Tinhorão: uma vida em defesa da música popular
Henricão, José Ramos Tinhorão e Carmen Costa no programa “Tudo é música” da TV Educativa do Rio / Acervo IMS
José Ramos Tinhorão: uma vida destinada à divulgação, crítica e defesa da música popular brasileira
Rodrigo Alencastre – UJC – Rio de Janeiro
José Ramos nasceu em Santos – SP, em 1928. Marxista e nacionalista, atuou como crítico músical e, enquanto estudioso da cultura, se debruçou sobre grande parte da história da música popular brasileira, passando pelo Brasil Colônia, Primeira República, Era Vargas e o período da ditadura empresarial-militar, períodos que estão presentes em suas obras.
Jornalista, historiador e crítico da música popular brasileira, se formou em direito e jornalismo e ainda jovem começou a escrever para o “Diário Carioca”, assinando como José Ramos. Por conta da sua postura ácida, crítica dura e sarcástica que transpareciam em seus textos, ganhou o apelido de “Tinhorão”, uma espécie de planta tóxica e espinhosa. Gostou do apelido e passou a assinar com esse pseudônimo em suas produções literárias. Como crítico musical, escreveu artigos e colunas para diversos veículos de comunicação, como Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa, Jornal Rural, Singra, Espírito Santo Agora entre outros.
Autor de mais de 25 livros publicados, como “Os sons dos Negros no Brasil” (1988), “Música Popular – Um Tema em Debate” (1966), “O Samba Agora: A Farsa da Música Popular no Exterior” (1969), “Música Popular, teatro e Cinema” (1972), “História Social da Música Popular Brasileira” (1998), entre vários outros, no auge dos seus 90 anos de idade, lançou seu útlimo, “Primeiras Lições do Samba e outras mais”, em 2018. O livro reúne um conjunto de artigos sobre “samba” produzidos no tempo em que trabalhava no Jornal do Brasil.
Possuía também um grande acervo que contava com documentos, livros, revistas, CDs, LPs, entre outros, que foi, posteriormente, comprado pelo Instituto Moreira Salles.
A obra de Tinhorão é marcada por seu caráter nacional-popular, anti-imperialista, de combate à invasão estrangeira na música popular, a denúncia da imposição ideológica norte-americana e o aprofundamento da dependência cultural, política e econômica do Brasil, da qual, de acordo com sua visão, se aprofundou com o golpe de 1964.
O pensamento de Tinhorão é desenvolvido em um momento no qual o Brasil vivia fortes embates e debates sobre a construção do programa da revolução brasileira. Na esfera da cultura, o movimento nacionalista ganhava força ainda sob os impactos da semana de Arte Moderna de 1922, debates esses que giravam em torno da identidade nacional, das missões de pesquisa e registro do nosso folclore feitos por Mário de Andrade, do movimento de defesa da cultura nacional contra a massificação dos gêneros musicais estrangeiros trazidos pela indústria cultural vinda dos EUA, que estacionavam em solo brasileiro. Processos esses que se intensificaram após a queda de Getúlio Vargas.
É preciso destacar o papel da Juventude Comunista à frente da UNE na criação dos CPCs (Centros Populares de Cultura), impulsionando o movimento do Cinema Novo, os escritos sobre o violão de roda presentes nos “Cadernos do Povo Brasileiro”, a influência dos artistas e intelectuais ligados ao PCB como Cláudio Santoro, César Guerra Peixe e Oswald de Andrade que ganhavam notoriedade pela força da sua arte e ideias originais em defesa da soberania cultural brasileira em meio a ascensão do movimento comunista nacional e internacional. A partir disso, cresce também a necessidade de contar a história da cultura do nosso povo. Tinhorão traz à tona os debates e a sua visão de toda a efervescência cultural e política de seu tempo.
Durante o período da ditadura empresarial-militar, Tinhorão denunciou aquilo que classificou como o apagamento da cultura popular em detrimento da invasão da música norte-americana, que passava a dominar os espaços das rádios e TVs. Nos seus artigos, Tinhorão não só fazia a crítica e ataques à política da ditadura, mas também a outros gêneros musicais, que, na sua visão, possuíam uma estrutura pré-fabricada, falsamente brasileiros e que tinham todo seu conteúdo musical originados na matriz da indústria cultural estrangeira.
Foi responsável, também, por dar visibilidade a uma série de artistas da cultura popular que caminhavam no ostracismo por não conseguirem muito espaço nas grandes gravadoras. Tinhorão, alinhado com o movimento e corrente teórica do nacional-popular, trazia à tona todos esses artistas capazes, segundo o autor, de traduzir a nossa identidade nacional, mas que eram desconhecidas pelo grande público, como foi o caso do Zé Coco do Riachão. O músico que, pela sua genialidade musical de compor, tocar e fabricar seu instrumento, ganhou o apelido de “Da Vinci Brasileiro”.
Por sua postura ácida, sarcástica, polêmica, muitas vezes foi alvo de críticas pertinentes, mas também de acusações infundadas. O fato é que as polêmicas, frutos de debates e embates, das quais as mais evidentes foram os confrontos com a bossa nova e tropicália, por si só, não são capazes de resumir sua vasta obra literária.
Para além dos enfrentamentos, ressalvas, brigas e posicionamentos ácidos, é importante destacar que, em seus livros e artigos, Tinhorão buscava entender a história, a cultura e a música como um fenômeno social de um povo, partindo sempre do método materialista histórico-dialético. Percebia que a cultura precisava ser analisada na sua totalidade, sujeita a contradições e dominações próprios de um país que adere o sistema capitalista, mas que não ocupa posição de liderança internacional, pois está subordinado aos países ricos, a um sistema de dominação imperialista que atua na esfera global, seus impactos e desdobramentos na nossa cultura.
“Assim como nos países capitalistas, entre os quais o Brasil se enquadra, o modo de produção determina a hierarquização da sociedade em classes, a cultura constitui, em última análise, uma cultura de classes.
Como os fatos históricos no livro demonstram, essa diversidade cultural é normalmente simplificada através da divisão da cultura em apenas dois planos: o da cultura das elites detentoras do poder político-econômico e das diretrizes para os meios de comunicação – que é a cultura do dominador – e a cultura das camadas mais baixas do povo urbano e das áreas rurais, sem poder de decisão política – que é a cultura do dominado.
Acontece que nas nações em que a capacidade de decisão econômica não pertence inteiramente aos detentores políticos do poder, como é o caso de países de economia dependente – e entre eles o Brasil em estudo -, a própria cultura dominante revela-se uma cultura dominada.
Como resultado, a cultura das camadas pobres acaba sendo submetida a uma dupla dominação: em primeiro lugar, porque se situa em posição de desvantagem em relação à cultura das elites dirigentes do país; e, em segundo lugar, porque esta cultura dominante não é sequer nacional, mas importada e, por isso mesmo, dominada.” (História Social da Música Popular Brasileira).
O fato é que a obra de Tinhorão ainda se mostra atual em vários aspectos, carregando também os avanços e limites de seu tempo. A despeito das ressalvas, o autor foi e é um dos maiores historiadores da Música Popular Brasileira. Em vida, sempre manteve firme nas suas ideias nacionalistas e marxistas, ainda que precisasse, muitas vezes, remar contra a maré das ideias dominantes de seu tempo. Sua contribuição permanece viva e merece ser estudada por todos os artistas, lutadores e intelectuais da cultura do nosso Brasil.
José Ramos Tinhorão morreu no dia 3 de agosto de 2021, mas seu legado permanecerá vivo por muito tempo.
Presente hoje e sempre!
Fontes:
Muitas histórias da MPB, as ideias de José Ramos Tinhorão; Luís Quarti Lamarão (dissertação de mestrado).
História Social da Música Popular Brasileira. TINHORÃO, José Ramos (livro).
Instituto Moreira Salles