do preconceito, os moradores enfrentam os problemas cotidianos de uma ocupação. Dentre as maiores dificuldades, Rose cita o abastecimento de água, feito através de caminhões-pipa. “No meu caso, eu fiquei um mês sem trabalhar porque choveu muito e o caminhão-pipa não tava subindo aqui.”

A chegada dos caminhões já faz parte da rotina das famílias, que tem de comprar a quantidade desejada e abastecer as caixas d’água, presentes em quase todas as casas.

A possibilidade de reintegração e a guerrilha formada pelos moradores, chamaram atenção da opinião pública, sobretudo pela semelhança da situação com o massacre promovido pela Polícia Militar no Pinheirinho, em janeiro de 2012. A área, onde já se estabeleciam cerca de 8 mil pessoas, sete igrejas, espaços comerciais  e de lazer, sofreu uma violenta reintegração de posse que pautou denúncias de órgãos como a Secretaria de Direitos Humanos, Anistia Internacional, Ministério Público Federal, Defensoria Pública e até a ONU.

Nas palavras de Ricardo, o ‘professor’, é preciso “humanizar o olhar” para tratar a questão. “Não é possível que todo mundo tá vendo que vai acontecer uma tragédia e a prefeita fecha os olhos, traz todo o problema só pra ela e esquece que o problema não é só a reintegração. O problema é a vida dessas famílias. Para onde essas famílias iriam depois da reintegração?”

http://vaidape.com.br/blog/2016/03/vila-soma/

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